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Pandza: Como num conto de fadas

O táxi parou em frente ao restaurante, naquela velocidade sem pressa, alongando ao máximo o tempo de frete que confunde os turistas. A cabeleira loira sentada no banco de trás não se mexeu, esperou que lhe viessem abrir a porta, habituada ao luxo de outros conti nentes. O taxista, de palito na boca, levou alguns segundos a perceber que lhe devia essa genti leza, depois de lhe cobrar em moeda estrangeira.

Levantei-me da mesa e, fazendo mola com os pés para disfarçar a sola descolada da sandália, fui até a porta do restaurante recebê-la. Sacudi a cabeça ajeitando as dreadslocks, infalível atractivo turístico. Com um sorriso do primeiro mundo deixou perceber a dentadura muito cuidada donde luziu um dente dourado. Esticoume o braço e eu lembrei-me que lá não é, como cá, com dois beijinhos que se cumprimenta.

Parecia uma fada. Era uma senhora muito estrangeira, percebia-se pela carência de sol no tom de pele, no sotaque, no cabelo, mais grisalho que loiro, e na íris, de um tom muito claro e frio, mais azul que o céu. Para a minha idade, ela já tinha passado o bestbefore, mas era, sem dúvidas, a minha grande oportunidade de melhorar financeiramente.

– Hello, how are you? – cumprimentei-a com sotaque anglo-changana. Servi-lhe uma cadeira com cordialidade forçada e ajeitei as minhas calças de pano floreadas antes de também me sentar. O servente, que até então me ignorara, dando prioridade aos clientes com um pouco menos de melamina, veio atender-nos com excesiva hospitalidade. Habituada a ambientes de ar condicionado, ela refescava-se fazendo leque com o livro de menu, e desabafou com voz de fada:

– Oh! Xtah Kalorrr!

– Yes, yes.– Respondi-lhe. A conversa fluiu entre cacoetes e “becauses”, do meu inglês muito apoiado em letras de músicas de Bob Marley. Reparei que ela contorcia-se sempre que falasse, ora para um lado ora para outro. Nisto o servente veio à nossa mesa com ar menos servil que o de há pouco e disse, dirigindo-se à mim:

– Esta senhora não se pode sentar aqui.

– Mas… porquê?

– Tem de ir para a ala dos fumadores. Ela, percebendo que era a visada, quis saber o que se passava.

– Prrroblema? Dinherrro! – dirigiu-se para a bolsa, com pronti dão fi nanceira do primeiro mundo.

– Não, ele diz que temos de ir para a ala de fumadores.

– But, why? Nos não fumarrr! – justificou-se como uma fada, arregalando os olhos.

– Mas nós não estamos a fumar! – Traduzi, virando-me para o servente.

– Sim, mas esta senhora liberta gases.

– O quê? Respeita os clientes você. – explodi, e virando-me para ela – He said you…

Foi ali que percebi que sempre que ela falasse, dobrando o tronco, levantava discretamente a perna e aliviava-se de gases que se lhe misturavam aos perfumes europeus. Ao meu olfacto apenas chegava o doce aroma a euros. Não podia permitir aquela humilhação por isso apelei à sensibilidade do homem, falando em changana:

– Makwêru, é minha fonte de rendimento esta. Minha economia depende dela. Para combater a pobreza, entendes.

– Makwêru

– respondeu em changana para se identifificar melhor comigo – não dá. Toda a gente está a reclamar. – apontou para os presentes. Todos abanavam as mãos ou qualquer coisa que estivesse à mão, para se aliviarem do cheiro.

– Prrroblema? Kual prrroblema?

– No problem, just… your … cheiro – apontei para o local de vazamento. – But, no problem. – Começou a justi ficar-se em voz alta para todos os presentes. – Na Eurrrropah é norrrmal. É development.

– Se os gases são assim, como serão os sólidos? – Disse o da mesa ao lado, sem desapertar o nariz.

– No! Todo meu lixo eu reciclar e levar para minha terra. Não deixarr na terra dos outros.

– A senhora sai com o seu lixo da casa de banho? Na carteira?

– No. Eu enviar por Internet. Tecnologia, development!

– A senhora deve usar filtros. – Impôs em jeito de protesto, um dos presentes.

– No, eu no prrrecisa filtrrro, nao bypassa nada. – Provou com estudos documentados, números, percentagens, tabelas, gráfi cos, carimbos e assinaturas. Para ser melhor entendida falou a linguagem dos euros, que bem domina: levou a mão à bolsa como se procurasse uma varinha mágica e “tlin!”, pagou a conta de todos, melhorando o PIB per capita ali na sala. As pessoas convencidas voltaram para os seus lugares e respiraram os gases com naturalidade. O servente também teve direito a uma gorda gorjeta.

– It’s development! – disse-me, com voz de fada, e, como num conto de fadas que se preze, acabamos todos FELIZES, não sei se PARA SEMPRE.

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