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“O que é ser moçambicano?”

Quando em certa ocasião, Samora Machel – o primeiro Presidente de Moçambique independente – considerou que os moçambicanos eram um povo que sabia o que queria, ser feliz, disse-o porque tinha a consciência do que era “ser moçambicano”. Nos dias que correm, será que eles sabem que sentido que isso produz? Nunca antes uma pergunta fez sentido como agora…

 

No dia 19 de Outubro, data em que se assinalou a passagem do 26º ano após o desaparecimento físico de Samora Moisés Machel, a temperatura comportou-se bem na cidade de Maputo.

 

Tratando-se da terceira Sexta-feira do mês, como mandam os costumes e a tradição da instituição, todos os caminhos de uma parte da juventude da capital – sobretudo a que possui alguma sensibilidade em relação à palavra e ao seu poder – deslocou-se ao Instituto Cultural Moçambique-Alemanha a fim de ouvir o recital de Poesia de Combate.

A casa ficou lotada, na verdade as pessoas encontravam- -se ensardinhadas – como acontecia nos barcos negreiros da secular exploração esclavagista – mas a única diferença é que aqueles jovens consentem que assim seja. Para eles, ouvir aquelas palavras poéticas que fermentam a emoção social tem um valor sublime. Talvez seja por isso que têm uma relação de genuína fidelidade com o ICMA.

Muito se disse e, provavelmente, quantidade similar de conhecimentos foi apreendida. Os artistas expressaram a sua revolta em relação a uma sociedade que – pela sua natureza mercantil – se manifesta opressora. Chegou-se a ter dúvidas sobre o sentido do que é ser moçambicano – como a cantora moçambicana Iveth expôs no seu recital.

Mas antes, ela também desenvolveu um tema que – enquanto constituir a base real da vida das comunidades – se mantém actual e interessante.

O mito da Catembe

Em resultado dos seus sonhos tenebrosos – caracterizados pelo facto de as mulheres gordas, os cidadãos menos instruídos, os impacientes invejarem respectivamente a sua elegância, inteligência e tolerância – mas acima de tudo por lhe terem “roubado” o seu marido tendo, como resultado disso, ficado com a responsabilidade de – no seio da miséria – criar os seus filhos sozinha, a cantora moçambicana Iveth Mafundza recitou a história de uma mulher que se desloca a Catembe à procura de apoio.

“Fui ter com os tradicionais espiritistas, os homens da noite, verdadeiros artistas, os conhecedores das causas ocultistas”, afirma e justifica, “porque me perseguem aussiku/ Não me querem ver eu Kamatiku/ Vovó me diz que fazer, nem que eu tenha que dançar Mapiku/ Vovó mina no tirha, trabalho eu/ consegui tudo com muito trabalho, força que Deus me deu/ O que aconteceu? Como é que tudo desapareceu?”

Serão todos estes motivos que, na criação literária de Iveth – à semelhança do que geralmente acontece na vida – animam o comportamento de uma mulher que de forma apreensiva insiste para que “me diz a mim esse azar vem de onde? Não me esconde vovó?”, até que no decurso da consulta ficou a saber que “aquela tua vizinha não gosta de ti”. Uma série de transformações grotescas na vida da aludida mulher – com base no dito pressuposto – podem ser imaginadas.

A verdade é que, feito o tratamento, a situação normalizou- se, a felicidade hipotecada instalou-se na família, mas o problema é que amanhã, na próxima semana, no próximo mês e ano, a mulher teria de ir continuamente à Catembe.

O que é ser moçambicano

Desta forma, como é evidente e por diversas razões, a Catembe é mistificada. Conquista um outro valor sob o ponto de vista de representação das práticas, dos rituais, das tradições e da cultura de parte importante do povo moçambicano.

De qualquer modo, o problema de fundo para Iveth é muito maior ainda – o ser moçambicano. É este tópico que irá animar a sua produção artística fecundando uma série de possibilidades de respostas-questões como, por exemplo, as que se seguem.

“É levantar o punho e gritar que tenho orgulho da minha terra? É apaixonar-se pela história. É falar acerca dos nossos heróis. É concentrar-se em Lourenço Marques com o novo AKA Maputo? É crescer no gerúndio, ouvindo, sentindo, repetindo o que eles te dizem enquanto eles se vão rindo? É menosprezar a verdade que vem vindo?”

“É usar capulana e cumprir tradicionalismos? É sofrer calado por gerações para manter intactas as tuas raízes e teus amadorismos? (…) É não ver? Não ouvir? Não falar? Sem mesmo seres deficiente? É não te expressares não obstante a tua dor?”

Num outro desenvolvimento, Iveth explorou o discurso oficial sobre a geração da riqueza – ou simplesmente o empreendedorismo – para realçar, novamente, colocar a sua dúvida sobre o que é ser moçambicano. “É sonhar materialmente e acordar precariamente?

É acreditar nas promessas que nunca chegam e chegarão com a eternidade? É procurares a liberdade que te acorrenta ao sistema e suga a tua dignidade? É seres do pró e te esqueceres de seres tu?” “É seres predestinado a viver à margem, como os indianos e as suas castas em Moçambique à moda “mulandi?”. É não teres a coragem de ser a próxima vítima ou o próximo grande?

É seres líder em discurso e invocares a auto-estima? É seres rico em recursos que o pseudopoder legitima? É dizeres que tu, globalizado, tens amnésia da tua tradição, da tua cultura?”

No seu texto, esta cantora, que se revela uma verdadeira poetisa, capta uma série de loucuras que se instalam no espaço social para criticar as pessoas que possuem formação no sector e não dão a devida resposta.

Por isso, moçambicano significa “ser o doutor dos ricos? O sociólogo das elites? É ser polígamo, machão e viril como tsunamis pelas cidades sem limites? (…) É ser “cizentinho”, magrinho, coitadinho que nos pede um “refresquinho” porque não tem nenhum “trocadinho”? É garantir a ordem em locais públicos sem meios e sozinho? É ser aquele que protege e não tem protecção? É ser aquele que prende o ladrão e no dia seguinte o vê em circulação?”.

Para Iveth pensar na dimensão do ser moçambicano é também reflectir em cada um de nós, pobres, ricos, empregados, desempregados em todos os locais onde nos encontramos, incluindo a forma como nos comportamos. Talvez seja por essa razão que a sua dúvida sobre o assunto prevalece. “É ser um funcionário público, dorminhoco, “jornalesco”, “chaciado”, aliás, viciado em chá? (…)

É esperar pelas regalias e direitos e esquecer os deveres? É ser o oposto? (…) É sair as 15.30H e uma hora antes estar preparado para embora ir? É ver o nosso povo que procura os serviços públicos e quase nunca a sorrir?”

Depois de todo este roldão de questões que convidam à reflexão, Iveth considerou que “ser moçambicano é tudo isto. É ser bom e o mau da fita. É ser o deus e o diabo sonita? (…) Ser moçambicano é, acima de tudo, reconhecer os erros de hoje e comprometer-se a corrigi-los amanhã. (…) Na verdade, é dizer sim, eu sou moçambicano, e com a minha coragem, amanhã, comprarei de volta o Moçambique que vende hoje”.

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