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O ‘preço’ da morte!

Nas últimas 3 semanas, o repórter do @Verdade participou em três cerimónias fúnebres e confirma que em Maputo ainda está em voga o fenómeno revelado por um estudo – sobre pobreza – da Save de The Children e condenado pelo Conselho Cristão de Moçambique (CCM) há dois anos, denominado “O esbanjamento dos bens das famílias enlutadas”.

As urnas, carregadas por amigos dos falecidos seguem logo atrás dos senhores abades – padres ou pastores – que, sob os pálios (faixas pretas, vermelhas, brancas ou roxas dos blusões) são acompanhados pelos seus sacristães.

Depois, seguem os ‘chorosos’ parentes e muitos amigos. Pelos vistos, os falecidos eram queridos no seio da família, vizinhos e amigos. No cortejo fúnebre, seguem os colegas da turma, escola, faculdade ou da empresa da qual, em vida, os falecidos fizeram parte. Logo que as urnas chegam ao portão, faz-se a mudança para um tchova – a carrinha puxada pelos coveiros. E, só depois do sinal dos senhores abades, o cortejo inicia a etapa final. Os familiares directos dos falecidos estão já próximos da cova onde ouvem o sermão fúnebre.

Ainda entre prantos, aguardam a chegada do seu ente querido. Enquanto entoam cânticos passam em revista os últimos anos da vida do perecido. Os passos apressados dos coveiros e as graves batidas das suas botas carcomidas juntamente com o rilhar das rodas da carreta na áspera trilha de terra batida, furam os ouvidos e chegam aos corações.

Pessoas idosas ou hipertensas sentem-se perturbadas, confusas. Não se aguentam em pé. Há desmaios. “Deus os tenha em sagrado descanso”, concluem. E os caixões descem. Segue uma leva de terra vermelha lançada por coveiros com os seus instrumentos de trabalho árduo: as pás.

Três funerais

Hoje é dia de deposição de flores no cemitério de Lhanguene. Ainda são 8h30 mas o sol já está decidido a queimar toda a alma vivente na face da terra. Fazendo jus ao antigo jargão popular “porta de um cemitério, quando aberta, deixa entrar até cachorro”, lá vão chegando familiares, amigos e vizinhos. Depois de uma singela missa do sétimo dia, sai-se, a passos largos, à casa do defunto.

Ah, sim, isto é que é vida: na improvisada cozinha a céu aberto, mulheres, vestidas de capulanas de cores berrantes, estão nos últimos retoques à bastante comida para o ‘regabofe’ fúnebre. Há carne de toda a espécie. Peixe e frango. Feijoada e salada. Arroz e xima. Trajados a rigor e acomodados à sombra de uma rede verde comprada às pressas, anciãos acotovelam-se na busca do melhor naco para petiscar. Uns bebem vinho. Outros a sua cerveja. São poucos os que optam por refrigerantes. Para matar tanta sede, quase ninguém solicita água.

Como pela cabeça do arquitecto – que concebeu a planta – e do engenheiro e/ ou mestre que a ergueu – nunca passou a ideia de que a casa do defunto haveria de receber duma só vez uma multidão de jovens, crianças – e “penduras” – que foram “despachados” para fora do quintal. Lá também se bebe e se co(nso)me.

São 11 horas e o banquete já vai no auge. Mas, se cá fora o ambiente é de total azáfama, lá dentro, num canto escuro e frio, o ar é duma desolação: a viúva, a mãe – e os filhos – do defunto é que carregam todo o peso da morte! Foi a isso que o @verdade assistiu, em três famílias diferentes que perderam os entes queridos nas últimas três semanas.

Uma história de festa fúnebre…

30 é a média diária de pessoas que morrem só no leito do Hospital Central de Maputo. Confirmado o infortúnio, é hora de as funerárias – que sobrevivem à custa do sofrimento alheio – esfregarem as mãos. Visivelmente feridos pela notícia pouco abonatória da caça de corpos nos hospitais, a nossa primeira tentativa foi abortada pelos trabalhadores das funerárias que operam na morgue do Hospital Central de Maputo, HCM.

Mas no dia seguinte despimos o colete, arrumámos a caneta de repórter e voltámos à morgue do HCM, onde fomos caçados como clientes por equipas ali estacionadas. Ainda muito desconfiados (ora diziam que somos chuis para prendê-los, ora somos jornalistas) foramnos ditando, a conta-gotas, os preços que são um triste contraste: o caixão para um pobre adulto custa 1.700 meticais.

Mas um endinheirado pode ir à cova num caixão de 50 mil meticais. A um indigente deposita-se-lhe um ramo – de flor? – vendido a um metical. Mas quem nasce e morre numa família abastada “recebe” uma coroa de mil meticais. No Grande Maputo onde 80 porcento da população é cristã – que não opta por cremação ou incineração – não há como fugir a isto.

Para as classes médias, em que se inclui o féretro (não muito barato, que ronda entre 3.700 a 15 mil meticais), acondicionamento sanitário do cadáver, translado em coche fúnebre, serviço religioso, gastos de tramitação do expediente, certificado de óbito e taxa de enterro (que varia em função da zona), o anúncio necrológico no jornal, os gastos para fazer comer e beber pelo menos meia centena de acompanhantes, é um bico de obra. Quem já viveu esse drama por algumas semanas confirma: “Gastei por aí 50 mil meticais”!

… e de exibicionismo!

De autor anónimo, está escrito, à entrada da nossa Redacção que “Quem parte saudade leva, quem fica saudade tem”. Mas em famílias abastadas – e pouco moderadas – a morte de um membro representa uma oportunidade para mostrar ao mundo que se tem muito para gastar.

O astronómico valor resulta de extravagância e excessos de que se reveste o acto: duas cabeças de vaca (uma no dia de enterro e outra na missa e deposição de flores), 20 garrafões (de 5 litros de vinho tinto e branco), 5 barris cerveja clara e preta (de 100 litros cada), 25 caixas de cerveja pequena (preferencialmente a importada), igual número de refrigerantes, 10 caixas de frangos, dois sacos de arroz, 50 quilos de feijão, a mesma quantidade de massa esparguete, leite, café e açúcar, cebola, batata-reno e tomate. Roupa de cortejo – já se mandam imprimir camisetes com a foto do falecido – capulanas e lenços para todas as mulheres. Fatos para familiares directos. A isto adicione-se o custo da viagem de familiares que vivem na “diáspora”.

Resultado: “Ao alto, gastei 300 mil meticais”, disse um jovem empresário, de 37 anos, residente no bairro da “COOP”, que enterrou um seu irmão há menos de seis meses.

O novo “evangelho” anti-funerais festivos

Um estudo – sobre pobreza  lançado em 2007 pela Save The Children mostra haver “esbanjamento dos bens da família enlutada”. Nele se diz que as trocas e redes se baseiam em reciprocidade, e que a pobreza aumenta à medida que estes laços enfraquecem ou deixam de existir.

Esta fraqueza na reciprocidade pode estar a estender-se às cerimónias fúnebres. Há relatos que mostram que, não há muito tempo, não era assim. Os mais idosos como Jeremias Magul – que perdeu a conta da sua idade – contam que houve uma altura em que os consoladores traziam os alimentos das suas casas. Foi na era em que se partia do princípio de que a família enlutada não teria cabeça para estar preocupada em alimentar as exageradas visitas.

Essa prática mudou. E ainda escasseiam (outros) estudos que mostrem as reais causas dessa viragem comportamental. Incomodado com o facto, Dom Dinis Sengulane, presidente do Conselho Cristão de Moçambique (CCM) reprova a actual tendência de transformar as cerimónias fúnebres em ocasiões de festa. Falando por ocasião da 58ª sessão da conferência geral do CCM, realizada em Maputo em 2007, Dinis Sengulane disse que transformar os funerais em festas, através de ‘exigências’ de comidas e bebidas luxuosas, concorre para a profanação daquelas cerimónias, carregadas de muita dor e seriedade.

Tal hábito, no entender do clérigo, piora a dor dos que perderam alguém. Para Sengulane, é mais desagradante ainda quando cidadãos comentam, em fóruns públicos, que uma certa cerimónia fúnebre não animou. Que o chá servido não tinha leite. O pão devia ter sido com salada e queijo, e não com manteiga. Ou porque a família tinha poucos carros para o transporte.

Face a esta situação, Sengulane, que é também bispo da Diocese dos Libombos, lança novo evangelho: o resgate de um antigo hábito de levarem algo quando forem confortar uma família enlutada. Isso é o que o @verdade não (ou)viu!

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