Herói, na definição enciclopédica, é uma figura arquetípica que reúne em si atributos necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de dimensão épica. Na tradição latina, o termo herói designa, na sua origem, o protagonista de uma obra narrativa ou dramática. Já os gregos situavam-no num plano semidivino, entre o homem e Deus, sendo no geral o herói filho de um deus e de uma mortal. O herói, dependendo das épocas, dos géneros literário e das correntes, é, no geral, um sujeito ambíguo e ambivalente mesclando a sua condição humana complexa e terrena com uma transcendência quase divina na medida em que o homem comum não consegue mas aspira atingir as suas façanhas. Normalmente, é guiado por ideais magnânimos como o sacrifício, a coragem, a liberdade, a fraternidade, a justiça, a moral e a paz. As suas motivações são sempre verdadeiras, justas e, sob o ponto de vista ético, louváveis.
Mas deixemos os heróis abstractos e vamos aos heróis concretos. Hoje, quando se completa mais um aniversário do dia dos Heróis Moçambicanos – este ano dedicado, justamente, diga-se, à figura de Eduardo Mondlane, o pai inspirador da Nação – não me vou debruçar sobre aqueles que têm o seu nome inscrito na cripta, na placa de uma rua, de uma praça ou de um jardim, mas sim sobre aqueles heróis recatados, que agiram sem pedir nada em troca, que não esperam medalhas nem condecorações, que protagonizaram actos heróicos mas que não têm vocação para consagrações, para se porem em bicos de pé à espera das palmas. Havendo o Soldado Desconhecido com túmulos, nome de ruas e outras coisas quejandas é uma injustiça não existir a mesma bitola para o herói desconhecido, anónimo. Não faríamos mais do que a nossa obrigação. A acontecer, tratar-se-ia de um acto da mais elementar justiça.
Há dias, fazendo um zapping, estacionei na RTP a ouvir uma notícia macabra: um homem, ao volante de um camião-grua que tinha furtado momentos antes, iniciou uma condução louca matando uma mulher e ferindo mais oito pessoas. O camião só foi parado por um sujeito que, de forma heróica, saltou para a cabine do pesado em andamento e tomou conta do volante, guinando-o contra um muro, evitando, assim, que o mesmo entrasse numa esplanada cheia de gente onde seguramente faria muito mais vítimas. O sujeito, de nome Hélder Martins, maqueiro de profissão e que acabou por fracturar uma perna no incidente, recusou o epíteto de herói afirmando: “Fiz o que achei que tinha de fazer.”
Jerry Williams tinha 24 anos quando, em 2001, padeceu no incêndio das Torres Gémeas, na sequência do maior atentado terrorista de história. Bombeiro de profissão, actividade com que sempre sonhou, Jerry galgou naquele dia os degraus da Torre Norte com uma coragem monstruosa. Enquanto ajudava as pessoas a descer para a vida, Jerry subia para a morte que ele sabia ser certa. Naquele dia o inferno estava lá em cima, mais perto do céu do que da terra. Jerry abraçou-o com a convicção das pessoas que estão a cumprir o seu dever. Muitos dos seus colegas, que também lá ficaram engolidos pelo fogo, à medida que subiam as escadas iam sendo desencorajados por quem tomava o caminho em sentido contrário. Porém, respondiam: “No matter. This is our job”, e continuavam a caminhar para o abismo. Por isso morreram mais de três centenas, por isso a América rendeu-lhes uma sentida e sincera homenagem – lembro-me de que nas comemorações do 1º aniversário do 11/09 era para eles a maior faixa: “We will never forget.”
Por cá, provavelmente o nome de Felisberto Mariano diz muito pouco ou mesmo nada à maioria das pessoas. A mim diz-me muito. Naquele 22 de Março de 2007 viveu-se um pânico geral. O paiol militar, situado em Mahlazine, consumiu-se em explosões e mais explosões, destruindo tudo à volta num raio de mais de uma dezena de quilómetros. A menos de 500 metros em linha recta, o Hospital Psiquiátrico do Infulene foi um alvo privilegiado da fúria dos morteiros, das granadas e das bombas descontroladas que cruzaram os céus. E, efectivamente, assim foi. Todavia, dez minutos antes da destruição, Felisberto resolveu não se conformar com o destino quase certo de 34 doentes, cinco dos quais acamados. No meio daquele “salve-se quem puder” e numa corrida contra o tempo, evacuou-os um a um, resgatando-os da morte. Volvidos dez minutos, um obus caiu exactamente naquela ala, destruindo tudo.
Avesso a homenagens, Felisberto foi parco em palavras quando lhe perguntaram pela razão do seu acto: “Salvar vidas humanas faz parte do nosso juramento.”