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O trabalho desprezado

É considerada uma profissão medíocre, que não exige nenhuma formação técnica e, por vezes, não é necessário ter um grau de instrução. Basta apenas saber sofrer, entregar-se arduamente ao trabalho, ter aptidões para exercer todo o serviço que for ordenado, receber os enfermos e encaminhá-los para as respectivas salas de tratamento médico, arrumar e trocar roupa de cama – não importam as condições higiénicas em que estiver – remover o lixo hospital, lidar com os excrementos humanos, sangue, urina, vómitos, cadáveres, dentre outras situações que só são lembradas a posteriori, em casa, na altura em que um prato de comida, conseguido com tanto sacrifício, chega à mesa. Assim tem sido o dia-a-dia dos auxiliares dos serviços prestados nos estabelecimentos hospitalares.

Os serventes de uma unidade sanitária exercem uma tarefa deveras árdua e, segundo as suas declarações, são destratados e humilhados pelos seus superiores hierárquicos, os seus salários não passam de 3.000 meticais mensais, em 30 anos de serviço dificilmente conseguem construir uma casa e a sua maioria atinge a idade da reforma sem nada de que se possa orgulhar, durante a aposentadoria, de ter sido um quadro da Saúde.

Esses profissionais encarregues de manter os estabelecimentos onde se recebem e tratam doentes num ambiente limpo e organizado queixam-se de uma desvalorização generalizada do seu trabalho e reivindicam consideração e dignidade. Jorge Fulano é servente no Hospital Geral de Mavalane, mas neste momento está afecto ao Centro de Saúde do Bagamoyo.

No seu local de trabalho faz quase tudo: limpa o soalho, encaminha os doentes e os feridos em camas portáteis para as medicinas a fim de serem atendidos pelos médicos, cuida dos pacientes, empurra as macas transportando os cadáveres para as morgues, dentre outras tarefas que abrigam a que esteja exposto a vários riscos contra a sua saúde mas nem assim é valorizado ou estimulado.

“Um dia, no meu posto, um chefe afirmou que se nós (serventes) não quiséssemos trabalhar não havia problemas porque se podia dirigir ao mercado de Xipamanine a fim de recrutar outras pessoas com capacidade para exercer as mesmas tarefas que nos tinha atribuído. Isso significa que somos considerados desprezíveis e inúteis”, desabafou Jorge Fulano.

Num outro desenvolvimento, o interlocutor do @Verdade afirmou que as condições em que ele e os colegas que exercem a mesma actividade labutam não são das melhores, sobretudo nas enfermarias.

“Nós é que lavamos as roupas de cama, limpamos o chão e os locais onde se instalam os doentes ou se atendem os feridos ou lesionados. Já imaginaram o que seria desses lugares sem a nossa presença?”, perguntou Fulano, para quem a casa na qual vive foi construída com muito sacrifício, juntando dinheiro proveniente de xitique.

O seu maior anseio é a sua remuneração passar dos actuais 3.000 meticais para 10.000 meticais e ver o comportamento dos chefes das diferentes áreas da Saúde mudado em relação aos serventes.

Alguém imagina como é que são os lençóis da maternidade?

Com uma voz trémula, olhos esbugalhados, reluzentes e prestes a derramar lágrimas, Guilhermina Xirindza, funcionária do Centro de Saúde de Xipamanine, há 30 anos, disse-nos que para ser auxiliar do sector de higiene numa unidade sanitária é preciso estar em condições de lidar com muitas coisas, sobretudo com a sujidade, falta de respeito por partes dos chefes e ainda receber salários baixos.

“Tenho 30 anos de serviço como servente, o meu salário é de 3.000 meticais e só progredi uma vez, por isso, não faço ideia em que escalão estou enquadrada. Somos discriminados, mas um médico e um enfermeiro sem o servente fazem os seus trabalhos com muitas dificuldades porque para acederem ao paciente dependem nós.”

Rosália Romão é empregada do Hospital Central de Maputo (HCM), na área da lavandaria, há quatro anos, nunca foi promovida e o seu vencimento é de 2.500 meticais. Já submeteu documentos a pedir uma progressão na carreira mas até o presente não obteve nenhuma resposta.

“É obrigatório que eu me levante da cama às três horas e meia de madrugada para até às cinco horas e 30 minutos estar no serviço. A partir das sete e meia não é possível selecionar os lençóis por lavar um a um e antes de se fazer qualquer coisa é preciso verificar se têm agulhas ou não para evitar incidentes. É um trabalho pesado e com riscos de contrair doenças.”

Segundo a nossa entrevistada, antes de levar cada uma das duas peças que se colocam na cama por cima do colchão e sob o cobertor para a lavagem é igualmente necessário separar os lençóis com urina dos que contêm excrementos humanos e sangue.

“Imagine como é que são os lençóis da maternidade. Tenho de tomar o máximo de cuidado para não apanhar doenças. Esta nossa tarefa é dolorosa mas não é valorizada. As máscaras que usamos no nosso meio de trabalho não são próprias para o tipo de actividades que exercemos não impedem que inalemos o mau cheiro da roupa das enfermarias. Corremos o risco de contrair tuberculose e eu tenho uma constipação que não passa. A verdade que seja dita, gostaria de mudar de emprego.”

“Não somos considerados importantes…”

Margarida Hamela, afecta ao Hospital Geral de Mavalane, disse que faz parte do turno das sete às 19 horas mas ganha 3.000 meticais, “apesar de lidar diariamente, há 22 anos, com excrementos humanos e outro tipo de sujidade que me deixam indisposta. Não somos considerados quadros importantes para o funcionamento de uma unidade sanitária. Todos os dias para chegar ao meu posto faço ligações. Tenho um filho que está a dever uma disciplina para concluir a 12ª classe, mas quando o aconselho a continuar a estudar pergunta com que dinheiro vou pagar a instrução dele quando a minha remuneração em muito pouco consegue satisfazer as necessidades alimentares da família.”

Tudo tende a piorar…

Há sete anos, Marta Sarmento formou-se como enfermeira de Saúde Materno Infantil (SMI) e é profissional há cinco anos. Na sua opinião, desde que está na área da Saúde tudo tende a priorar: as condições de trabalho, o material médico e a situação do próprio doente não são das melhores.

“Quando chego ao meu local de trabalho encontro 50 doentes à espera de serem atendidos e olham para mim como a solução para os problemas que lhes apoquentam. Perante esse número de pacientes, devo repartir a minha atenção por todos no sentido de atender cada um segundo as suas necessidades nesse momento por vezes, estou cansada e com sono”, contou-nos Marta, tendo acrescentado que, apesar da falta de meios para a sua actividade, como profissional faz alguma coisa para aliviar o sofrimento dos enfermos que ficam horas a fio de olhos fixos no seu rosto, alguns a implorar por tratamento.

Os doentes ficam uns debaixo dos outros

De acordo com a nossa interlocutora, os gestores dos hospitais têm sido insensíveis às preocupações dos enfermeiros com vista a garantir um atendimento médico digno aos doentes.

“Quando reclamamos da falta de meios de trabalho os nossos superior hierárquicos respondem- -nos com insultos e somos aconselhados a não parar de trabalhar por falta de meios. Não temos material de protecção para nós nem para os doentes, faltam luvas e máscaras. As camas e os lençóis não chegam para todos os enfermos. Destes alguns são postos debaixo dos leitos dos outros e nos corredores. Mas em nenhum momento ficamos de braços cruzados, procuramos meios alternativos. Eu pessoalmente fico perturbada por saber que perante essas adversidades tenho a obrigação de assegurar a vida dessas pessoas até o sol raiar. Mas que estímulo tenho? Nenhum.”

“Na minha área devo usar o mesmo par de luvas para, de duas em duas horas, atender um doente. Perante essa falta de condições de trabalho, exponho a minha saúde e do doente ao risco. Normalmente estou numa escala sozinha, à noite, mas o ordenado é de 5.800 meticais. A fadiga é total…”

Alguns perigos

Marta Sarmento contou-nos alguns episódios que se deram há anos. Segundo ela, um doente teve um desequilíbrio patológico no controlo das suas emoções e dos impulsos e manifestou um comportamento anti- social. Consequentemente, pretendia atirar-se pela janela a partir de um dos andares do HCM. Todavia, a enfermeira, corajosa, interveio para proteger a vida do paciente e nada de grave aconteceu.

Entretanto, há três anos, Marta contraiu uma lesão (já cicatrizada) quando salvava uma parturiente que numa madrugada sofreu um surto de psicose e, para além de ameaçar os outros doentes, saltou da cama e com as próprias mãos quebrou o vidro da janela na tentativa de se atirar da mesma. “Agarrei no paciente no sentido de evitar um acidente mas feriu-me com um estilhaço de vidro que trazia. Por pouco perfurava-me o abdómen.”

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