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O jornalismo tem futuro, mas ninguém sabe se é negócio

Em Novembro do ano passado, os directores dos diários The New York Times, Le Monde, The Guardian e El País e da revista Der Spiegel eram vistos como os cinco cavaleiros de um iminente apocalipse pela publicação dos telegramas do Departamento de Estado dos Estados Unidos filtrados pela WikiLeaks de Julian Assange. No dia 23 de Fevereiro, no fim de uma tarde de inesperada Primavera em Madrid, constataram que os males anunciados pelos profetas das desgraças não ocorreram. Nenhuma fonte teve problemas e os que caíram foram alguns ditadores árabes.

 

 

O debate, no final da tarde da antepassada quarta-feira (23), entre directores e responsáveis dos meios que publicaram os documentos do Departamento de Estado norte-americano fi ltrados pela WikiLeaks de Julian Assange, revelou que a função de informar está melhor do que nunca.

Perante uma assistência de 600 pessoas, maioritariamente jovens, que enchiam dois auditórios do Museu Rainha Sofia da capital espanhola, Alan Rusbrigder, do The Guardian, Bill Keller, do Th e New York Times, Sylvie Kauff mann, do Le Monde, Georg Mascolo, da Der Spiegel, e Javier Moreno, do El País, chegaram a algumas conclusões. Acordado ficou que o jornalismo tem futuro, que não se extinguirá a actividade de relatar de modo profi ssional e independente. Já no ar ficou o denominado “modelo de negócio”.

Ou seja, se o acesso aos meios electrónicos deve permanecer aberto, sem custos para o leitor, ou submetido a pagamento. Incógnitas que podem pôr em causa a rentabilidade da actividade. “Há futuro para o jornalismo”, garantiu o norte-americano Bill Keller.

E recordou: “Cada vez que houve progresso, como no aparecimento da Rádio e da Televisão, sempre se dizia que iam acabar os jornais.” Para Keller, o futuro do jornalismo está no online. Dito isto, vêm as incertezas: “O modelo de negócio, se em aberto ou mediante pagamento, ainda não está defi nido, mas no New York Times pensamos cobrar uma quota, ou alguma coisa, ainda antes do fi nal do ano.” O director do diário de Nova Iorque está entusiasmado com o iPad.

Não apenas porque, como sublinha, “é uma experiência de jornalismo portátil e móvel”, mas porque “com ele as pessoas aceitaram o conceito de que há que pagar”. Diferentes são as referências de Alan Rusbrigder, em boa parte porque atípica é a situação do The Guardian, título da imprensa britânica com uma relação peculiar com o mercado: o jornal é propriedade da fundação Scott Trust, gestor de um grupo mediático de grande rentabilidade que investe as receitas na publicação do diário.

“O poder e a influência do jornalismo vão ser muito maiores, mas também é certo que nenhum jornalista quer ser irrelevante por não ser lido, pelo que lhe interessam os novos meios”, disse Rusbridger. Na sua versão, as experiências de pagamento em páginas até então de acesso livre levam a uma fuga de leitores, o que diminui o interesse dos anunciantes. “O modelo de negócio será baseado em ideias inovadoras”, apontou, sem especifi car.

“Há futuro para o jornalismo e para os jornalistas”, garantiu Sylvie Kauff mann, directora de redacção do Le Monde. O seu jornal tem um sistema misto, com edição em papel nos quiosques e versão digital aberta. “Se queremos vender mais jornais, temos de conseguir que as pessoas paguem a edição online. Os leitores têm de compreender que o que fazemos custa-nos muito dinheiro”, advertiu.

“Porque devemos cobrar por uma revista menos do que custa um caff e late machiatto no Starbucks?”, perguntou Georg Mascolo, director da Der Spiegel, entre os únicos aplausos da assistência durante as quase duas horas de debate.

“Tenho 250 pessoas a trabalhar, às quais há que pagar para fazerem um jornalismo excepcional”, prosseguiu. Mascolo anunciou que o preço de capa da sua publicação, cujo conteúdo não está na versão online aberta, vai subir um euro, e foi peremptório: “A edição online aberta foi um erro que todos cometemos.”

Para Javier Moreno, “a capacidade de nos convertermos num jogador global é vital para estabelecer um modelo de negócio”. O director do El País exemplifi cou com o impacto da difusão dos telegramas da WikiLeaks: “Provocou um aumento de tráfi co na Web tanto em Espanha como na América Latina.” Ou seja, quando há propostas aliciantes, “os cidadãos respondem, procuram as páginas, online ou impressas, e consomem informação”.

Mundo a nu

Em 29 de Novembro do ano passado, os cinco títulos iniciaram a divulgação do material fi ltrado do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Os denominados papéis da WikiLeaks revelaram os bastidores da política internacional. Mostraram como os protagonistas são vistos por inimigos e aliados. A crueza de alguns telegramas desfez a hipocrisia diplomática. O mundo foi posto a nu. Mas tudo implicou muito trabalho. “A WikLeaks reivindica o bom ofício do jornalismo. Houve que procurar, analisar e contextualizar a informação”, salientou Moreno.

A francesa Sylvie Kauff mann foi mais longe: “De facto, o jornalismo não mudou, apenas reabilitámos o trabalho dos jornais tradicionais, mas os papéis da WikiLeaks foram mais um exemplo do vínculo da imprensa com a democracia.”

A directora de redacção do Le Monde relembrou que nem sempre é fácil obter informação: “Nalguns países há obstáculos, noutros é muito difícil, e a WikiLeaks foi um instrumento novo.”Que abriu portas e escaqueirou janelas. “Para nós, ocidentais, que temos liberdade de imprensa, pareceu aborrecido, mas para os que não desfrutam dessa liberdade foi fundamental”, continuou Alan Rusbridger.

O director do Th e Guardian esmiuçou: “É muito importante poder publicar notícias de um Estado para além das suas fronteiras.” No caso do diário britânico, foi testado um novo sistema: “Perguntar ao leitor o que queria que procurássemos”, uma fórmula de interactividade do “you ask, we search” (você pergunta, nós procuramos). Alguém perguntou por Madeleine McCann, a “pequena Maddie” desaparecida no Algarve, e então foi encontrado um telegrama diplomático sobre o caso.

“Nunca admitimos a possibilidade de publicar os documentos em bruto, tivemos sempre a preocupação de os contextualizar e explicar”, adiantou Georg Mascolo. O director da Der Spiegel revelou outro trabalho de edição, e de responsabilidade: “Certas informações foram mantidas secretas, sobretudo nomes de pessoas que ajudavam os aliados no Afeganistão e no Iraque.”

Bill Keller, prémio Pulitzer pelos seus trabalhos como correspondente em Moscovo, desenvolveu o tema: “Aplicámos o nosso critério sobre o que era fundamental, não o deixámos nas mãos do Governo dos Estados Unidos”.

O director do The New York Times foi peremptório: “Consultámos a administração, mas a decisão foi nossa.” De início, governos, chancelarias e sectores da opinião pública manifestaram mal-estar. “Os leitores do jornal em papel do Le Monde não compreendiam que publicássemos tantos segredos de Estado”, recordou Kauff – mann.

O Governo de Paris reagiu: “Altos funcionários protestaram e o ministro da Indústria tentou proibir que uma empresa francesa albergasse WikiLeaks depois de a Amazon a ter deixado, mas a Justiça não deixou.” Do outro lado do Atlântico, Keller lembrou que quatro senadores conservadores propuseram mudar a lei de espionagem. “Contudo, a administração norte-americana reagiu de forma sóbria, tranquila, não gostou da publicação mas evitou entrar numa orgia contra a imprensa”, salientou.

Na Alemanha, o Governo de Merkel reagiu mal: “Fomos considerados irresponsáveis”, recordou Mascolo. Foi um diplomata norte-americano que tranquilizou o director da Der Spiegel. “O embaixador em Berlim disse que nada tinha contra nós, mas contra o Governo do seu país, por ter permitido a fuga de informação”. Já em Londres ou Madrid, os directores do The Guardian e do El País não notaram especial azedume do poder político.

“Afinal, com o passar do tempo, todos viram que não criámos problemas a ninguém”, conclui Alan Rusbridger, alertando: “Temos de estar atentos ao que se passa com Julian Assange.” O director do The Guardian foi claro: “Seria ridículo que fosse ele o julgado (nos Estados Unidos pela divulgação dos telegramas) e não nós, os directores.” Os directores foram unânimes num objectivo: “Assange deve ser protegido como fonte, como nós o tratámos”, resumiu o norte- americano Keller.

A experiência da WikiLeaks abriu novos horizontes. O director do The New York Times revelou que o seu jornal está a estudar a constituição de uma caixa de correio: “Teremos sempre que confi rmar o que nos dizem.” Diferente foi a percepção da importância dos novos meios de informação, do Twitter ao Facebook nas revoltas no mundo árabe. “As redes sociais foram a base das revoltas árabes”, considerou Javier Moreno.

O director do El País não deixou de observar a contribuição das revelações da WikiLeaks: “Os tunisinos não necessitavam das fugas de informação para conhecerem o nível de corrupção dos seus governantes, mas o publicado funcionou como detonante”.

Já para a directora de redacção do Le Monde, “as revoluções não se fazem só com Twitter ou Facebook, mas com pessoas que actuam, a acção revolucionária não repousa apenas nos meios”. “A WikiLeaks não favoreceu as mudanças, mas o conhecimento”, contrapôs Bill Keller. E deixou um aviso: “Não queremos que a tecnologia e o jornalismo tirem o crédito a quem arrisca a vida nas praças”.

O alemão Georg Mascolo admitiu que os “novos meios de comunicação são um utensílio que pode organizar as pessoas”. O director da Der Spiegel introduziu um novo problema: “As ferramentas de comunicação são sempre úteis para as oposições e para os Governos que as podem controlar e ainda não sabemos quem vai ganhar essa disputa”. Alan Rusbridger concordou. “Essa vai ser a batalha decisiva deste século”, anunciou o director do Th e Guardian.

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