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O prazer de Vénus

Felizmente, um anatomista do século XVI descobriu o clítoris. Se isso não tivesse acontecido o que seria feito do prazer sexual da mulher?

Mateus Realdo Colombo viveu quatro décadas do século XVI e arrogou-se de ter descoberto algo extraordinário: um original pedaço do corpo feminino, uma “pequena colina” onde, como teve a oportunidade de testemunhar, se centraliza o prazer da mulher.

A descoberta foi tão importante que, três anos depois de o professor universitário italiano publicar o seu livro de anatomia, um seu colega – Gabriel Falópio, cujo apelido ficará ligado a um órgão sexual feminino – reivindicou para si o feito.

Será que até à centúria de Quinhentos o clítoris era desconhecido? Até essa data, a mulher não sentia qualquer prazer no ato sexual ou não sabia de onde vinha? Uma resposta interessante pode ser encontrada no livro “O Anatomista”, uma biografia romanceada do ‘descobridor’ do clítoris escrita por Federico Andahazi: Cristóvão Colombo descobriu a América quando os nativos americanos sabiam que desde sempre lá viviam; Mateus Colombo descobriu aquilo que mais de metade da população mundial já tinha ideia de que existia…

Tal como Cristóvão, Mateus estava convencido de que antes de ter experimentado subir aquela pequena colina, outrem mais a explorara. No livro “De Re Anatómica”, publicado no ano da sua morte, 1559, escreve: “Como ninguém discerniu esta protuberância nem o seu uso, se for permissível pôr nomes às coisas por mim descobertas, que seja chamado Amor ou Duçura Veneris”, isto porque se trata da “sede do prazer das mulheres”.

Como? Em 1561, Gabriel Falópio chamava a si o achado, registando-o em “Observationes Anatomicae”. Conta o ensaísta Helberto Hernando, em “Cunnus”, que Falópio, embora recordasse já terem os gregos dado conta desta existência, chamando-lhe kleitoris, do verbo kleitorizein, fazer cócegas, deixou escrito: “Este pudendum é tão pequeno e está tão oculto na parte mais gorda do púbis que os anatomistas não deram por ele; está tão oculto que fui eu o primeiro a descobri-lo há alguns anos”.

A descoberta torna-se cada vez mais importante, mais preocupante. E se “as filhas de Eva descobrissem que trazem no meio das pernas as chaves do céu e do inferno?” A interrogação lançada pelo escritor argentino em “O Anatomista” é real. Na verdade, o assunto foi mantido na intimidade até ao século seguinte, quando surgem os estudos do dinamarquês Caspa Bartholin, anatomista, filho e neto de anatomistas.

A descoberta motiva uma disputa de poder. “Quem governar aquele órgão haverá de governar a vontade feminina, mas como se obtém o governo do amor veneris? Graças às sábias artes da medicina ou, se for esse o caso, da cirurgia. Saber tocar. Saber cortar”, desvenda Andahazi. Bartholin, embora entusiasmado, lembra que, no século II, o médico grego Rufo de Éfeso identifica o clítoris na obra “Dos Nomes das Partes do Corpo”, e que o professor de retórica Júlio Pólux o menciona no seu léxico de grego, dizendo que esse “bocadinho de carne palpitante no meio se denomina nymphe, myrton, epidérmico ou kleitoris”.

A partir de Bartholin, ‘descobridor’ das glândulas de lubrificação da vagina a que deu o seu apelido e cujo funcionamento contribui para o prazer da mulher durante o acto sexual, muitos homens se debruçaram sobre o assunto: uns contrariando Colombo, lembrando gregos e latinos, outros ignorando-o e tomando-lhe o lugar.

O prazer estava como que legitimado quando se entrou no século XVIII, o qual “em termos de pura crueza, foi o mais devasso de todos, inclusive o século XX. Uma resposta em massa aos dias austeros de Oliver Cromwell, poucas décadas antes, fizeram os anos 1700, de muitos modos, serem os primeiros anos 1960 da História”, diz o norte- -americano Jonathan Margolis.

“O século XVIII presenciou o mais profundo cisma entre os que encaravam o orgasmo como um prazer a ser gozado, estivesse ou não o indivíduo visando a reprodução, e os que apoiavam a velha moralidade cristã, que continuava a ensinar que o orgasmo só era moralmente aceitável dentro do casamento, e, mesmo assim, se realizado com a intenção da concepção.

O cristianismo também estava profundamente dividido na questão do gozo do sexo. A religião já estava a tal ponto segmentada em marcas competidoras que era impossível falar pelo cristianismo como um todo”, escreve Margolis em “História íntima do Orgasmo”.

“Habitualmente – faz notar em ‘Erotismo, Casamento e Infidelidade’ a psicóloga brasileira Ana Maria Fonseca Zampieri – , a Igreja esculpe um corpo celestial e uma doutrina de amor divino que deixam as mulheres imunes aos germes da paixão carnal, diferente dos homens. A castidade e a virgindade foram valorizadas por muito tempo na história da sexualidade feminina, como sabemos, e a única via para o sexo divino é o casamento religioso, em que o sexo feminino seria para reprodução e não para o prazer.”

Convém dizer que nos referimos apenas a um pedaço do planeta, a análise das diferenças é outro texto, contudo, aproveitemos a ideia de Michel Foucault, autor da “História da Sexualidade”, para distinguir os dois mundos: as sociedades orientais (Roma incluía-se aqui) adoptavam a ars erótica, as ocidentais a scientia sexualis. Resumindo: as primeiras privilegiavam a iniciação, o erotismo, as segundas o confessionário… No presente, regista-se uma certa inversão…

Moralidade e repressão

Passado o século XVIII, numa tentativa de impedir que se contagiassem gerações vindouras com comportamentos considerados excessivos, os europeus sufocaram a assunção do prazer sexual, especialmente no campo feminino. “No período pós-romântico, desde os meados do século XIX, assistimos a um grande movimento de repressão da sexualidade sob a bandeira da moral vitoriana, em que a teoria da deterioração e as especulações sobre os feitos deletérios da masturbação dominavam o pensamento médico”, afirma Zampieri.

Numa brevíssima história do prazer feminino é preciso demorarmo-nos tanto entre teologia e medicina? Sem dúvida. Por um lado, a ideia imposta ao longo de séculos pelas morais cristãs de que a união carnal é pecado fora do casamento e que a fornicação se deve destinar apenas à procriação é a grande responsável pela castração do prazer, o qual o cristianismo também tornou impensável se proporcionado ao próprio ou em relações homossexuais, ao contrário do que sucedia na época greco-romana.

Por outro, o assunto foi anos a fio alvo de discussão entre homens de ciência, que antes de Cristo já julgavam ser seu dever regular o comportamento sexual dos seres, sobressaindo os médicos, que incluíam nos receituários a sexualidade (termo surgido no século XIX) dos seus doentes. Já não importa quem descobriu o quê, tem de se desvalorizar o facto de apenas as mulheres terem um órgão destinado exclusivamente ao prazer.

O clímax da medicina aconteceu já nos primeiros anos do século XX, com a publicação de “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” de Sigmund Freud. E, claro, com a revolução provocada pela psicanálise, “um derivado em geral positivo, embora oblíquo, da era vitoriana”, como a classifica Margolis, para quem a maior parte da teoria freudiana se encontra ultrapassada – Freud insistiu na importância da “inveja do pénis” (o clítoris era um pénis feminino), defendeu o esquecimento do clítoris a favor do anseio por um filho, arquitectou a visão de que o orgasmo clitoriano é “imaturo”, e dizia que a mulher que não passa dos orgasmos clitorianos aos “vaginais” (ou seja, se conhece outro modo de obter prazer ou se sente outro que não aquele que mais agrada ao homem) é frígida…

Mas mesmo nos períodos mais castradores, embora debaixo dos lençóis, sempre houve mulheres em busca do prazer, fosse a sós ou em companhia, fosse ou não moralmente reprovável. Em 1979, a especialista em tecnologia Rachel P. Maines foi ao Bakken Museum of Electricity in Life, em Minneapolis, desvendar o mistério dos 11 artefactos para relaxar músculos esquecidos numa cave.

A autora de “The Technology of Orgasm” descobriu que, afinal, se tratava de vibradores de 1920. Se o primeiro destes instrumentos de prazer surgiu, em 1873, por ‘necessidade’ médica, para tratar a histeria (uma doença inventada por homens e atribuída às mulheres prontas a causar problemas por falta de sexo), a colecção demonstra que a mulher resolveu não deixar tudo a mãos alheias.

“O nosso desejo tem sido eternamente amordaçado, os nossos genitais não costumam ter nome – um puto sabe desde pequeno o que é o pénis, o seu pénis; quantas meninas sabem da existência do seu clítoris? A nossa sexualidade – dezenas de anos depois da nossa suposta libertação – continua a ser mais deles que nossa, e com o silêncio apenas contribuímos para que tudo permaneça igual”, escreve Sylvia de Béjar, em “O Sexo ainda mais no Feminino”.

E acrescente-se o prazer preocupante, lembrado pela pioneira na luta pelos contraceptivos, Jeanne Humbert, à historiadora francesa Laure Adler e que esta publicou em “Segredos de Alcova”: “Como queríeis que as mulheres se entregassem se não paravam de pensar na ejaculação?”

Muito embora nesta história pareça transparecer que tem existido uma grande preocupação quanto ao prazer feminino – agora até já existe o ponto G –, o que se constata é que, permita-se a expressão num retorno à metáfora das Américas, as intenções masculinas têm sido de desbravar um continente desprezando os indígenas.

Como diz a espanhola Béjar, o prazer das mulheres foi sempre secundário e tem-se assistido a uma demasiada teorização: “O clímax alcança-se de muitas formas e não há que fazer distinções entre melhores e piores. Isto fez-nos perder muito tempo e muito gozo. Trata-se é de ter prazer”.

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