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Pandza: O primeiro tiro

Não havia vento e os grilos impacientavam-se. A caroço de Adão moveu- se quando um fio de saliva densa escorreu-me lentamente goela abaixo. O suor cresceu-me dos poros e deslizou uma gota pelo rosto. Os trajes camuflados enchiam e vazavam na dança inquieta da respiração.

No peito, os batuques cardíacos contavam os segundos. O silêncio estalou quando engatilhei a espingarda. Terna, a mão esquerda segurava o cano comprido. O metal mortífero da baioneta luziu como se fendesse o escuro da noite. O dedo trémulo acariciou a ferrugem do gatilho. Nem sequer pestanejava. Tinha o alvo na mira.

Expectante, o tempo tinha parado à minha volta. O luar não se mexia. O vento acomodou-se na plateia de penumbras. Para disfarçar, os arbustos tremelicavam a folhagem fingindo que o vento andava por ali. Era a minha primeira vez. O meu primeiro tiro.

Percebi que tremia e não seria bom para a pontaria. Precisava de me acalmar. Respirei fundo. Recapitulei os mandamentos militares. Revina memória os manuais da minha formação. Limpei com as costas da mão o suor que me estorvava a visão. Quando voltei à mira já o meu alvo não andava por ali. Apontei a minha espingarda para um lado e para o outro, procurando o meu alvo, mas nada. Tinha desaparecido nas sombras da noite.

O alvo era a sentinela inimiga que eu tinha a orientação de abater, naquela que seria a minha estreia em disparos a sério. Pacientei na companhia de mosquitos a segredarem-me zumbidos e a deleitarem-se com um cocktail de suor e meu bom sangue.

Ouviu-se, de longe, uma porta a ranger e o vulto da sentinela reapareceu do escuro. Enquadrei-o o melhor que pude na mira, pronto para o tiro. Não disparei ainda porque percebi fragilidade naquele vulto, e eu não fora treinado para matar criaturas frágeis. Aquele sentinela pisava o chão com a leveza inconfundível de uma mulher! Hesitei porque, até onde eu sabia, a guerra é um jogo de virilidades, e mulheres não eram para ali chamadas.

Quando a vi caminhando entre as sombras da noite, com um ar mais doméstico que bélico, ocorreu-me o que ocorre aos humanos sãos, quando se tem um alvo na mira: vergonha. Vi-me estático, paralisado, e senti o corpo gelar quando percebi que caminhava na minha direcção.

De perto a luz já mostrava as suas feições. Era bonita e formava um belo conjunto com a natureza ao seu redor. Como todo o homem diante de uma mulher bonita, perdi a valentia e baixei lentamente o cano da espingarda. Ela sorriu.

– Dispara. Não tenhas medo. Preciso de sangrar.

– Mas tu estás desarmada.

– Sou mulher. Mulher é uma arma mortífera. Dispara.

Aproximou-se. Senti-lhe a respiração. Na minha cabeça fervilhavam milhares de dúvidas, não sabia como reagir. As dúvidas desfi zeram-se quando ela estendeu o braço, como se acariciasse o rosto de um menino, levantou o cano da minha espingarda deixando-o apontado para ela. Um sorriso passeou pelo seu rosto no instante em que os nossos olhos se encontraram.

– Dispara. Preciso de sangrar para me libertar.

Sentindo-lhe o perfume bélico e a doçura decidida da voz, cedi: Pah! Ouviu-se a noite estilhaçar-se num tiro cálido, mas profundo. Ela estremeceu mas aguentou-se. Ferida, sorriu.

Eu também estremeci. Dera o primeiro tiro e tinha começado a guerra. Mergulhado naquela bravura covarde de quem tem uma arma na mão, ganhava terreno e, palmo a palmo, decretava zonas libertadas no corpo dela: Pah! Pah! Pah!.

Fechei os meus olhos. Aquele combate à queima-roupa confundia-me. De tão próximos, respirávamos o mesmo ar. Sentia o sangue inimigo respingar sobre mim. A cada gemido eu também me sentia alvejado.

– Não pares, continua a disparar – ordenou, quando eu fiz uma pausa para recarregar.

Cessei fogo, ela estava exangue. Ajoelhei-me ao lado e afaguei-lhe as feridas.

– Não são balas, são sementes – tranquilizou-me e, passando a mão pelo ventre, acrescentou – e estã a germinar.

Pousei a minha por cima da mão dela. O ventre pulsava. O sangue escorria e regava o chão. Olhos nos olhos, um breve sorriso, suspirou:

– Vai-se chamar Liberdade.

Morreu sorrindo.

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