Há anos que Vasco Manhiça ‘luta’ para expor as suas obras em Maputo. No entanto, quando, muito recentemente, conseguiu sentiu-se frustrado. “Não são estes os assuntos que eu gostaria de retratar”. Com algum sofrimento – que é suavizado pelas músicas de Fela Kuti que escuta – descobre ‘How Europe Underdeveloped Africa’, a obra de Walter Rodney. Além de talentoso, está-se diante de um homem de causas.
Vasco Manhiça é uma espécie de ‘superstar’ – muito consciente sobre a sua condição social e humana. Vive na Alemanha há treze anos, mas não é por isso que esquece as suas raízes. No seu atelier, algures nos atalhos do bairro do Aeroporto, onde nos recebeu, fomos, imediatamente, confrontados por tonalidades de cores, formas, paletas e telas. Sentimos um cheirinho que nos agrada. Típico das galerias.
“É preciso ter cautela com os vizinhos, as pessoas mais próximas de si, porque são eles que lhe prestam os primeiros socorros em momentos de crise. Por exemplo, aqui em casa, sempre que se realizam cerimónias convidamos os nossos co-residentes do bairro, que são muçulmanos, para degolarem os animais que nos servirão de carne. Eles não se alimentam de carne não hallal. Por isso, esse arranjo tem como objectivo incluí-los na festividade”.
Por um motivo desconhecido, pelo menos por nós, Vasco Manhiça começa por narrar essa experiência. Mas nós vimos para falar sobre arte, acerca de The Black Box, a sua mostra que se realiza no Centro Cultural Franco-Moçambicano.
Mas como ainda faltam sete dias, para se chegar a três de Setembro – o dia da inauguração – Vasco Manhiça pode comentar. “Os americanos gostaram do meu projecto, mas, acho, quando leram o artigo que se publicou no @Verdade, aperceberam-se da minha ideologia e desistiram de me apoiar. Eles não gostam dessa cena de revolução – algo que abre a mente das pessoas”.
Muitos problemas para África
Lentamente, sem muitas induções da nossa parte, o artista reorienta-se em direcção ao nosso tópico. “Sinto que falo sobre temas sensíveis para os cooperantes. Por isso, poucos me financiam”.
Criou a obra AIDs for Africa, uma mensagem que, literalmente, significa Ajudas para África. Mas a forma ortográfica também nos remete para a ideia de Problemas para África. Ou seja, muita SIDA para os negros, em forma de apoios. “É isso o que nos enfraquece”.
O seu retorno a Moçambique, 13 anos depois, é algo simbólico e cheio de nostalgias. “O meu trabalho resulta das influências que tenho da comunidade e dos petizes, em particular. Sabe quantas vezes digo olá, às crianças, por dia? São milhares. Na Europa não encontro esse ambiente, e a saudade tortura-me”.
Esse comentário é um pormenor, mesmo para suavizar a delicadeza do tema, porque o que Manhiça pretende dizer é que “se eu lhe der sustento todos os dias, como eles fazem connosco, significa que você não terá tempo para pensar em relação à sua condição social”.
“As organizações internacionais que apoiam o continente africano só contribuem para que o negro seja preguiçoso, eternizando-se a sua pobreza. Eles não aprovam os projectos que têm como vocação a libertação das pessoas. No entanto, financiam tudo o que tem a ver com a SIDA”.
Somos pobres (?)
No uso da palavra, Vasco Manhiça é muito vertical de tal sorte que colocou numa das suas obras – sobre essa temática – a seguinte mensagem presidencial: “This country is poor!”. Ora, para o criador isso não pode ser verdade, pelo menos quando se recorda que Kwame Nkrumah acredita que “The secrete of life is to have no fear! This country is rich!”. Está-se diante de uma antítese; afinal, este país é rico. E, como tal, ninguém precisa de viver com medo.
Diríamos que a beldade das formas, a conjugação invulgar das cores – própria de um artista maduro – aligeiram a precariedade social em que vivemos. É disso que Vasco nos fala. Onde é que já se viram pombos a matar-se? Metáfora ou não da nossa experiência, nas palavras de Vasco Manhiça, é nesse contexto que nos encontramos.
A outra obra Doves killing Doves, Pombos matando Pombos, tem a ver com a situação em que vivemos. Estes animais podem lutar e tornarem-se inimigos, mas nunca tiram a vida um do outro. No dia em que isso acontecer algo estará muito errado. “Faltará ordem – como estamos a viver no país agora”.
Por exemplo, “quando o meu amigo Alexe Ferreira foi assassinado vieram-me muitas imagens na cabeça. Uma delas foi a necessidade de se fazer uma manifestação de revolta na zona em que o assassínio aconteceu. No entanto, onde é que iriamos contestar se essas práticas estão a decorrer em todo o país?”
Na verdade, “compreendi que a manifestação contra esta realidade não podia acontecer num lugar concreto, isolado, porque – estando a crise a acontecer em todo o lado – o povo que se autoflagela está a ser vítima da disfunção do sistema. O povo não se pode encarregar do trabalho da Polícia”.
Esta situação é legível nas obras de Vasco Manhiça como, por exemplo, O Motim Frio da Polícia. É que estas autoridades, incluindo as pessoas que dentro da corporação tomam a decisão, “compreendem que devem deixar o povo agir como quiser, mesmo matando-se. Enquanto a Polícia se diverte, consumindo vinho, as pessoas matam-se”.
É a mensagem do povo
Em The Black Box, esclareça-se, não há nenhum traço de amor. “Não é isso que estou a retratar – porque neste momento a sociedade moçambicana não está a gerar essas situações”.
A exposição carrega as palavras do povo. “Esta mensagem não é minha é do povo. Por isso, sempre que as pessoas me perguntarem porque é que eu escrevo em inglês se o povo não tem o domínio dessa língua, explico que a razão é simples. Estes conteúdos não se destinam ao povo, mas é no seu contexto que se geram”.
Por exemplo, na obra Polícia e Ladrões, que contém as letras Polícia da República de Moçambique, recupera-se uma promiscuidade. “A polícia e os ladrões são praticamente o mesmo bicho. A única diferença encontra-se na forma como se apresentam”. De um lado vemos o polícia trajado comummente, mas do outro, ele inverte a identidade para não ser reconhecido. É nisso que repousam os comentários populares como, por exemplo, os que marcam que criminosos estavam vestidos do uniforme da Polícia. Se não existe conexão entre ambos, onde o encontraram?.
Quero ser útil
Vasco Manhiça considera que, numa dada fase da sua carreira, compreendeu que devia fazer da arte um instrumento de luta. Não para ferir ninguém, mas para alertar e consertar determinados comportamentos desviantes. “Quero mostrar às crianças a verdade sobre a nossa realidade – para que elas percebam que estamos a seguir um caminho errado. Devemos influenciar os petizes positivamente”.
Com o seu génio reconhecido, Vasco Manhiça vê-se, a partir do seio familiar, impelido a abdicar dos seus ideais, sob pena de ser silenciado eternamente. “Está certo! Sei que um dia vou encontrar a morte. O que não posso fazer é morrer sem ter sido útil. Acho que se, de facto, os mortos ascendem aos céus – como se apregoa – caso eu morra sem ter sido útil, posso chegar ao céu triste!”.