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O perigo espreita

O perigo espreita

Ser peão em Moçambique não é fácil. Aqui, a morte está ao virar da esquina. Os automobilistas não respeitam regras, a lei é branda e as infra-estruturas não ajudam. No início da tarde do dia 1 de Janeiro de 2011, Fátima Alberto, uma adolescente de 15 anos, atravessava calmamente a avenida Joaquim Chissano a caminho de casa, em Maputo, depois de ter observado que a única viatura presente na via vinha da esquerda, circulava devagar e estava longe.

A avenida não tinha semáforos nem passadeiras de peões a menos de 50 m donde se encontrava. De repente, entra na rua um carro com tracção às quatro rodas. O condutor, determinado a ultrapassar o veículo que Fátima tinha avistado, passa para a faixa esquerda e acelera para os 80 km/h. Não se apercebendo da presença da jovem, atropela-a com toda a violência, arrastando-a ao longo de cerca de 5 m.

Fátima contraiu graves lesões na perna direita e teve que passar por uma operação delicada que custou muito dinheiro aos familiares. O causador do acidente fugiu. Ninguém viu a matrícula e a factura do sinistro ficou com ela. Um acidente causado por negligência, excesso de velocidade e condução desatenta, descuidada e desrespeitadora das normas de circulação rodoviária. Fátima perdeu o ano escolar e terá de repetir a décima primeira classe.

A situação de Fátima e da sua família é frequente no nosso país. Em 2010 os acidentes de viação chegaram os dois mil óbitos, contra 1800 em 2009. Só nas últimas duas semanas do ano passado mais de duas centenas de acidentes de viação provocaram a morte de 119 pessoas. “A partir destes números podemos imaginar quantas pessoas passarão o resto da vida numa cadeira de rodas ou com outro tipo de deficiência”, disse o porta-voz da Polícia da República de Moçambique Pedro Cossa num dos habituais briefings com a imprensa.

O “rei do asfalto”

Os condutores são muitas vezes os principais responsáveis pelos atropelamentos. “O automóvel é um símbolo de estatuto social e nível económico e representa um objecto de poder”, escreveu o colunista e instrutor Cassamo Lalá. “O condutor acha-se o ‘rei do asfalto’, com direito de ameaçar o peão que atravessa a ‘sua’ via, até porque se sente protegido pela máquina.”

Porque será que as pessoas esquecem o que aprenderam na escola de condução mal se apanham atrás de um volante? “Falta de civismo e um sentimento de impunidade”, justifica. “É necessário continuar a trabalhar na modificação dos comportamentos dos peões e condutores, além de reforçar a acção fiscalizadora.” O porta-voz da PRM, também considera que há alguma falta de respeito dos condutores pelos peões. “É frequente verem-se condutores a acelerar em vez de abrandar quando o sinal fica amarelo”, diz.

Na verdade, uma das infracções mais graves cometidas com frequência pelos automobilistas é o desrespeito pelo sinal vermelho. Em Março de 2010 as autoridades policiais fiscalizaram um total de 14.651 viaturas no âmbito do Plano Viaje Seguro, uma iniciativa em parceria com o Instituto Nacional de Viação (INAV) e a Administração Nacional de Estradas (ANE).

Deste universo, as autoridades passaram 2.465 multas devido a infracções de vária ordem e apreenderam 98 viaturas que apresentavam diversas irregularidades. A PRM também confiscou 411 cartas de condução, sendo deste número 356 por excesso de velocidade.

Segundo o Código da Estrada, os condutores são obrigados a abrandar nas passagens de peões, quer haja ou não peões a atravessar a via. Do mesmo modo, nas mudanças de direcção, à esquerda ou à direita, independentemente da sinalização e mesmo que não exista passadeira, têm de dar prioridade aos peões que se disponham ou estejam a iniciar a travessia. No entanto, uma das principais causas dos atropelamentos é a falta de cumprimento destas duas regras.

Excessos

Muitos dos atropelamentos são também devido ao excesso de velocidade – uma das infracções que os condutores moçambicanos mais cometeram nos últimos. Que o digam Marta João e a sua amiga do bairro Urbanização em Maputo, que, em Maio de 2009, foram atingidas por um automóvel quando estavam paradas no passeio à saída de um mercado. “Apercebemo-nos de um automóvel que vinha da parte de cima da rua a grande velocidade, mas a meio há um triângulo com um sinal stop onde estavam parados dois carros”, contam.

O condutor não conseguiu travar a tempo, bateu num dos carros parados, despistou-se e passou para a faixa contrária, subindo o passeio e apanhando Marta e a amiga. “A minha amiga perdeu os sentidos e ficou com o braço esquerdo praticamente arrancado”, relembra. “Eu levei cinco pontos na cabeça. Nunca mais consegui conduzir, e até há poucos meses chorava cada vez que entrava no carro com o meu marido.”

A uma velocidade de 50 km/h, em solo seco, a distância considerada necessária para um automóvel travar e imobilizar-se é de cerca de 30 m, o que já é bastante. A 90 km/h, a viatura precisa de mais ou menos 80 m para conseguir parar!

Assim, não é difícil perceber por que razão dentro das localidades – onde a velocidade máxima permitida por lei é de 50 km/h – cerca de 30% das vítimas mortais em consequência de acidentes de viação sejam peões.

No entanto, se diminuísse o limite de velocidade, seria possível reduzir o número de acidentes ou, pelo menos, a gravidade dos mesmos. Um estudo feito concluiu que a 30 km/h apenas cerca de 3% dos atropelamentos de peões resultam em feridos graves, enquanto a velocidades iguais ou superiores a 50 km/h apenas 10% dos peões sinistrados sobrevivem.

Alguns atropelamentos também são causados pela perda de controlo da viatura, nomeadamente devido ao condutor estar sob o efeito do álcool ou de estupefacientes. Considerada uma infracção muito grave, a condução sob o efeito do álcool a um nível superior a 0,8 g/l – a taxa permitida terá de ser inferior a 0,5 g/l – é praticada por cerca de 50% dos infractores ao Código da Estrada.

“O álcool potencia o sentimento de poder e impunidade que muitas pessoas sentem quando se sentam ao volante e as incita a acelerar”, dizem especialistas. “Além disso, faz diminuir os reflexos e a visão lateral.”

Para além das más condições e do número insuficiente das infra-estruturas necessárias, que podem evitar o atropelamento de peões, os automobilistas não são devidamente punidos.

Lei tolerante

Mais alarmante é o facto de a maior parte das vezes os condutores que atropelam os peões não serem devidamente punidos. Muitos não chegam a ser apanhados; e os que o são acabam por sofrer penas leves ou ficar com a carta apreendida temporariamente. Em 1997, Carlos Lucas ficou à conversa com os colegas até quase às 8 da manhã, numa discoteca na zona da Costa do Sol onde trabalhava como barman.

“Durante a noite, bebi cerca de sete imperiais e, enquanto conversava, mais quatro shots de gin”, conta este jovem de 26 anos, actualmente empresário de construção civil. “Ainda receei encontrar uma operação stop na estrada, mas sentia-me bem e fui para casa a guiar o meu carro.”

A 200 m de casa, ao entrar numa curva, Carlos não se apercebeu da presença de uma pessoa a atravessar a estrada e atropelou-a. “Saí do carro em pânico, pois quando a vi estendida no chão a deitar sangue pela boca, pensei que a tinha matado”, recorda.

A Polícia e a ambulância não demoraram a chegar. Ao fazer o teste de alcoolemia, Carlos acusou uma taxa de 1,34g/l. A vítima, uma senhora de 50 anos, sofreu um traumatismo craniano e esteve hospitalizada sete dias. Devido ao facto de não ter antecedentes criminais, foi condenado a três meses de prisão, com pena suspensa por um ano, e proibição de conduzir por cinco meses.

Para quem atropela um peão, as penalizações previstas no Código Penal são as que correspondem a homicídio por negligência, ou seja, uma pena de prisão que pode ir até três anos, acompanhada ou não por apreensão da carta de condução por um período determinado.

Mas depende das atenuantes apresentadas, e muitas vezes, embora seja decretada pena de prisão, raramente esta medida é efectiva. Para o pai de Fátima as penas por atropelo são ridículas. “A mensagem que a justiça moçambicana transmite à sociedade civil é a de que não vale a pena estar atento ou respeitar os outros ao volante de um carro”, salienta.

Infra-estruturas deficientes

E como se isto não bastasse, o traçado das vias e as suas infra-estruturas colocam o peão em desvantagem. Em nome da velocidade e da fluidez do tráfego, os engenheiros conceberam as estradas para os condutores chegarem mais depressa aos seus destinos. No entanto, esqueceram-se de que estas têm de ser atravessadas por crianças e pessoas idosas, que são mais lentas a andar e têm mais dificuldade de avaliar a velocidade dos veículos.

Esta é uma das razões por que, em 1998, os idosos com mais de 64 anos representaram mais de 24% das vítimas de atropelamento, e as crianças até aos 6 anos, 5%. Normalmente, nos semáforos para peões o tempo que o boneco verde fica aceso foi calculado tendo em conta que uma pessoa anda 1,2 m a 1,5 m por segundo. Isso é bem para quem goza de boa forma física, mas as pessoas que têm dificuldade em deslocar-se precisam, no mínimo, de um segundo para percorrer 1 m.

E que dizer das localidades que são atravessadas por uma estrada principal? Atravessá-la representa muitas vezes um autêntico desafio à morte. Até as passagens para os peões, as chamadas “zebras”, podem ser perigosas. Há passadeiras mal colocadas, como as que existem a seguir a uma curva e que o condutor só vê quando está em cima delas, outras que deviam existir e as que não são acompanhadas de suficiente sinalização.

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