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O futebol moderno já não tolera improvisos

O futebol moderno já não tolera improvisos

Investimento forte na base, um treinador com mentalidade diferente e abertura à influência estrangeira… Como a Alemanha se reergueu depois de reiterados fracassos.

Uma derrota, por pior que seja, vem com lições. Dez anos depois de ganharem o tricampeonato mundial na Itália, os alemães viviam uma crise no futebol, escancarada com a eliminação precoce do “Europeu” de 2000. Com duas derrotas, nenhuma vitória e apenas dois golos marcados – um na Holanda, outro na Bélgica –, a Alemanha, então campeã europeia, foi a última classificada de um grupo que tinha ainda Portugal, Roménia e Inglaterra.

Foi o ponto de partida para que o fracasso em campo virasse coisa séria no país, e o Governo decidiu: a selecção tricampeã do mundo, que vinha de dois fracassos em “Mundiais” (eliminação nos quartos-de-final para a Bulgária, em 1994, e Croácia, em 1998), deveria voltar a ser uma potência numa década.

Clubes, federação, atletas e antigos jogadores reuniram-se e decidiram que era necessária uma revolução no seu futebol cuja prioridade seria dada à formação de talentos.

Investir na base passou a ser um pré-requisito para que uma equipa pudesse disputar uma das duas divisões da Bundesliga, o Campeonato Alemão. E a filosofia de futebol ofensivo deveria nortear o trabalho, desde a equipa profissional até às categorias iniciais.

Outras das decisões foi o alargamento do intercâmbio de ideias com países do exterior e a contratação de uma comissão técnica ? liderada por Jürgen Klinsmann ? que revolucionou o modo de jogar da selecção germânica.

 

Olhar para as futuras gerações

Os 36 clubes das ligas alemãs investiram fortemente nos escalões de iniciados. Os responsáveis pelo futebol no país, juntando os mais diferentes sectores, colocaram mais de 1 bilião de dólares norte-americanos em academias e centros de treinos para jovens ao longo deste século. Com o dinheiro, o trabalho foi fornecer toda a estrutura necessária para tirar o máximo possível das novas gerações.

A Federação Alemã de Futebol tem investido 20 milhões de euros anuais destinados à promoção de talentos no sentido mais amplo da palavra. Em todas as categorias de base, uma rede nacional de 366 centros de formação de atletas foi criada, usando principalmente a infra-estrutura dos clubes locais, com instalações acima da média. Nesses locais, 14 mil jovens com idades entre 11 e 14 anos recebem aulas extras através de uma sessão de treino de duas horas semanais fornecidas por profissionais da federação. Isso além do treino que eles fazem nos seus respectivos clubes – disse o presidente da federação alemã, Wolfgang Niersbach, em entrevista ao jornal inglês “The Guardian”.

Outras medidas além das quatro linhas foram adoptadas pelos organizadores do futebol alemão.

Mais 46 academias e 29 escolas alemãs foram criadas com vista à formação de atletas de ponta. Assim, os alunos recebem uma educação completamente normal, tem total acesso à universidade e ainda beneficiam do futebol como parte do currículo. Todos os jogadores das selecções de base, de sub-15 em diante, tiram partido do mesmo nível de apoio nos bastidores, incluindo um psicólogo desportivo, um preparador físico, assim como médicos de primeira linha e fisioterapeutas ? ressaltou Niersbach.

Nos estádios, os preços dos bilhetes foram mantidos congelados, garantindo a lealdade dos adeptos. Empresários estrangeiros e magnatas russos foram impedidos de comprar clubes, como na Inglaterra. Hoje, a Bundesliga é o torneio mais rentável de toda a Europa, com a maior média de público – 45 mil por jogo – e a única em que todas as equipas se encontram numa situação financeira estável. A estrutura montada pelo Bayern de Munique transformou-se num paradigma. Longe dos estereótipos do futebol germânico de décadas passadas, o local é um laboratório de técnicas e inovações.

Cinco campos de treinamento repartidos em 70 mil metros quadrados num elegante bairro de Munique recebem semanalmente 185 jovens. Noventa porcento deles são da própria região da Baviera, num esforço para criar jogadores que se identificam com o clube e demonstrar à comunidade que as suas raízes são claras. No total, o clube mantém nada menos que onze equipas completas, além da principal, sonho de todos os garotos na região. Para seleccionar os jovens que poderão treinar na “academia”, o Bayern montou um verdadeiro exército e 26 olheiros e treinadores, todos com formação profissional. Outras 40 pessoas trabalham exclusivamente para as equipas de base, incluindo psicólogos. Os investimentos chegam a cinco milhões de dólares norte-americanos apenas nos escalões de iniciados, o que inclui um relvado com aquecimento subterrâneo.

O rigor nos treinamentos também segue o melhor estilo alemão. Aos jovens de sete anos de idade, o clube exige presença obrigatória nos três treinos semanais. Para aqueles que prometem ser as novas estrelas, é garantido um tratamento VIP. O clube hospeda 13 desses jovens entre 15 e 18 nas suas instalações, um modelo parecido com o que existe no Barcelona. Os jovens são proibidos de falar com a Imprensa – justamente para não os expor à pressão antes da hora correcta. Mas, sem boas notas na escola local, são eliminados do programa.

Quando questionados sobre se os resultados do investimento estariam a corresponder ao desejado, os profissionais do clube não hesitam em responder afirmativamente. Além de garantir a base da selecção da Alemanha, o Bayern conseguiu reduzir de forma drástica os seus gastos para trazer estrelas de fora. Na selecção, a renovação em relação à geração de Ballack ocorreu sem que haja sequer um temor sobre a qualidade da equipa em campo.

Outra constatação: dos 134 clubes europeus, o Bayern foi o que mais forneceu jogadores para o “Europeu” de 2012, superando até mesmo o Barcelona e o Real Madrid. O clube também disponibilizou para o Campeonato do Mundo nada menos que 18 jogadores, a mesma quantidade de jogadores que todos os clubes brasileiros juntos providenciaram para o “Mundial” em selecções como a do Chile e alguns na equipa de Scolari.

Investimentos

Mas não são apenas os grandes clubes com dinheiro que investem. A federação aprovou uma lei em que estabeleceu que, para participar no campeonato nacional, todos os clubes seriam obrigados a manter uma escolinha. Para garantir que todos conseguissem montar as suas academias, a federação exigiu que os clubes mais ricos financiassem parte das despesas dos clubes mais pobres.

O Schalke 04 foi um dos primeiros a reforçar as suas equipas de base. A opção encontrada foi a de fechar um acordo com uma escola local e transformar as aulas de educação física numa preparação para o clube. Agora, os investimentos estão a dar frutos. Cinco guarda-redes titulares na primeira divisão alemã vieram da escolinha do Schalke, incluindo o guarda-redes da selecção Manuel Neuer.

Os resultados começaram a aparecer ainda em 2013 quando, pela primeira vez, a Alemanha manteve na actual temporada sete clubes para as duas competições europeias. Todos passaram para os oitavos-de-final. Na Liga dos Campeões, Bayern de Munique, Borussia Dortmund e Schalke terminaram em primeiro lugar nos seus grupos e a final foi disputada entre Bayern e Borussia nesta temporada.

Ao contrário do futebol espanhol, onde apenas quatro clubes venceram a Liga nacional nos últimos 20 anos, na Alemanha a concorrência é forte. Em dez anos, cinco clubes levantaram o troféu da Bundesliga. Diferentemente do inglês, mais de 80% dos jogadores na primeira divisão alemã são locais. Os estádios estão lotados em todas as jornadas.

 

Uma nova postura em campo

Enquanto uma geração com Mesut Özil, Thomas Müller, Sami Khedira, Manuel Neuer, Jérôme Boateng e companhia era preparada na base, foi preciso paciência. Dentro de campo, os resultados aconteceram imediatamente. Uma selecção enfraquecida, liderada pelo médio Michael Ballack e pelo guarda-redes Oliver Kahn, foi de forma atabalhoada até a final do Campeonato do Mundo de 2002 para, curiosamente, enfrentar (e ser derrotado) pelo Brasil de Luiz Felipe Scolari.

A campanha além das expectativas na Coreia e no Japão pode ter gerado uma animação momentânea, mas que cairia por terra dois anos depois. No “Europeu” de 2004, a equipa comandada por Rudi Völler voltaria a fracassar na primeira fase, depois de perder com a República Checa e empatar com a Holanda e a Letónia. E aí foi dado mais um passo para a renovação alemã: o ex-atacante e ídolo local Jürgen Klinsmann assumiu o comando da equipa e fez de Joachim Löw seu assistente.

“Quando aceitei ser treinador da Alemanha, com Joachim Löw como o meu assistente, tive a oportunidade de decidir sobre a direcção que a equipa tomaria. Nós os dois começámos o processo de regeneração, tentando dar à nossa selecção uma identidade. Decidimos implementar um espírito ofensivo na equipa, jogando a bola pelo chão e partindo da linha de trás para a frente o mais rápido possível usando o futebol dinâmico” disse Klinsmann, actual treinador dos Estados Unidos, em artigo publicado pela “BBC” em 2010.

Klinsmann e Löw, o actual treinador da selecção, têm estilos distintos, mas ambos contribuíram de forma fundamental para esta mudança. Enquanto Klinsmann foi sempre o motivador, mais extrovertido, Löw era o homem da táctica, que observava os adversários. Foi Klinsmann quem inventou os uniformes vermelhos por achar que precisavam de ser mais agressivos. Nunca antes tinha havido a cor encarnada nos equipamentos da Alemanha.

Mas o futebol alemão passou também por uma revolução táctica. A revista alemã Der Spiegel escreveu, em Maio de 2013, que os alemães chegaram à conclusão, também, de que o seu jogo era duro demais. Era preciso mudar uma cultura.

Referindo-se a jogadores como Philipp Lahm (capitão da seleção) e Bastian Schweinsteiger, a revista escreveu: “De facto, eles são algo feminis, retraídos, versáteis. No passado, os fãs do futebol estavam acostumados aos chamados machos Alfa, jogadores como Oliver Kahn e Stefan Effenberg, que venceram a Liga dos Campeões de 2001 com o Bayern de Munique. (…) Ou Lothar Matthäus, o líder da equipa que ganhou o Campeonato do Mundo de 1990. Eles chamavam a atenção pelo seu estilo de jogo duro e poderoso, pelo seu comportamento grosseiro e pelos seus casos polémicos com mulheres. Noutras palavras: eram ‘homens de verdade’. Mas isso também os fazia tediosos. Lahm e Schweinsteiger, ao contrário, parecem eternos garotos. (…) E isso é uma coisa boa porque o jogo moderno depende de um grupo de jogadores capazes de fazer quase tudo. Todos eles são igualmente importantes, e ninguém precisa de um companheiro que determine tudo e domine a equipa. Dá-se o mesmo na sociedade. Nós entramos na era do trabalho de equipa.”

Influência estrangeira

Os alemães não têm vergonha de reconhecer que, durante o período de crise, foram até países vizinhos “copiar” fórmulas vencedoras. Na França, na Holanda e na Espanha, os treinadores encontraram modelos de sucesso que poderiam ser importados para o futebol local. Na visão de Ralf Itzel, antigo jogador e campeão em 1974, a inspiração em escolas estrangeiras pode ser muito bem-vinda.

“A mudança na Alemanha teve uma forte influência estrangeira. Chegaram técnicos de fora, como o (holandês) Van Gaal (para o Bayern de Munique), o (espanhol) Guardiola (ex-Barcelona) chegou agora (ao Bayern)… Os alemães abriram-se para os estrangeiros, e outros saíram para aprenderem fora do país. Os alemães viram que não poderiam continuar com as mesmas coisas de sempre”, acrescentou Itzel.

A selecção alemã é também fruto de um caldeirão cultural. Sem traumas e longe da ideia de nacionalismo alemão, a equipa entra em campo com vários “estrangeiros” e várias religiões. O pai de Mesut Ozil é turco, enquanto a família de Sami Khedira vem toda ela da Tunísia. Miroslav Klose nasceu na Polónia, assim como Lukas Podolski. Jerome Boateng tem a sua família ainda no Gana e Shkodran Mustafi é kosovar.

Os resultados podem ser vistos em campo. O futebol tricampeão do mundo teve a terceira melhor campanha nos “Mundiais” de 2006 e 2010, tendo chegado à final no “Europeu” de 2008. Hoje, o Campeonato Alemão é um dos mais rentáveis do planeta, o campeão da média de público na Europa. As suas duas principais equipas, o Bayern de Munique e o Borussia Dortmund, disputaram a final da Liga dos Campeões de 2013.

É evidente que é bom uma equipa contar com Cristiano Ronaldo, com Lionel Messi, com Neymar Jr. Mas nem Portugal, nem Argentina, nem o Brasil, conquistaram a taça. Só com eles, não se vence um Campeonato do Mundo. Sem organização, disciplina e planeamento, o talento dissipa-se. Com organização, disciplina e planeamento, consegue-se tudo: até talentos.

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