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O que os mendigos fazem em tempos de crise?

O que os mendigos fazem em tempos de crise?

Rejeitando a fraca integração social e a discriminação de que a pessoa portadora de deficiência física ainda é vítima no país, em “Cavaqueira do Poste”, um diálogo teatral executado por Diaz Santana e Sérgio Mabombo, sob direcção cénica de Elliot Alex, os actores exaltam a importância do trabalho.

Com a mestria peculiar de que se reveste a alma, os artistas moçambicanos não perdem o seu objectivo de vista: acompanham os bons momentos da literatura nacional para mesclar no enredo dois recursos estilístico – a metáfora e a ironia –, com alguns géneros literários – a narrativa, o drama e a comédia.

A finalidade da peça tinha em vista provar que, ao contrário do trabalho por que os moçambicanos clamam, a cesta básica, entre outros subsídios que o Governo inventou, é um mero atenuante diante da crise financeira que o mundo experimenta. E tem mérito, porque fazem-no recorrendo às pessoas portadoras de deficiência física e visual. Trata-se de Tendeu (com ambos, os membros superiores amputados) e Calvino (deficiente visual).

Em cena os actores, que interpretam a história de dois mendigos abandonados na rua, à sua sorte, inventam e reinventam continuamente estratégias para convencer os cidadãos a ofertar-lhes alguma esmola. Mendigando – dizem que – estão a trabalhar.

“Vamos trabalhar – pedir esmola – para que não morramos de fome”, diz Sérgio Mabombo, que na peça interpreta Calvino, ordenando ao seu comparsa, Diaz Santana, ou simplesmente Tendeu, mendigo de braços amputados.

Enquanto isso, o lixo depositado nos contentores deixa de o ser, transformando-se em “doações de alimentos” para os mendigos. “Tendeu, foste ao contentor ver se alguém fez uma doação de comida para a gente? E para a Baixa? Foste para a Baixa ver se os “mabanianas” estão a distribuir o pão das sextas-feiras ?”, questiona Calvino.

Consumismo Profissional

Partindo de um problema universal – a crise financeira e alimentar global – cujos efeitos não poupam os chamados países do terceiro mundo, como Moçambique, os actores despoletam na sua psicologia de experimentação uma série de problemas sociais de que enferma a nossa sociedade, como é o caso do consumismo profissional – esta tendência que alguns profissionais de diferentes ramos de trabalho têm de abocanhar várias funções em diversas áreas, em detrimento de outros colegas.

O resultado é que nada sai perfeito. Pior ainda, as sequelas que daí decorrem são fatais. No caso de Calvino, valeu-lhe uma disfunção visual – a cegueira.

Conforme a obra, se em determinada área profissional – a mecânica, por exemplo, um técnico de bate-chapa é excelente, nada nos garante que o mesmo pode sê-lo na pintura. A tenebrosa história de Calvino que terminou em cegueira exemplifica bem a “tragédia” daí decorrente. Pior ainda, é que não só afecta o profissional, como também a sua família e, por extensão, o desenvolvimento económico e social do país.

Sequelas da “Guerra dos 16”

Noutro prisma, se, por um lado, a guerra dos 16 anos terminou há cerca de 20 anos, urgindo, por conseguinte, cultivar-se continuamente o espírito da paz e a unidade nacional no país, por outro, alguns efeitos que ela produziu mantêm-se indeléveis. No caso dos deficientes, tanto da guerra dos 16 anos, como das últimas explosões do paiol de Mahlazine em 2007, em “Cavaqueira do Poste”, Tendeu, a personagem sem membros superiores, é um exemplo vivo.

Ele conta: “Os bandidos chegaram à aldeia e queimaram todas as casas. Quando chegaram a minha casa mataram o meu pai. A minha mãe carregou o bebé e foi esconder-se atrás da casa. E depois, o bebé começou a chorar”. Em cena, tais bandidos matam-lhe a mãe, para logo depois obrigarem-no a matar o irmão – algo que, não tendo feito, valeu-lhe a perda de braços. Abandonado, “agora estou na rua e ninguém me ajuda”, lamenta o enfermo.

Riqueza para cães, pobreza para homens

“Um cão, se tiver a sorte de pertencer a um bom dono – o que é frequente hoje em dia,” vive melhor que os seres humanos. Afinal, em sociedades modernas, “os poderosos encarregam as pessoas de dar banho ao cão; fazer-lhe compras em supermercados”. Exemplo disso é que, conforme Tendeu, há, em Maputo, hotéis cujo acesso é coarctado ao homem a favor de cães.

“Quando eu cheguei vi um senhor que estava a ser proibido de entrar no hotel, porque estava mal vestido, mas ao mesmo tempo, outro entrava com os seus cães”, conta o actor completamente apavorado.

Portanto, de mera “situação de espírito, aquilo que nós – os mendigos – sentimos dentro de nós, quando temos uma coleira que nos prende ao poste”, em “Cavaqueira do Poste” “ser cão” evolui para uma situação bem favorável, valendo a pena ser-se um indivíduo bajulador para singrar na nossa sociedade. É por isso que, reconhecendo as vantagens que alguns “cães”, servis, possuem, Tendeu assume que é melhor ser, antes, um cão rico, do que homem pobre.

Mais displicente é que, para os actores – ambos deficientes –, “a sociedade nunca será capaz de nos ver como seres humanos, tão-pouco como cães”. Na impossibilidade de singrar, os actores revelam que o melhor é ser um “lambe-botas”. Todavia, o casal Guebuza – para quem Calvino gostaria de pertencer como cão – “já tem dono, um escovinha”.

Providencialismo Medieval

Embora destinada a uma intervenção social rápida, a “Cavaqueira do Poste” é uma fonte de conhecimento social, filosófico e mitológico em que, com base numa abordagem racional em volta das causas da crise financeira global, com Tendeu a defender a miséria e a má distribuição das riquezas entre os homens, e Calvino, a sustentar que os nascimentos são maiores que os recursos disponíveis, como as causas da crise, os actores “desaguam na burlesca história providencialista da idade média”.

“É que o Drumond Galaska não volta. E se ele não voltar, nós vamos permanecer nesta situação”, assinala Calvino metaforizando o providencialismo que se vivia na idade média. Parao efeito, os actores travam junto ao poste uma cavaqueira, ou seja, “uma conversa amena e civilizada” a vida inteira, aguardando “o milionário Drumond Galaska”, cá entre nós uma entidade divina, “o qual dizem ter-lhes prometido tirar da pobreza”.

Outro aspecto não menos importante é que, olhando para os dias actuais em “Cavaqueira do Poste”, os actores tentam “endireitar o desfasamento entre os pobres – ociosos – e os ricos – gulosos”, como afirma o director artístico da obra, Elliot Alex, o qual é secundando por Calvino em cena:

“Na verdade, comparando com o que eles têm (os ricos, nós – os mendigos ou pobres) não precisamos de muito. Precisamos de um pouco de respeito, dignidade e do pão de cada dia”.

Exibida no último fim-de-semana, a “Cavaqueira do Poste” é, portanto, a primeira peça que marca o nascimento de mais uma colectividade teatral no país. Em Maio, irá protagonizar uma exibição no âmbito do Festival de Inverno que arranca, brevemente, em Maputo.

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