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Milsa Ussene: “Uma mulher no combate!”

Nas três histórias essenciais do seu percurso artístico como actriz, a maior parte é funesta e imoral. Viveu no seio de uma família indiferente e cúmplice do comportamento incestuoso do seu pai – que abusara sexualmente da sua irmã. Foi horrível saber que isso aconteceu. Na sua mais recente experiência – agora como vítima do mal, o incesto – Milsa Ussene (Matilde na obra) assassina o progenitor que abusou dela por longos anos. Se não for controlada a violência doméstica e a sexual, muito mais menores assassinarão os pais…

 

Conhecemo-la em 2010, altura em que, orientada por Lucrécia Paco, participou em A Virgem – um espectáculo teatral em que se denunciava um problema social que, por muito tempo, se não era/é escamoteado, é evitado como se não existisse – chamando a atenção não somente das consequências que emanam do abuso e exploração sexual entre parentes, como também da queda da moralidade no país.

 

No ano seguinte, 2011, desta vez sob direcção artística de Elliot Alex, no Grupo de Teatro Luarte, Milsa Ussene fez uma pausa na sua campanha contra o abuso sexual de menores para interpretar uma das mais empolgantes histórias do escritor moçambicano Mia Couto, “Terra Sonâmbula”.

Consciente da premência que as mensagens que emite possuem para a resolução de determinados conflitos, esta artista, de 20 e poucos anos de idade, colocou a si, muito recentemente, um novo desafio com tremendas implicações na sua vida (superar os seus próprios medos), protagonizando a obra Lá Na Morgue.

A actriz participa numa peça de teatro em que convive com um homem que – por trabalhar na morgue – quando pretende manter relações sexuais consigo (porque por várias vezes no seu emprego o sujeito relaciona-se com mortos) ministra-lhe um veneno para torná-la morta por alguns tempos. O seu marido é um louco, mas a sua loucura pode ter motivações.

É acerca destes assuntos, cujo tratamento apesar de premente, invariavelmente, é adiado que – ainda que aconteçam na sociedade são interpretados como sendo tabus – Milsa Ussene discute na nova obra em que participa.

“Houve momentos em que eu me assustei e chegava em casa a chorar: Milsa o que é que estás a fazer? Será que estás no caminho certo? Será que o trabalho que estás a fazer se relaciona com a tua vida e de que maneira isso irá influenciar-te? Como é que eu iria criar a personagem e engrenar nela se tenho medo da morte?”, considera Milsa que realça que muitas questões se instalaram na sua mente antes de aceitar o convite para interpretar o papel da esposa do “morgueiro”.

A interlocutora diz que desde que começou a ensaiar a peça Lá Na Morgue, a sua vida mudou de forma acentuada. “Passei a frequentar mais a capela e o cemitério. Colhi mais informações acerca da vida na morgue, das relações laborais entre os “morgueiros” e os cadáveres. Em certo sentido, superei alguns dos meus medos”.

Ou seja, “o que Milsa sublima como efeito do teatro é o valor terapêutico que a arte possui. Muitas vezes, nós temos uma ideia distorcida do que seja terapia, entendendo-a como se fosse, unicamente, a realização de uma longa sessão com um psicólogo ou psicanalista. As artes também têm uma função terapêutica”, considera o autor da obra.

De qualquer modo, o que nos chama a atenção nesta jovem actriz é a batalha que trava em relação à defesa dos direitos humanos e sexuais das pessoas – sobretudo dos menores de idade.

Trata-se, na verdade, de uma luta que devia ser travada por todos nós, a sociedade. Basta que se tenha em mente que “a violação sexual de qualquer que seja a pessoa é um acto sórdido, muito mais vil ainda quando se trata de um comportamento incestuoso. Ninguém merece passar por isso, como nenhuma outra pessoa tem o direito de infligir a outra a dita experiência”.

Certas pessoas fazem isso motivadas por alguma psicose ou fraqueza. Procuram um espaço onde (pensam que agindo assim) se podem sentir heróis. Suspeita-se que actos desta natureza são movidos por crenças supersticiosas ou mesmo por falsas expectativas de acesso à riqueza daí resultantes.

Por exemplo, é dito a uma pessoa seropositiva que se se relacionar sexualmente com uma menor virgem a sua doença é curada, e o sujeito comete tal acto hediondo. Quando o acto libidinoso passa para o conhecimento público ou da comunidade, nenhuma medida de sanção exemplar é-lhe ministrada. A maldade prevalece e glorifica-se.

É essa situação de indiferença e cumplicidade social que Milsa (desde que a conhecemos) procura combater. Sobretudo porque, segundo diz, “isso acontece num circuito familiar, em que os infractores abusam os seus próximos cujos pais ou outros defensores legítimos, em resultado das relações que se estabelecem entre estes, não acreditam que os violadores perpetraram os ditos vitupérios”.

Há muita cobardia nas famílias em relação ao incesto, à violência doméstica, incluindo o abuso sexual de menores. O receio é instigado pelo facto de os potenciais denunciantes – que geralmente constituem o grupo de vítima dessa promiscuidade – não possuir poderes sobre a sua vida.

Receiam perder determinados privilégios que o infractor, em certo sentido, lhes garante. No entanto, em tudo isso, o pior é que – mesmo que se ganhe a coragem de expô-lo publicamente – na semana seguinte o prevaricador, que prova a inoperância da justiça moçambicana, é visto a circular na praça.

Por fim, a actriz fez um apelo. “Devemos denunciar actos do género. Mas a polícia – por sua vez – também deve punir exemplarmente os infractores. Todas as partes do sistema social (a família e as demais instituições) devem funcionar. Se os pais não reservarem tempo para conversar devidamente com os filhos a fim de apurar o que está a acontecer neste campo, os infractores continuarão a agir de forma livre”, adverte Milsa.

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