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“Ética é questionamento, é reflexão”

“Ética é questionamento

Na próxima segunda-feira, dia 4 de Abril, o escritor e académico moçambicano Carlos dos Santos irá lançar, na Associação dos Fotógrafos Moçambicanos, o livro ‘Cartilha da Ética’. Composta por 61 páginas, a obra, que tem a chancela da Plural Editores, poderá, como diz o autor, “ser útil a toda a gente”. Aqui fica a entrevista efectuada por email.

@ VERDADE – O que o levou a escrever esta “Cartilha da Ética”?

Carlos dos Santos (CS) – A ideia desta cartilha não foi minha. Em 2009, creio, a STV teve a ideia de realizar um programa de debates televisivos sobre Ética, com estudantes do Ensino Secundário. Acharam que seria útil dispor de uma Cartilha da Ética para que esses estudantes pudessem estudar e sobre o conteúdo da qual assentassem esses debates. Nalgum momento ligaram-se à Plural Editores em relação a essa ideia em geral, e à questão da cartilha, em particular.

A direcção da Plural, editora com a qual tenho já outras publicações, sabia que eu me encontrava a dar aulas de Ética Social e Direitos Humanos e propôs-me que eu escrevesse a referida cartilha. Inclusivamente, o eixo central da estrutura desta cartilha foi-me proposto por eles, em função desse objectivo. Fiz-lhe alguns ajustes e reordenamentos, mas sempre tendo esse objectivo em vista.

Outro objectivo imporia outra estrutura. Infelizmente – porque acho que a ideia era boa – a STV, não sei por que razão, abandonou o projecto a meio. Mas, felizmente, a Plural optou por perseverar sozinha a sua parte, e aí temos a cartilha.

@ VERDADE – A quem se destina fundamentalmente esta obra?

CS – Como acabei de referir, o grupoalvo inicial eram os estudantes do ensino secundário. Todavia, a minha experiência de ensino desta matéria ao nível universitário diz-me que a cartilha é perfeitamente viável, necessária mesmo, para o nível universitário – quer pela sua natureza, quer pelo nível com que os estudantes chegam à universidade. Apesar de terem a disciplina no currículo do ensino secundário, pouco ou mal sabem de Filosofia.

Mas esta cartilha também é perfeitamente válida para os sectores de administração e gestão de recursos humanos de qualquer empresa e instituição.

Como cartilha que é, ela aborda os fundamentos da Ética, que são necessários em todo o lado, e sempre, mas que se encontram tão ausentes. Daí que poderá ser útil em todo o lado.

E a verdade é que há falta de uma obra como esta no mercado nacional. Há coisas sobre Ética Profissional (Ética Jornalística, Bioética), mas não há material sobre as questões básicas, fundamentais gerais da Ética Social, nas quais assentam, depois, as outras éticas. Tive muita dificuldade em encontrar material para as minhas aulas.

@ VERDADE – Porque sentiu necessidade de estruturá-la com as caixas de ‘Autocontrolo’?

CS – Por um lado por se tratar de uma obra com carácter didáctico. E a didáctica diz-nos que não se deve progredir para novos conhecimentos, mais adiantados, mais complexos, antes de se ter consolidado e dominado os anteriores. Estas questões de “Autocontrolo” permitirão ao estudante, e ao leitor em geral, verificar se está pronto para progredir, ou se é melhor voltar a ler algumas páginas anteriores.

Mas também porque ser ético é controlar- se e comandar-se a si mesmo, sem esperar pelos outros. Então, o melhor controlo que se pode ter é o autocontrolo. Foi também para induzir esta ideia, para a colocar no subconsciente do leitor.

@ VERDADE – Acha que actualmente a sociedade moçambicana encontra-se tão mal do ponto de vista moral que necessite de seguir uma cartilha da ética?

CS – Acho que a espécie, a sociedade humana, vive, no seu todo, uma crise de valores – e não só a moçambicana. E acho que sim, que a sociedade moçambicana está profundamente desnorteada em matéria de valores morais. Os valores materiais, exteriores, tornaram-se a aspiração do cidadão em geral, que, para os conseguir para si, passa por cima de tudo e de todos.

Os valores interiores, que deveriam inclusive conduzir o processo de aquisição dos bens materiais, esses estão de um modo geral abandonados. Não compensam. Sobretudo porque há falta de exemplos inspiradores.

Mas não há momento nenhum em que a ética e a moral deixem de ser necessárias, dada a natureza social do animal humano. Se as coisas estiverem a andar bem, é porque existem códigos de ética e estão a ser praticados. Se estiverem a andar mal é porque não existem ou não estão a ser praticados.

O que torna a Ética mais importante nesta fase. Portanto, uma tal cartilha é sempre necessária. Agora, uma Cartilha da Ética não é coisa para ser seguida. Ética é questionamento, é reflexão. E, depois, é escolha. O meu objectivo com esta cartilha é, precisamente que as pessoas deixem de seguir, cegamente, e passem a reflectir antes de cada acto. Que se perguntem se devem seguir a norma vigente, em cada circunstância, e só depois disso o façam. Ou não.

@ VERDADE – Na obra vê-se que há uma preocupação com a criança, inserindo mesmo uma caixa com a Convenção dos Direitos da Criança. Porque deu ênfase especial à criança?

CS – Porque, como diz um ditado, que se diz ser africano: “Não se pode endireitar a sombra da árvore torta”. Quer dizer, as actuais crianças serão os próximos adultos e, portanto, serão os adultos que nós fizermos deles. E esse é, portanto, o grupo-alvo mais importante para a sociedade actual. Mas, também porque eu trabalho com a Convenção dos Direitos da Criança, e como queria dar um exemplo sobre como se proclamam direitos, escolhi os direitos da criança.

E mesmo porque as crianças (e os jovens) são as principais vítimas deste desregramento que grassa na sociedade actual, em que vemos os pais a acusarem os filhos de serem falhados, prova suprema de que esta geração de adultos… como direi… tem graves problemas éticos e morais.

@ VERDADE – No capítulo em que faz referência aos desafios e reflexões da sociedade moçambicana, aponta práticas tradicionais/culturais em que se incluem os ritos de iniciação, o lobolo ou a poligamia como práticas que é necessário banir. Serão elas assim tão pouco éticas e amorais aos olhos dos africanos?

(CS) – Não, de todo. E não é isso que eu digo. Aliás, coloco-as na categoria de dilemas. Ora, uma coisa que é claramente para banir não é um dilema. Como é o caso, que refiro, por exemplo, da circuncisão feminina ou de qualquer forma de descriminação. Digo que são dilemas precisamente porque apresentam vantagens e desvantagens.

E estas dependem de contextos. Porque em certas circunstâncias elas podem ter efeitos melhores do que piores. E, outras vezes, ao contrário. O que digo é que há quem queira (simplesmente) banir estas práticas. Sem reflectir. Sem ponderar as circunstâncias e as consequências. O que não é ético, ainda que possa ser moral.

Em todo o caso, num texto destes é preciso resistir à tentação de lá pôr apenas aquilo que o autor acha que é bom. Especialmente sendo a Ética, reflexão. Para reflectir é preciso ter várias ideias, ideias opostas. E, depois, escolher.

@ VERDADE – A Ética é universal ou depende do tempo e do espaço?

CS – Em ciência é, muitas vezes, necessário operacionalizar os conceitos antes de falarmos, porque podem ter significados distintos para diferentes actores. Às vezes até mesmo opostos. E aqui preciso mesmo de distinguir os conceitos de Ética e de Moral. A definição que vou dar não é universal.

Mas eu lido com a Ética como uma atitude, a atitude de questionar, reflectir, fazer escolhas e assumir as suas consequências. Enquanto a Moral é um conjunto de normas adoptadas, estabelecidas num determinado tempo e num dado lugar – para servir determinados interesses – e só quem tem poder tem força e legitimidade para estabelecer normas, o que já diz muito sobre a natureza das mesmas.

As tais normas sobre as quais a Ética deve reflectir, que deve questionar. Nesta perspectiva, se a Moral fosse universal e intemporal, não existiria a Ética. A Ética existe precisamente por a Moral ser espacial e temporal e ter de ser questionada e alterada.

Os dilemas éticos são outra prova de que a Moral é limitada no tempo e no espaço. O que não é bom para o catolicismo (o aborto, por exemplo) pode ser bom para a mulher que está votada a parir um filho cujo pai não vai assumir essa criança. O que foi bom no passado (a pena de morte, por exemplo) não é bom hoje…

Há, claro, alguns valores que são comuns a toda a espécie humana. Afinal, é a mesma espécie – tem algumas características e necessidades comuns. E, logo, algumas normas comuns: “Não matarás”. Mas, mesmo essas, em certas circunstâncias, podem não ser eticamente correctas. Se alguém me quiser matar? Se eu me deixar matar, estarei a fazer mal a mim. Não é ético. Então, devo ser eu a matar. Mas isso não é ético. Não é bonito?

Por outro lado, países às mãos de cujos exércitos estão a morrer pessoas em vários países do mundo têm nas suas normas morais básicas esse valor, supostamente universal que é: “Não matarás”! E, ao mesmo tempo, condenam à pena de morte alguém que tenha matado outra pessoa.

@ VERDADE – A corrupção é um dos principais males que afecta o país. Foi por isso que sentiu necessidade de lhe conceder tanto espaço?

CS – A corrupção é um dos principais males que afecta a sociedade humana. A famosa crise bancária de há dois anos nos países mais “impolutos” do planeta foi um mero produto de corrupção.

A globalização actual não permite que só haja corrupção nalguns países. A corrupção em Moçambique só é possível graças à corrupção que existe lá de onde vem o dinheiro que a sustenta aqui. Senão, com tantas provas e tão claras, em tantos lados, o dinheiro já tinha deixado de vir…

Tendo dito isso, então, sim, é a extensão mundial da corrupção, Moçambique incluído, que me fez dedicar tanto espaço a esse assunto.

@ VERDADE – O que o levou a incluir frases de Samora Machel na contracapa?

CS – O facto de Samora ter sido um exemplo inspirador nesta matéria, quando governou. Não em termos de discurso, mas em termos de conduta. Porque o discurso, qualquer um faz. Todos o fazem. Todos os dias. Quanto menos o fazem, mais o dizem. Mas a Ética não é falar, é fazer. E também por, aquilo que ele disse há mais de trinta anos (e não só o que ele disse na citação que usei), permanecer actual.

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