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O Futebol que salva vidas

O Futebol que salva vidas

Na Tanzânia, uma equipa de futebol reúne jovens albinos não só para praticar desporto, mas para escapar ao preconceito, à perseguição e à violência de que têm sido vítimas por causa da falta de cor na sua pele.

O estádio está quase vazio e o sol está quase a pôr-se. Do lado esquerdo do relvado castigado pelo clima quente e seco que atinge o Sudeste africano, nesta época do ano, a equipa de uniforme branco faz os seus últimos alongamentos à espera do apito inicial para mais uma partida pela Terceira Divisão da Tanzânia.

Além da ansiedade e do orgulho de mais uma vez entrarem em campo juntos, uma característica visível distingue a maioria dos jogadores: eles têm em comum uma condição genética rara, o albinismo, que faz com que, numa terra em que a maioria absoluta é de negros, eles tenham a pele branca, olhos claros e cabelos ruivos ou louros. E sejam perseguidos e caçados por isso.

Apesar da aparência moderna das capitais de diversas cidades africanas, onde quase todos têm um telefone celular, em muitos lugares ainda sobrevivem crenças ancestrais, algumas cruéis aos olhos (e estômagos) ocidentais e incompatíveis com a civilização contemporânea. Populações da Tanzânia, Burundi e Suazilândia usam partes do corpo dos albinos em rituais que acreditam trazer boa sorte e curar todos os tipos de males.

Só na Tanzânia, há cerca de 160 mil albinos, uma concentração sete vezes maior que a média mundial, que, diante da pobreza e do atraso, enfrentam a acção de ladrões de túmulos e até de matadores, que lucram com a venda da pele, órgãos e ossos de outros seres humanos.

Em Julho de 2008, para tentar conter uma onda de violência que matou pelo menos 25 albinos, o Presidente Jakaya Mrisho Kikwete proibiu a acção de feiticeiros na Tanzânia e nomeou uma mulher albina, Al-Sheymaa Kway-Geer, ex-funcionária de uma companhia aérea, para o parlamento. Foi um passo importante para a valorização dos albinos na sociedade africana e, apesar de não garantir o fim de um mercado tão macabro quanto lucrativo, fez surgir entidades de protecção ao albino.

Foi nessa época que o empresário Oscar Haule – que não é albino – procurou a Tanzânia Albino Society (TAS), com a ideia de criar uma equipa de futebol: nascia o Albino United. “Todos no país são loucos por futebol e a minha esperança é que, vendo albinos a jogar com negros, as pessoas passem a valorizar as suas vidas ao invés de apoiar as suas mortes” diz Haule, que vive em Dar Es Salaam, capital da Tanzânia, que virou a sede do clube, pois, por ser mais urbanizada, oferece relativa segurança aos atletas.

E segurança, neste caso, é o nome do jogo, pois no Albino United, os jogadores têm histórias trágicas para contar, como Yasin Saliehe, capitão da equipa. Ele nasceu em Mwanza, cidade na região Norte do país, próximo ao mítico e enorme Lago Vitória, na fronteira entre Quénia e Uganda, onde os ataques são frequentes.”Escolhemos Yasin para ser o capitão, porque, além de tudo, ele é um exemplo para os outros meninos” conta Oscar Haule.”Aqui, isso é ainda mais importante do que o futebol que ele joga”

E importante, também, ter determinação. E coragem. Na temporada passada, o United terminou o campeonato da Terceira Divisão tanzaniano em 4º. lugar. Sem salário e cruzando o país em viagens de até 12 horas de autocarro, o clube teve que vencer o medo e o estigma para visitar lugares em que os albinos simplesmente são vistos como animais de caça.

“Há muitas superstições. Os pescadores realmente acreditam nelas. Os feiticeiros dizem: ‘traga-me um braço de um albino e eu façote apanhar mais peixes” conta Mohamed Kidunyu, jovem jogador do United, recordando-se da viagem a Mwanza, uma das regiões com maiores índices de ataques.

Lá, onde os pescadores não conseguem ganhar mais do que o equivalente a um dólar e meio por dia (cerca de 50 meticais), a combinação de crença primitiva e miséria faz com que seja comum ver saquinhos com cabelos de albinos amarrados às redes, ou amuletos ainda mais macabros, como ossos de braços ou pernas. “Sabíamos que seria chocante e perigoso, mas tínhamos que fazê-lo” conta o defesa Saidi Ndonge. um dos mais experientes da equipa.

Segundo Zihada Msembo Ali, secretário-geral da TAS, muitas crianças albinas eram mortas ao nascer. Nos últimos tempos, elas têm sido poupadas pelos pais, mas muitas são abandonadas pelos familiares, o que levou à formação de refúgios e escolas, de onde muitos dos jogadores do United saíram. “O futebol ajudou muita coisa, mas mesmo nessas escolas, as nossas crianças ainda sofrem assédio, preconceitos e ameaças. Ali, para treinarmos, ainda foi preciso colocar cercas e reforçar a segurança com patrulhas nocturnas”! diz Msembo.

Há ainda mais um risco de que os atletas do Albino United têm de enfrentar: os horários dos jogos e treinos. Sem a pigmentação natural que protege a pele dos raios solares, os albinos da região tropical estão particularmente susceptíveis ao cancro de pele: 80% deles desenvolverão algum tumor e, boa parte, morreu por causa disso. Por conta disso, os treinos acontecem bem cedo, de madrugada ou à noite, quase no escuro, já que nem todos os estádios têm iluminação.

Tantas dificuldades, compensadas com determinação e coragem para jogar futebol fizeram com que a equipa se transformasse no tema de um documentário (Albino United, 2010) de Barney Broomfield, produzido para a National Geographic da Inglaterra, e os atletas chegaram a posar para fotos de divulgação ao lado do craque marfinense Didier Drogba, do Chelsea. “Na verdade, nem tivemos contacto com ele, disseram-nos para tirar uma foto, fomos lá e foi só isso” diz Oscar Haule, sem esconder a frustração.

Haule conta que já tentou o apoio da FIFA e da federação local para a sua equipa mas não teve sucesso. A assessoria de imprensa do jogador de Drogba tampouco respondeu à reportagem para falar sobre o encontro com o Albino United.

Se não chamou a atenção de Drogba, os jogadores e a sua inabalável motivação têm entrado na agenda de outras pessoas importantes nos Estados Unidos: um congressista democrata actualmente faz campanha para que o Presidente Barack Obama (ele mesmo um descendente de imigrantes do Quénia, país que faz fronteira com a Tanzânia e de onde saem traficantes de albinos) pressione o governo tanzaniano para erradicar de vez qualquer prática de violência contra albinos.

“A luta do Albino United é maior do que simplesmente vencer um jogo, ou um título. É a luta para provar que os albinos são pessoas e cidadãos”, afirma Oscar Haule. “Por isso, todo o mundo, jogadores, adeptos, dirigentes, são um pouco responsáveis por ela!”

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