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O mundo tem interesses em Angola e não vai dizer o que pensa

Os escritores têm de vencer o medo. Agualusa espera ler dos mais velhos o que não viveu. E dá um passo em frente para olhar Luanda agora, a correr par o desastre. “Barroco Tropical” é talvez o primeiro livro que retrata o absurdo do pós-guerra.

No seu novo livro, “Barroco Tropical” – talvez o primeiro que retrata a loucura de Luanda pós-guerra – há uma Presidente em vez de um Presidente. O protagonista escreve. Tem uma amante cantora, a mulher está a separar-se dele e ainda lhe aparece uma modelo que o vê como Salvador. Essa mulher sabe coisas sobre o poder e é morta. A partir daqui, é um cortejo de personagens, dos céus ao submundo. O livro passa-se em 2020, o que não chega para ser um futuro de ficção científica.

Estes dez anos de distância permitem o quê?

José Eduardo Agualusa (JEA) – Pensar Angola de outra maneira, fugir a interpretações mais óbvias, imaginar um futuro que espero não venha a acontecer. Mas se continuarem a ser cometidos erros e distorções…

Este futuro já é presente em muito.

(JEA) – Sim, em muito, mas ainda há muita coisa que se pode evitar. Um livro como este, uma distopia, pode servir para alertar para determinadas políticas e acontecimentos que se podem complicar se nada for feito.

Mas há aqui alguma coisa que não esteja a acontecer agora?

(JEA) – A acontecer está, mas no princípio. No livro já tomou uma dimensão maior. No livro diz-se que Luanda corre a toda a velocidade para o desastre, e a grande diferença em 2020 é que acabou o petróleo, então o cenário de euforia económica está em queda, e o prédio em que vive o protagonista – a Termiteira – é uma metáfora disto.

Pode dizer-se que Luanda já está a correr para o desastre agora?

(JEA) – De certa forma já é um desastre em execução. É uma cidade quase inviável, onde as pessoas têm muita dificuldade em viver. Nesse sentido já é um desastre. Penso que ainda pode ser possível recuperar a cidade e pensá-la de outra forma, mas aparentemente isso não está a ser feito. Não quer dizer que não haja pessoas a compreender que isso é preciso. Há essa discussão.

Mas continuam a ser construídos grandes prédios no centro. Há mesmo a discussão visando mudar a capital.

(JEA) – Encontrei o arquitecto Troufa Real em Luanda e ele disse-me que tem projectos para três novas cidades, uma das quais deveria ser a nova capital. Faz algum sentido, embora me pareça que seria mais fácil transferir a capital para o Huambo, por exemplo. Um pouco à semelhança do que se fez no Brasil, com Brasília, mas sem construir uma nova capital o que implica custos muito grandes. Não tenho a certeza se neste momento existirá dinheiro para isso. Mas faz sentido uma vez que Luanda chegou a um ponto em que não se consegue viver lá. Não se consegue simplesmente transitar, o trânsito é infernal, os carros não avançam.

Quantos milhões tem agora? Alguém sabe?

(JEA) – Ninguém sabe. Fala Falase em quatro, cinco milhões. Continua a afluir gente, embora o facto d o resto do país finalmente se ter começado a desenvolver vá acabar com esse afluxo, espero. Era uma coisa que já deveria ter sido feita.

O livro diz que num regime assim há duas alternativas: medo ou raiva. Como é que define este regime?

(JEA) – Para uma parte dos angolanos foi uma desilusão quando constatámos que o fim da guerra não conduziu rapidamente à democratização. Muita gente acreditou que seria possível. Para desenvolver de forma articulada, saudável, justa, é preciso democratizar ao mesmo tempo, se não primeiro. Isso não está a ser feito, com estes erros todos. Não há preocupação com o bem-estar da população.

E depois a explosão económica leva a que o discurso oficial nas relações entre com o Estado angolano fique refém, não esteja livre para dizer o que pensa do regime.

(JEA) – Internacionalmente?

Internacionalmente de que é exemplo o discurso do Estado português.

(JEA) – É isso mesmo. Nas primeiras eleições em 1992 era mais fácil aos partidos independentes, não beligerantes, conseguirem apoio internacional. Hoje é mais difícil. Porque da direita à esquerda – excepto a extrema- esquerda em Portugal, e no resto do mundo nem isso – há interesses em Angola. Há uma unanimidade em relação ao presidente José Eduardo dos Santos, como se viu quando visitou Portugal. Isso é novo, de facto. Se a Europa já não discute os direitos humanos, já não discute a democracia, então, o que a diferencia da China?

O que é que a Europa precisava de dizer para que a oposição angolana não sentisse dificuldade em ter apoio?

(JEA) – Isso não vai acontecer. Não vai. Portanto, tornou-se impossível dizer o que se acha sobre Angola. É. Estou um pouco pessimista quanto a isso. Os interesses são de tal forma vultuosos e intricados, que me custa a crer que vá mudar nos próximos anos. A menos que esta crise económica tome outras proporções e se reflicta muito em Angola. A menos que surjam divisões no partido no poder, o que pode acontecer. Se não, não creio que vá mudar. A nível internacional as pessoas preferem manter o actual estado. Apoiarem as forças que estão no poder, que lhes dão garantia de que é possível continuar a fazer dinheiro. Até porque, não sendo uma democracia, Angola também não é uma ditadura sangrenta. Não estão sendo presas pessoas, não é o Zimbabwe, não tem aquele gosto feroz. É uma ditadura amável, vamos dizer assim. Dentro do MPLA encontraste gente que te apoiou na polémica sobre Agostinho Neto ser um “poeta medíocre”. Vês sinais de que o MPLA se possa renovar por dentro, ou de que o poder se possa renovar por dentro a partir do MPLA? (JEA) – Há linhas de fracturas no MPLA, inclusive correntes que não me agradam nada. Há muitas linhas, sempre houve. Algumas estão a expressar-se agora mais. Por exemplo, há uma corrente ligada ao 27 de Maio (de 1977, quando o MPLA reprimiu violentamente uma tentativa de golpe) que está a tentar ter expressão, e a reivindicar uma presença dentro do partido.

O que defende?

(JEA) – Para falar com franqueza, não sei. Tirando o facto de defender algo que me parece absolutamente justo, que é investigar o que aconteceu em 1977.

No sentido de assumir as próprias responsabilidades?

(JEA) – De assumir responsabilidades, de saber quantas pessoas morreram, o que lhes aconteceu. Até agora os familiares das vítimas não sabem o que aconteceu. Oficialmente não estão mortos, vivem numa espécie de limbo. O que essa corrente começa por defender é isso. O que defende a seguir, politicamente, não sei.

Conheces o Grande Hotel da Beira? Pensei nele ao ler a descrição do Termiteira. O Grande Hotel da Beira ia ser o grande hotel de África no tempo colonial e agora está ocupado por restos do desastre, da guerra, que vivem ali no meio do lixo e dos ratos.

(JEA) – Temos isso em Angola com vários edifícios que não chegaram a ser concluídos na era colonial e depois foram ocupados pela população. Transformaramse em musseques (bairros pobres de Luanda). Ainda hoje são musseques. Alguns estão em transição para o capitalismo mas outros são irrecuperáveis.

E os escritores angolanos estão a olhar para o seu país?

(JEA) – Alguns sim, outros não. Alguns de forma mais tímida, alguns de forma mais corajosa.

Este é o livro em que vais mais longe em relação ao que é Angola?

(JEA) – Não é um outro olhar.

Quanto ao presente?

(JEA) – “Estação das Chuvas” tratou de um certo presente. Tal como “O Ano em que Zumbi Tomou o Rio”…

Dizes que o escritor não pode ter o receio de falar. Ao mesmo tempo a tua família está em Luanda, os teus filhos. Esses laços não te constrangem?

(JEA) – Constrangem.

A família é um escudo ou um limite?

(JEA) – Num país como Angola, todo o tipo de ligações pode dificultar a tarefa de um escritor. Pode facilitar, porque são esses laços que permitem compreender. Não são um escudo, mas uma forma de alcançar determinadas histórias, de chegar ao coração das pessoas. E ao mesmo tempo são perturbadores e inibidores.

Já se te colocou essa questão? A liberdade como escritor fazer- te sair de Angola?

(JEA) – Mas já estou fora de Angola. Estou dentro e fora. Se estivesse completamente mergulhado teria muito mais dificuldade em escrever. O regime angolano não tem nenhuma forma de me limitar do ponto de vista económico. O meu dinheiro não é ganho em Angola. Vivo dos meus direitos de autor, dos livros que vendo no mundo. Nesse sentido já vivo fora. O que me dá grande liberdade. Por outro lado, o facto de viajar muito dá-me distanciamento. De cada vez que volto sou capaz de ver coisas que talvez não visse. O que me interessa é retratar o absurdo. Quando a gente convive quotidianamente com o absurdo acaba por o achar normal. É algo que sinto quando estou em Luanda sempre. As pessoas deixaram de ver. Eu vejo porque venho de fora. Acho que não conseguiria se não fosse isso.

Quanto tempo passas em Angola? É a maior parte do tempo?

(JEA) – Não sei, mas gostaria de passar mais demais.

O protagonista de “Barroco Tropical” apesar de não ter um olho, o que lhe dá logo a cara do (lendário general israelita) Moshe Dayan…

(JEA) – Pensei nele, pensei. …

e de ser realizador de documentários além de romancista, tem muitas coincidências biográficas contigo.

(JEA) – Isso agrada-me. Que as pessoas construam essa imagem. Sobretudo o episódio do Agostinho Neto [“poeta medíocre”]. Era quase impossível não aproveitar esse episódio porque é revelador de como o absurdo se instala na realidade.

Tiveste medo, aí?

(JEA) – Tive, muito. Claro que tive. Eu estava em Luanda e precisava de sair, já não sei para onde. E tive aquele medo óbvio de não conseguir sair.

Tiveste medo de ser morto?

(JEA) – Não.

Medo pelos teus filhos, existe esse medo?

(JEA) – Um pouco.

Depois desse episódio diluiu-se?

(JAE) – Diluiu. Acho que o episódio se entende no contexto em que foi produzido, poucas semanas antes das eleições (em Setembro de 2008). Era um período em que havia intenção do regime de tentar silenciar todas as vozes críticas. De uma maneira ou de outra, é claro que comigo foi um pretexto. Foi uma campanha desencadeada pelo “Jornal de Angola”, presume que pelo regime, e depois as mesmas pessoas do regime que a desencadearam decidiram parar com ela porque perceberam que estavam a ir longe demais. Li um texto sobre os teus comentários às eleições de 2008 insinuando que te preparavas para entrar na oposição. Alguma vez te passou pela cabeça entrar na política? (JEA) – Não, Deus me livre e guarde, nem pensar nisso. Nem de longe nem de perto. Não tenho o menor talento, não gosto, não quero.

Noutro ponto que foste atacado foi por teres dito ao “Jornal de Notícias” (de Portugal), em 2007: “Conheço alguns torturadores em Angola, pessoas que interrogaram e torturaram presos políticos em 1977, que são recebidos em Portugal como bons escritores.” Criticaram o facto de não teres apontado nomes, permitindo que todos pudessem ser suspeitos. Respondeste a isto, na entrevista à revista “Ler”, dizendo que esses nomes têm aparecido em livros, que se sabe quem são, mas também dizes que há casos distintos. Se há casos distintos, porque não os distingues?

(JEA) – Não é o meu trabalho. Devia ser constituído algo semelhante aos tribunais de reconciliação que existiram na África do Sul para tratar concretamente do 27 de Maio (de 1977). Depois também, talvez, da guerra civil. O 27 de Maio é um processo que inquieta muita gente. A única maneira é abrir todos os arquivos e pôr toda a gente a discutir, a chorar em conjunto.

Mas quando dizes que há torturadores que são recebidos como bons escritores em Portugal…

(JEA) – Isso foi a citação do Queiróz (no “Jornal de Angola”), mas o que está na entrevista…

Eu tirei esta citação da entrevista que deste ao “Jornal Notícias”.

(JEA) – Pronto, então não devia ter dito assim. Nos livros que foram publicados (sobre os acontecimentos de 27 de Maio) há uma série de escritores nomeados, alguns erradamente (como interrogadores/ torturadores). Mas isso eu escrevi quando saiu o livro da Dalila (Mateus, “Purga em Angola”). Escrevi: “este livro é importante mas entre os acusados sei que alguns não estiveram presentes nessas comissões [de interrogatório], concretamente o Luandino Vieira. Sei, porque pessoas ligadas ao processo me disseram, mas não vivi o processo”. A Dalila coloca outros nomes. Não me considero a pessoa apta para dizer. Na segunda edição ela corrige, retira o nome do Luandino, o nome do Ruy Duarte de Carvalho também tinha sido confundido com o Rui de Carvalho, que foi director da televisão em Angola. Havia pequenos equívocos no livro que lhe retiraram legitimidade. Mas é um livro importante, e é preciso discutir abertamente. São tragédias humanas. Muitos dos filhos disseram que não querem vingança, querem saber o que aconteceu ao pai. Têm esse direito.

Quem é?

José Eduardo Agualusa nasceu no Huambo, Angola, em 1960. Estudou Silvicultura e Agronomia em Lisboa, Portugal. Vive entre Luanda e Lisboa, com incursões frequentes ao Rio de Janeiro. As vendas dos seus livros estão a crescer substancialmente, sobretudo na Europa, depois de ter ganho, em 2007, o prémio instituído pelo diário britânico “The Independent” na categoria de Melhor Romance Estrangeiro. As suas obras estão traduzidas para mais de uma dezena de idiomas.

Também escreveu várias peças de teatro: “Geração W”, “Chovem amores na Rua do Matador”, juntamente com Mia Couto, e o monólogo “Aquela Mulher”. Beneficiou de três bolsas de criação literária: a primeira, concedida pelo Centro Nacional de Cultura em 1997 para escrever “ Nação crioula “, a segunda em 2000, concedida pela Fundação Oriente, que lhe permitiu visitar Goa durante 3 meses e na sequência da qual escreveu “ Um estranho em Goa “ e a terceira em 2001, concedida pela instituição alemã Deutscher Akademischer Austauschdienst.

Graças a esta bolsa viveu um ano em Berlim, e foi lá que escreveu “O Ano em que Zumbi Tomou o Rio”. No início de 2009, a convite da Fundação Holandesa para a Literatura, passou dois meses em Amesterdão na Residência para Escritores, onde acabou de escrever o seu último romance, “Barroco tropical”. Escreve ainda crónicas para a revista “LER” e para o jornal angolano “A Capital”. Realiza para a RDP África “A hora das Cigarras”, um programa de música e textos africanos. É membro da União dos Escritores Angolanos. Em 2006, lançou, juntamente com Conceição Lopes e Fátima Otero, a editora brasileira Língua Geral, dedicada exclusivamente a autores de língua portuguesa.

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