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Odisseia ao reino da timbila

Odisseia ao reino da timbila

Primeiro que tudo, venceu a música, sob as mais diversas formas de expressão acústica. Para além disso, Cheny Wa Gune e a sua timbila foram as estrelas dominantes, mais impositivas do que a ausência de público. As 500 almas que pisaram o Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM), presenciaram um espectáculo memorável.

 

 

Há uma ideia popular segundo a qual a ausência de público torna qualquer manifestação artística impossível. Sucede, porém, que as poucas pessoas que pisaram o CCFM saíram de lá com outra impressão. Ou seja, nem sempre os adágios populares servem para tudo, principalmente, quando se trata do concerto de lançamento de “Jindji Jindji”, álbum de estreia de Cheny Wa Gune – artista cuja carreira se arrasta há mais de uma década.

É algo que por si só já dava motivo para fazer um espectáculo sem público. Até porque quando se tem o dom de Cheny o sucesso não se mede pela quantidade de ouvidos numa sala, mas a qualidade desses ouvidos.

E a reconstituição das cerimónias festivas rurais através da música. Cheny retrata, com a sua música, o quotidiano do campo, as prevaricações e frustrações – o álbum podia ser uma espécie de hino dos moçambicanos, mas apenas 500 pessoas entenderam a sua sonoridade e a sua relevância sociológica; ainda assim finalmente “Jindji Jindji”nasceu.

Naturalmente, não reunirá em torno de si a unanimidade das massas entusiastas e nem o suporte das grandes empresas, acostumadas a gastar balúrdios de dinheiro com a vinda de artistas de qualidades questionáveis.

A questão é: estão as empresas moçambicanas realmente angustiadas com a quantidade de “verdade” e realismo que a música de raiz transporta (por isso a música com prazo de validade e os corpos a balançarem…) ou, em muitos casos, nada se ganha, é apenas a mania de dar valor à mediocridade?

O xitende – um instrumento de música tradicional africana – foi a ferramenta por meio da qual a música “tcamabala madowo”, de forma acústica, além de assinalar o prelúdio do concerto, os artistas encontraram uma vaga para reinventar a história do homem campestre produzindo ritmos e sonoridades que nos recordam as cerimónias festivas no meio rural. Nesta ocasião, tudo estava pronto para transformar o crepúsculo do primeiro de Abril numa noite de honras e vénias.

À sua maneira, Roberto Chitsondzo, dos Ghorwane que interpretara “xikaulane” prestava o primeiro tributo a Cheny: “Obrigado Cheny – mas como não posso fazê-lo sozinho peço a vossa ajuda – a do público – para aplaudilo”, disse. Com uma performance simplesmente encantadora, a combinação das vozes de Chitsondzo e Wa Gune conferiu, sobretudo este último, um estatuto de que não precisa reivindicar – o de verdadeiro precursor de música tradicional moçambicana na camada jovem.

À medida que os sons tomavam conta do espaço, a sala do CCFM ia-se transformando numa “aldeia cultural” em que os assobios e os gritos de júbilo do público confirmavam o seu enlevo pela “chopi timbila groove”.

Em “txigono txa Mbacone”, música por meio da qual Geraldo António Mahuaie, ou simplesmente Cheny Wa Gune, presta honra e tributo à sua fonte de inspiração – Zululwane (considerado “fantasma de Mbocone”) pela herança da música tradicional Chopi que reinterpreta em criações.

Na música, a timbila trespassava a dimensão de mero instrumento de música tradicional africana, e transforma-se em “minha vida, minha terra, minha música”. Assim, Wa Gune justifica, à sua maneira, as razões para a eleição da timbila a “património universal da humanidade”.

Para comprovar que a música não tem fronteiras e, sobretudo quando se trata do continente africano, Cheny Wa Gune convidou para o concerto duas cantoras do Reino da Suazilândia – Bongiwe e Thobile – que fizeram os coros do concerto.

Do xitende à m´bira

Se o xitende impôs, de forma meritória, o arranque da festa da publicação do “Jindji Jindji”, a m’bira – outro instrumento de música tradicional africana – levou os espectadores para outra dimensão. Com a interpretação da música “hidzumba hothselele” (o mesmo que vivendo contigo), protagonizada por Sérgio Muiambo, a m’bira demonstrou que, apesar de a timbila ser considerada património universal da humanidade, os instrumentos musicais africanos, em conjunto, são grandiosos.

E porque o conhecimento se transmite de todas as formas, Muiambo encontra em Cheny um mestre e comprova: “para mim é uma honra e privilégio actuar com Cheny”. Afinal, “quando ele fundou os Timbila Muzimba eu, ainda, era caloiro na música”.

Um mestre “Durão”

Eduardo Durão – tio e mestre de Cheny Wa Gune – ao galgar o palco para emprestar o seu conhecimento ao serviço da música, fruto de sua relação umbilical com a timbila, o palco e a plateia do Centro Cultural Franco- Moçambicano converteram-se numa verdadeira “orgia dos loucos”.

Fazendo jus ao poder e efeito contagiosos do som da timbila, o público, desejoso de dançar, não se fez indiferente. De imediato, tomou o palco de assalto, para dizer as palavras que só o corpo consegue dizê-las por meio da dança. Todavia, as aventuras não cessaram, uma vez que a noite continuava uma “criança”.

Jinjdi, o antro de Amores

Ao som do “Jindji Jindji”, dialogando com outro, um espectador desabafa: “eu gosto dessa música, não sei porquê”. Ao que o outro anui: “eu também”. Na verdade, “Jindji Jindji” é uma música que, além de resumir em tema o primeiro registo discográfico de Cheny Wa Gune, com 10 faixas, impele o ouvinte a fazer comentários egocêntricos.

Os espectadores galgaram o palco para “dar um passo para a frente”; outro “passo para trás”, afinal esta música, além de ser “sabor da mandioca” pressupõe uma “conversa e dança do amor”.

Coagidos pelo desejo egoísta do coração, os moçambicanos que acorreram ao “Franco” viram-se na contingência de homenagear um músico cuja música “alguns chamam de cultura, outros, ainda de tradição”. Ao seu criador, “eu prefiro chamar de “xikwembo porque, quando se trata de música, Wa Gune expele espíritos”, diz David Macuácua dos Ghorwane.

Publicar “Jindji” – num acto prazenteiro

Quando abordado, Cheny Wa Gune considerou que o concerto foi uma oportunidade de convívio entre duas gerações de artistas, em que familiares, amigos e artistas como Roberto Chitsodzo, David Macuácua, Eduardo Durão, Júlio Baza, Sérgio Muiambo, entre outros, constituem “as minhas fontes de inspiração, amizade e aprendizagem”. Por isso, o evento acabou por se caracterizar por muito simbolismo, porquanto se manifestou uma vontade natural de conviver, valorizando os feitos da vida.

Não menos importante é a forma pictórica por meio da qual Wa Gune, um artista que sendo mestre da timbila hoje, não deixa de ser discípulo, descreve o reencontro com o seu mestre Eduardo Durão, da seguinte maneira:

“Nunca tinha, antes, convidado o mestre. Então, partilhar o palco com ele num concerto que marca a publicação do meu primeiro trabalho discográfico é como se de um momento amoroso e afectivo se tratasse. É que, como puderam ver, ele veio bem munido para o concerto, daí que a sua actuação tornou o evento muito alegre e cheio de vivacidade”.

O coral do concerto esteve a cargo de Bongiwe e Thobile, cantoras oriundas do Reino de Suazilândia, sobre quem Cheny considera que “em termos de categoria, a opção das coristas não foi propositada. Todavia, a nível sentimental, teve como finalidade quebrar fronteiras por meio da arte e cultura”. De qualquer modo, “penso que as expectativas foram superadas, as coristas estiveram à altura”.

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