– Doutora, dói-me o pandza! – queixei-me ainda entrando para o consultório, andando com aquele recolhimento de doente arrastando a carcaça do corpo. O meu tronco estava curvado, encovando o abdómen e os ombros caídos, rendidos ao peso da dor.
Sem interromper o que escrevia, a doutora lançou-me aquele olhar clínico que caracteriza os médicos, por cima dos óculos pendurados no nariz, fez-me um raio x com os olhos, dos pés à cabeça, e viu-me até aos ossos.
– Sente-se. – disse com uma genti leza mecânica, mais clínica que hospitaleira.
– Estou mal doutora, dói-me o pandza – disse-lhe, já sem ar na voz.
– Vamos observar – convidou-me, depois de algumas perguntas, para o outro canto do consultório, onde havia uma cama de colchão medicinal, para se destrinçar os doentes.
– Mostre-me – ordenou, olhando para as minhas calças. Observando, esforçou-se para disfarçar o espanto. Olhou para mim com aquela cara que se olha para espécies raras, e voltou a observar.
– Está inchado? – até na voz perdera a pose de doutora.
– Não, doutora, é assim mesmo.
Tirou os óculos para ver melhor, realçando o emaranhado na testa, as sombracelhas curvadas e os olhos arregalados. Segurou com uma pinça, e depois com os dedos enluvados, pressionou com o indicador e quase assustada perguntou:
– Dói?
– Não, não dói doutora, mas o meu pandza, doutora, não é aí, é mais para dentro.
Largou-me em sobressalto, como se largasse uma serpente, voltou a usar os óculos e recuperou aquele ar intelectual. Acrescentei:
– A dor é mais para dentro, mais para a alma.
– Então se é na alma não é pandza, é soul, como é essa dor?
– Intensa e triste.
– Blues! É blues. Dói sempre?
– Dói menos quando estou jazz!
Levou aos ouvidos um instrumento de fazer inveja a qualquer DJ, que trazia pendurado no pescoço, e auscultou-me as entranhas.
– Bons auscultadores a senhora tem.
– É um estetoscópio. Quieto!
Auscultou-me com muita técnica todos os segredos internos, descodificou sem estranhar os meus batuques cardíacos e as revoltas que me pulsam nas veias, assustou-se com as ruídos estranhos que descobriu na zona do abdómen, só parou quando interpretou as ondas hertzianas dos roncos no meu estômago.
Senti as plumas dóceis das mãos dela pressionando-me a barriga, vasculhando algum possível sintoma. Quando me pressionou a boca do estômago, encolhi-me de dor. Foi ali que me deu o diagnósti co:
– É fome!
– Fome? Não é pandza? Ou pandza é fome?
– Mais ou menos. Há uma epidemia com sintomas variáveis, causada por uma praga de preços, dói no custo de vida das pessoas. Isso que chamamos de pandza, na verdade é uma reacção do organismo a esse fenômeno. É uma bossa que surge no estômago das pessoas para preencher o vazio da fome.
– Bossa? E é nova?
– Não é Bossa Nova, a Bossa Nova é um choro cantado do samba. O pandza não é música, é um lamento alegre inspirado na marrabenta. Tome a receita, vitaminas três vezes ao dia, muita música e, sempre que puder, coma algo.
– Obrigado, Doutora.
Cheguei à farmácia, na fi la de atendimento um homem magro tossia. Outro espirrava. Estavam na fase críti ca da dor de pandza. O homem do balcão dava uma, duas ou três pancadas ritmadas no tampo de vidro e chamava: “o próximo!”. A mulher da caixa fazia um som musicado com o abrir e fechar da caixa.
A tosse do primeiro homem entrou no compasso das bati das no balcão. O do espirro também acompanhou. Havia um fundo de chocalhar de moedas nos bolsos e bolsas dos presentes. Dava vontade incontrolável de mexer a anca. Eu acompanhava, abanando a cabeça e batendo a sola no chão.
Batidas no tampo, som da caixa, chocalhar de moedas, uma tosse, um espirro, e repando com a voz que chamava “o próximo!” as vozes do clientes também soavam: “quanto custa?” … Era Pandza!, que só ficou completo quando uma mulher, sabendo o preço dos medicamentos que procurava, soltou um riso descontrolado, no mesmo tom que tilintavam as moedas na bolsa, rindo-se da própria dor, e desabafou:
– Ishh! Yowê.