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Pandza: O décimo terceiro filho

Dona Vida tem treze filhos e muitos netos. Ela anda triste, muito triste porque na última quadra festiva um deles, o mais novo, não veio vê-la. Só doze vieram para aquele serão de família, no dia de Natal, trazendo-lhe as noras e os netos. Dizem que ele não veio por causa da nova esposa, a nora da dona Vida, que é maldosa e não gosta da sogra, até chamou-a “sogra feiticeira”.

Era domingo e ela saiu do chapa, organizando-se nos trajes, com todo o respeito que os trajes da igreja suscitam. Ajustou a saia amarrotada na enchente do chapa, sacudiu a possível poeira da bíblia como se a limpasse das impurezas mundanas, voltou a enrolá-la num lenço, endireitou os óculos e o chapéu, e em passo de domingo desceu a rua de areal sem agitar uma única poeira, tal era a leveza da sua pisada.

Estava triste mas mesmo assim sorriu quando, passando pela barraca da rua, olhou para nós dizendo “bondia meninos” com a voz afinada nos coros da igreja, e nós, por respeito, largámos os copos antes de lhe responder “bondia tia Vida”.

Mas já não era “bondia”, era ”botarde”. Aos domingos acorda-se tarde e tem-se a sensação de ser ainda manhã quando já é tarde. Dona Vida estava triste, um dos seus filhos não veio vê-la por causa da nora. Abriu o portão de casa que chiou como um trompete nostálgico, e desapareceu casa adentro, demorou o tempo de uma refeição rápida e, quando voltou, lenços e capulanas tinham substituído o uniforme da igreja.

O corpo arredondado com a maturidade inclinava-se ao peso de um cesto enorme, e noutra mão trazia uma caixa de madeira. O portão voltou a chiar. Do lado de fora da casa pousou o enorme cesto e a caixa, sacudiu o saco de serrapilheira e estendeu-o no chão com o mesmo carinho que se prepara uma cama para se deitar.

Sentada sobre a caixa de madeira organizou a hortaliça que ia tirando do cesto enorme sobre o saco de serrapilheira. Amontoou as coisas muito bem alinhadas, e ficou ali sentada, a flutuar o pensamento, a olhar para nada, como se visse lembranças no ar.

De vez em quando suspirava, sacudia os insectos e refrescava as verduras com salpicos de água. A alface estava amarela e as outras coisas pareciam murchar. Aprendi, com os muitos anos de vizinhança, que é pelo tom da hortaliça que se percebe o astral da Dona Vida. Quanto mais pálido mais triste ela estava.

Dona Vida é o centro comercial aqui do bairro e guia-se por fortes princípios religiosos, talvez por isso não inflacionou os preços, como se faz em Dezembro, apesar da oportunidade. É por isso que toda a gente compra ali.

Um grupo de três crianças interrompeu a brincadeira e correu até ela, eu não as ouvi mas adivinhei o pedido: “Tem gelinhos?” e percebi ela fazer “não” com a cabeça. Outra criança menos animada, com cara de excesso de tarefas domésticas, caminhou para lá e fez algumas compras. E mais gente passou para comprar ali qualquer coisa para o almoço melhorado dos fins-de-semana.

A dona Amélia, vizinha de reputada lábia não foi ali comprar, apenas parou para pôr os cumprimentos em dia, e conversaram naquele tom de comadres. Foi aí que, com o vento trazendo-me alguns sopros da conversa, eu ouvi Dona Vida desabafar que estava triste, apesar de já se saber pelo amarelar da alface.

Dona Vida trouxe ao mundo treze filhos, planeou de forma carinhosa cada um num mês diferente e deu-lhes nomes dos respectivos meses, de forma que o mais velho se chama Janeiro, o segundo Fevereiro, e depois vem Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro. Do mais novo, o décimo terceiro, o que não veio vê-la, não me lembro o nome.

A nora má da Dona Vida também cresceu aqui no bairro. Dizem que enfeitiçou o marido. Controla-lhe as finanças. Aperta-lhe o cinto. Racionaliza até a exaustão as despesas lá da casa deles. A nora má da Dona Vida chama-se Austeridade.

Dona Vida está triste porque só doze filhos vieram: Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro. Por causa da Austeridade, este ano o décimo terceiro não veio.

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