Em Moçambique, a terceira idade é um fardo, as famílias baldam-se às suas obrigações para com os idosos, que vivem à míngua perante uma clara permissividade das leis criadas para a sua protecção; por isso, somos o segundo pior país do mundo para os anciãos viverem e envelhecerem, num total de 96 avaliados pela Help Age International. Só estamos melhor em relação ao Afeganistão e ao Malawi, no domínio “Estado da Saúde”, incluindo a esperança de vida aos 60 anos de idade, uma vida saudável e o bem-estar psicológico, o que pressupõe que as solicitações ao respeito à dignidade desta camada social e os apelos contra os maus-tratos a que eles estão sujeitos são uma fachada.
Ainda em Moçambique, em cada ano há novos anciãos que engrossam a lista do contingente desta gente largada à sua própria sorte e dependente de quantias insignificantes que o Estado, através do Instituto Nacional de Acção Social (INAS), desembolsa mensalmente. No distrito da Manhiça, província de Maputo, este grupo vive numa miséria que mete dó, não havendo necessidade que se recorra a tal pois tem parentes.
Para além de várias outras normas cujo impacto não é visível, em 2013, o Governo aprovou uma Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Pessoa Idosa, da qual apenas se ouve falar nas efemérides alusivas a este grupo ou no âmbito das campanhas de sensibilização, que também estão longe de inculcar uma mudança de atitude na sociedade em relação à situação dos idosos. O Estado parece ser permissivo na medida em que não se conhece, publicamente, nenhuma medida vigorosa por si tomada para travar o desrespeito pelas pessoas de terceira idade, mormente em relação às pessoas e/ou famílias que rejeitam os seus pais, mães, tios, avós, etc.
As queixas dos idosos que beneficiam do subsídio social básico atribuído pelo Governo dizem respeito aos valores não chegam para nada, são uma ninharia e deveriam ser reajustados de modo que lhes assegurem uma vida digna. Entretanto, conforme alude um ditado popular, “ao cavalo dado não se olha o dente”, o que quer dizer que, pese embora o Estado tenha alguma culpa ao não impor uma mão dura contra os que desrespeitam os anciãos e os coloca numa situação de precariedade, está a fazer a sua parte para atenuar a angústia desta gente que quase vive sem perspectivas para o seu futuro.
Aliás, trata-se de indivíduos que vivem o dia-a-dia sem esperanças de nenhumas melhorias da sua condição social, porque todos os que recebem o apoio do Estado aplicam o dinheiro que lhes é alocado na compra de alguns alimentos pois o valor mal chega para montar uma banca destinada à venda de tomate com vista a reduzir a dependência. Afinal, onde andam os parentes dessa gente, parte da qual perdeu a juventude a cuidar dos mesmos filhos que hoje os rejeitam? O que é feito daqueles que, deliberadamente, relegam os pais à humilhação? Vezes sem conta, nos idosos perdem as suas casas e outros bens a favor dos filhos e ainda são expulsos dos seus lares.
Armando Mucavele é um ancião residente algures no bairro de Xibututuine, na Manhiça. Ele não sabe ler nem escrever e tão-pouco quantos anos tem. Contudo, o peso da idade e a ausência de destreza nos movimentos físicos denunciam que ele tem mais de 75 anos idade. Os seus chinelos sujos e com fendas em toda a sua estrutura, os olhos com uma visão cada vez mais deficiente, as roupas desbotadas e pouco asseadas, o agasalho típico de Inverno mesmo debaixo de um sol escaldante e o corpo curvado e apoiado num pau improvisado que assume as funções de uma bengala são algumas marcas de um idoso largado à sua própria sorte pelos parentes, a par do que acontece com centenas de outros anciãos no país.
A prova de que o desleixo e o repúdio que os filhos protagonizam contra os pais quando estes atingem uma idade avançada merece uma castigo severo e deve haver alguma obrigação que garanta que as chamadas “bibliotecas vivas” gozem do amor dos parentes está nas palavras de Amando quando, com a voz trémula, afirma: “Tenho dois filhos. Um trabalha em Maputo e tem família lá (…). De quando em vez procura saber como estou mas não manda comida, não cuida de mim nem do irmão que tem limitações físicas. E não peço nada porque é dever dele cuidar de mim, mas não o faz (…)”.
Armando fez estas declarações a 31 de Agosto último, minutos depois de sair de uma das sala de aulas na Escola Primária de Xibututuine, onde ele e vários outros anciãos recebiam os seus subsídios referentes aos meses de Julho e Agosto. O INAS, que se fazia acompanhar pela Plataforma da Sociedade Civil para a Protecção Social (PSCPS), explicou que o atraso no desembolso dos fundos se deveu ao facto de as brigadas que efectuam os pagamentos não terem capacidade para cobrir todos os beneficiários em virtude da falta de efectivos.
Aulina Salomone, chefe da Repartição de Assistência Social no INAS, delegação da província de Maputo, disse que este ponto do país conta com 13.088 idosos que dependem dos subsídios atribuídos pelo Governo para sobreviverem. “Não conseguimos atender a todos num só mês”; por isso, eles “recebem os valores acumulados”.
Volvidos dois meses sem auferirem as suas módicas subvenções, o grosso dos 82 idosos que estavam presentes na Escola Primária de Xibututuine, primeiro teve de ser informado de que nesse período o Executivo reajustou o subsídio social básico, tendo passado de 280 para 310 meticais, para um agregado familiar constituído por uma pessoa; de 390 meticais, contra os anteriores 350 meticais, para as famílias compostas por dois indivíduos; de 420 para 460 meticais no que toca a uma família constituída por três elementos, enquanto de quatro membros recebe 530 meticais, contra os anteriores 480. Para as famílias de cinco pessoas ou mais o valor passou de 550 para 610 meticais.
Estima-se que em Moçambique exista 1,8 milhão de pessoas com mais de 60 anos de idade e é o terceiro maior efectivo de idosos no sul de África. Segundo dados do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), “17% dos agregados familiares possuem pelo menos um idoso, 60% estão na pobreza absoluta” e vivem com apenas “18 meticais/dia, para além de que “82% vivem com menos de 38 meticais/dia”.
O IESE prevê que a precariedade das pessoas da terceira idade se possa agravar nas próximas décadas devido a uma mudança na estrutura etária da população.
Dois dependentes (idosos) a cuidarem um do outro
Ao @Verdade, com as suas mãos trémulas, dedos calejados e unhas demasiado grandes, Armando, ajeitou o seu pau para ganhar equilíbrio e, após agradecer o facto de o INAS disponibilizar mensalmente 390 meticais para o seu agregado familiar composto por dois indivíduos, queixou-se: “O valor não chega para não nada, mas se a minha família cuidasse de mim a minha vida teria outro sentido e qualidade”.
A voz de Armando treme quando fala, o que atesta que para além das dificuldades acima elencadas, ele já não está em condições de cuidar de si próprio: “Vivo com a minha filha, mas ela é deficiente e não consegue fazer grandes coisas, para além de também ter uma idade avançada”, ou seja, são dois dependentes a cuidarem um do outro e que sobrevivem das módicas quantias que o Estado desembolsa. “Com este valor só compramos alguns quilos de arroz e farinha de milho. Dependemos de esmola ou de pessoas de boa vontade para sobreviver (…)”.
“Não sou eu sozinha que não tenho quem me proteja”
Adelina Isaías também disse que desconhece a sua idade; porém, o seu bilhete de identidade atesta que ela nasceu a 01 de Janeiro de 1948, o que significa que tem 67 anos de vida. A anciã vive com o marido e ambos beneficiam do subsídio social básico do INAS e naquele dia receberam 1.360 meticais, mas em Setembro o valor será inferior – se for desembolsado dentro dos prazos estabelecidos porque não incluirá os retroactivos. Eles falam com reserva sobre os filhos. A única coisa que conseguimos arrancar da senhora foi: “Não sei porque é que eles não cuidam de mim. Talvez a minha vida seria diferente. Mas não sou eu sozinha que não tenho quem me proteja (…). Não tenho machamba, faço apenas pequenas hortas em casa mas não rendem nada que nos sustente (…)”.
Alice Muiambo, outra residente em Xibututuine, tem 71 anos de idade. Ela ainda cuida de um filho com mais de 50 anos de idade em virtude de ser cego. “O outro filho vive em Maputo e não sei onde trabalha. Ele não me manda comida nem nada”, excepto algumas vezes “quando me vem visitar. Não lhe peço nada porque nunca tive esse hábito (…). Em casa cultivo um pouco de amendoim, milho e feijão mas não vendo porque nem chega para a alimentação na altura da colheita”.
Na localidade de Maciana, outro ponto que concentra mensalmente centenas de beneficiários do subsídio social básicos, encontrámos Helena Zibia, moradora do bairro Kagulane. Também não sabe ler nem escrever e muito menos a sua idade. Ela, para além de ser cega, cuida de uma menina de 10 anos de idade, que frequenta a 5aclasse na Escola Primária da Maragra. A miúda é que acompanha a avó quando esta sai à procura de meios de subsistência porque as suas filhas não tomam conta dela. “Tenho filhos, alguns desempregados, mas os que trabalham não querem saber de mim. Das mulheres, algumas estão no lar não têm como ajudar-me por falta de meios”.
Não há dados sobre o efectivo de idosos no país
O Governo, segundo Lúcia Bernardete, directora do INAS, em entrevista à nossa Reportagem, ainda não possui “estatísticas sistematizadas sobre o universo das pessoas que carecem de assistência social em Moçambique e esta é uma grande lacuna que temos no sector. No global a instituição assiste mais de 470 mil agregados familiares. (…) Não há tempo para aferir se a assistência que um certo beneficiário recebe chega para melhorar a sua qualidade de vida”.
Lúcia reconheceu ainda, pese embora parte dos idosos que estão na rua beneficiem do subsídio social básico e alguns continuam a ser pedintes, há aqueles que não são abrangidos pelo programa; porém, os seus parentes têm posses e podem muito bem cuidar deles mas não o fazem. “Culturalmente, temos de trabalhar as mentes para a valorização das pessoas da terceira idade”.