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O usuário de drogas não é criminoso

Em Moçambique o usuário da droga é tido como criminoso, à semelhança do que acontece com quem fomenta a sua venda e o consumo. Porém, na opinião de José Ferreira, coordenador nacional da Associação Desafi o Jovem de Moçambique, esta é uma percepção errada.

 

“Isso não é correcto. O usuário da droga é uma vítima, é um dependente. Criminoso é quem vende. As autoridades e a sociedade podem não estar a ver, mas o consumo de drogas tem consequências graves, tanto para a sociedade assim como para as famílias”.

 

Por outro lado, o nosso entrevistado alerta para o facto de o país ter passado de corredor a produtor de droga, o que deve constituir motivo de preocupação para as autoridades competentes, a quem acusa de nada estarem a fazer para inverter o cenário.

“O Estado pouco tem feito em relação ao consumo e à venda de drogas. Por exemplo, quais são os benefícios que o Estado concede às organizações que trabalham nesta área para que sejam um parceiro válido nesta luta? Há financiamento para as outras áreas, menos para esta”.

Jornal @Verdade (@V) – O que é a Associação Desafio Jovem de Moçambique e quando é que foi criada?

José Ferreira (JF) – A Associação Desafio Jovem de Moçambique é uma organização não governamental criada em 1990 por jovens provenientes de igrejas. O objectivo dos mesmos era trabalhar com jovens usuários de drogas, vulneráveis. O país ainda estava num contexto de guerra civil e havia jovens que abandonavam a vida militar e não tinham onde viver por estarem longe das suas zonas de origem. A solução era ficar na rua, em casas abandonadas, espaços públicos tais como jardins. As nossas acções consistiam na reinserção social e na reunificação familiar.

@V – Como eram realizadas as actividades da associação?

JF – As nossas actividades resumiam-se a quatro vertentes, nomeadamente as células familiares, a ergoterapia, a reinserção social, a reunificação familiar e actividades de prevenção.

@V – Em que consistia cada uma dessas vertentes?

JF – Nas células familiares nós tínhamos facilitadores, que era um grupo constituído pelos próprios jovens que se encontravam nas situações a que me referi. Eles nomeavam um líder, um responsável pela limpeza e alguém que respondia pela assistência espiritual. A ergoterapia é uma terapia ocupacional. Muitos caíam na delinquência porque não tinham o que fazer. Com a ajuda de parceiros, criámos o Centro de Reabilitação Psicossocial de Chihango.

Numa primeira fase tivemos 230 jovens inscritos e envolvidos em diversas actividades, tais como carpintaria, serralharia e avicultura. A componente reinserção social e a reunificação familiar consistia na promoção do regresso dos jovens vulneráveis, usuários de drogas, desertores da vida militar, delinquentes, entre outros às suas zonas de origem porque muitos deles abraçavam o crime, e preferiam viver nas ruas devido ao desprezo que sofriam na comunidade. No que diz respeito à reunificação familiar, nós tínhamos reuniões com os pais e familiares desses jovens.

O nosso objectivo era convencê-los a aceitá-los de volta. Já nas actividades de prevenção ao consumo de drogas e álcool, seleccionávamos activistas no seio dos usuários de drogas e alcoólatras. O aconselhamento era feito nas células familiares, ou seja, entre eles. Optámos por essa via porque é difícil um usuário de drogas aceitar dialogar com uma pessoa comum.

@V – Porque é que o centro de reabilitação fechou?

JF – O centro abriu em 1992 e funcionou até 1997. Encerrou devido à mudança da política dos doadores. Ele tinha sido criado num contexto de emergência. O país estava em guerra, e com o seu fim eles (os doadores) acharam que já não se justificava a sua continuidade.

@V – Isso foi um revés aos objectivos que a associação tinha traçado…

JF – Sem dúvidas. O encerramento do centro de Chihango teve consequências negativas porque era o único cujas actividades estavam viradas para a reabilitação e reinserção de usuários de drogas. Depois do seu encerramento, as Nações Unidas aconselharam-nos a criar, em coordenação com outras associações, a UNIDOS (Rede Nacional Contra a Droga), que agora tem delegações em todo o país.

@V – A associação foi criada numa altura em que o país estava em guerra. Com o seu fim houve uma redefinição dos objectivos ou mantiveram- -se os mesmos?

JF – Com o fim da guerra, outros desafios impuseram-se. Tivemos de abrir novas frentes. Temos o VIH /SIDA, o aumento da criminalidade, o desemprego, entre outros. É evidente que tivemos de traçar novos objectivos.

@V – Quais foram os objectivos traçados?

JF – Traçámos quatro objectivos, nomeadamente (1) assegurar uma ocupação útil dos jovens nos tempos livres, (2) desenvolver habilidades e competências profissionais, (3) inserção no mercado de emprego, e (4) desenvolver actividades de prevenção no contexto do VIH /SIDA, álcool e drogas.

@V – Pode falar de cada um dos objectivos?

JF – Há falta de ocupação por parte dos jovens e isso acaba por “empurrá- -los” para o álcool e para as drogas. O seu rendimento escolar baixa. Por isso apostamos na racionalização dos tempos livres dos jovens. Ministramos cursos profissionais de curta duração, tais como gestão bancária, secretariado, montagem e reparação de computadores, gestão e administração de empresas, línguas, relações públicas e marketing, entre outros. Mas os cursos não são gratuitos.

Apesar de não termos fins lucrativos entanto que organização, eles têm de comparticipar para que possamos ser sustentáveis. Em relação à inserção no mercado de emprego, nós temos duas linhas, nomeadamente os estágios profissionais em empresas parceiras da organização para os melhores alunos de cada curso. A segunda linha consiste na absorção ou contratação dos nossos graduados através da Unidos Rede, uma congregação composta por 84 organizações não governamentais.

A componente de prevenção é desenvolvida a nível das escolas secundárias. No ano passado seleccionámos 30 jovens de 15 escolas. Eles foram formados em matérias de prevenção ao consumo abusivo de drogas e álcool. Depois tiveram de trabalhar nos estabelecimentos de ensino de que eram provenientes. Auferiam um subsídio mensal de 3.000,00 meticais financiados pela Organização Mundial Contra Drogas e Crime (NODIC) É importante frisar que todas as nossas actividades têm o jovem como alvo.

@V – Qual é a situação do jovem em Moçambique?

JF – É delicado falar do jovem em Moçambique e da sua situação. Por mais que tenha uma formação superior, acaba por não ter emprego. Não há uma abertura política. Há que resolver os problemas desta camada. Apesar de haver um slogan que diz que eles são a “Geração da Viragem”, os seus valores estão comprometidos. Isso deve- -se, em parte, à influência dos meios de comunicação social, que transmitem hábitos e comportamentos não correctos.

Há também influências nas comunidades. Para mim, não faz sentido que tenhamos barracas situadas ao lado de uma escola. Por outro lado temos a criminalidade, que está associada à pobreza e à falta de ideais. Os jovens não racionalizam o seu tempo livre. Reconheço que os jovens de hoje são empenhados, principalmente a rapariga. Mas a sua situação é delicada. Há muito que se fazer para melhorá-la.

@V – Como inverter esse cenário?

JF – Não basta elaborar políticas. Há normas que são instituídas num gabinete e que podem não corresponder às expectativas dos jovens. Devemos enquadrar o jovem em várias vertentes. Diz-se que esta camada é a “seiva da nação”. Embora isso seja questionável, será que ele está a ser ouvido? Tem as suas preocupações atendidas? A nível político, o jovem tem facilidades? Sei que existem facilidades, mas será que são para todos? Foi criado o Pro-Jovem, mas será que são todos os jovens que dele beneficiam? Não serão os que vestem umas camisetas com cores e símbolos partidários? O ProJovem serve a elite, a pessoas que nem precisam daquele dinheiro. Nós, a Organização Desafio Jovem de Moçambique, por estarmos a trabalhar com jovens, sentimos que eles estão empenhados, têm vontade de trabalhar, de fazer algo, mas não têm oportunidades.

@V – E em relação à droga, que é um inimigo a combater por parte da organização?

JF – A droga é um problema muito sério no nosso país. Nós passamos de um corredor para um país produtor de drogas. Por exemplo, na Vila Algarve, vivem jovens vulneráveis, mas também há consumidores de drogas. Eles podem ser uma réplica dos bairros Militar, Maxaquene, Mafalala, entre outros.

@V – Quais são as drogas mais consumidas em Moçambique?

JF – A Cannabis Sativa, vulgo soruma, o mandrax e a cocaína. Temos cerca de 2000 jovens que por semana passam pelas “bocas de fumo”, que são os pontos de venda e consumo de drogas. O mais preocupante é que 70 porcento deles são seropositivos. Isso deve-se à partilha de seringas, e à prática de relações sexuais desprotegidas sob o efeito de drogas. Esse é considerado um grupo de alto risco.

@V – E o que é que o Estado está a fazer para inverter essa situação?

JF – O Estado criou o Gabinete Central de Combate à Droga, que trabalha na componente política e do crime, para além de coordenar as organizações da sociedade civil que lidam com o problema. Por outro lado, o grupo de usuários de drogas não era considerado de alto risco, mas sim criminoso.

Para nós isso não é correcto. O usuário da droga é uma vítima, é um dependente. Criminoso é quem vende. As autoridades e a sociedade podem não estar a ver, mas o consumo de drogas tem consequências graves nas famílias. O usuário leva bens para vender, espanca o parceiro ou os progenitores, entre outras situações pouco abonatórias.

@V – Mas o papel do Estado faz-se sentir?

JF – Não, não se faz sentir. Pouco tem feito em relação ao consumo e à venda de drogas. Por exemplo, quais são os benefícios que o Estado concede às organizações que trabalham nesta área para que sejam um parceiro válido nesta luta? Há financiamento para as outras áreas, menos para esta. E nós estamos a ignorar as consequências disso. Temos casos de raptos, violações, casas abandonadas que são ocupadas por jovens drogados, dependentes do álcool. Isso deve constituir motivo de preocupação por parte das nossas autoridades.

@V – Consta que os usuários de drogas, quando têm de ser submetidos à desintoxicação, são internados no Hospital Psiquiátrico de Infulene…

JF – Sim, é o que acontece, mas isso não é correcto. Por mais que o usuário queira submeter-se a um tratamento, ele sente-se desmotivado só de saber que será internado no Hospital Psiquiátrico de Infulene. Ele não é um doente mental. A sua doença tem uma natureza diferente. O Estado devia trabalhar e incentivar as organizações que já têm centros enquanto cria os seus. O Hospital Psiquiátrico de Infulene não oferece condições e nem devia atender ou acolher o usuário de drogas. Isso inibe o indivíduo.

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