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O coração do mestre que não parou

O coração do mestre que não parou

@ Verdade deslocou-se esta segunda-feira a Matalana, terra natal de grande mestre Malangatana, falecido na quarta-feira da semana passada em Portugal e constatou que este ‘coração’ do mestre não parou.

Aqui, onde a cultura ronga respira saúde por todos os poros, encontrou gente da comissão da organização do funeral a ultimar os preparativos, camiões a alisarem a estrada, a casa do mestre tal como ele a deixou e muitos primos que viam em Malangatana uma força da natureza.

Sexta-feira, por volta das 13 horas, o seu corpo, tal como era seu desejo, desce à terra num terreno entre a casa grande e a futura Fundação.

 

 

Por estes dias, mesmo para quem não conheça, não é difícil chegar à aldeia de Matalana, no distrito de Marracuene. As indicações são escassas – oito quilómetros depois de Marracuene deve entrar-se à esquerda por um estradão de terra [era essa a indicação que tínhamos] – mas o movimento desusado leva-nos com facilidade à terra do maior artista moçambicano de sempre: Malangatana Valente Ngwenya.

À entrada do estradão, um carro com aspecto oficial – era preto – e uma mão estendida a indicar-nos o caminho, antecipando-se à nossa pergunta, faz com que não tenhamos dúvidas de que estamos no caminho certo para a casa do mestre. Um pouco mais adiante, cruzamo-nos com Mundau Obilino Magaia que, imediatamente, se apresenta: “ Sou primo directo do Malangatana. Crescemos juntos. Eu sou escultor e músico”, refere.

Mundau, rapidamente inverte o caminho – ia a Marracuene comprar petróleo – para nos servir de cicerone.

À pergunta se é mais velho do que o mestre, atira: “ – Sou de 1940. Agora faça a conta.” Fazemos. Tem 70 anos, menos quatro do que o mestre. Pelo caminho ficamos a saber que trabalhavam juntos, na escultura e na música e que o instrumento preferido de Malangatana era o “tambor”. “Eu prefiro a guitarra. Ele era também um grande dançarino. Estava programado quando ele regressasse de Portugal nós fazermos um CD. Era um disco de Marrabenta onde ele cantava e tocava tambor.”

Mundau nasceu, tal como o primo, em Matalana, uma terra que parece produzir muitos artistas. Hoje, vive em Maputo, no bairro do aeroporto, paredes-meias com Malangatana. “Tenho lá o meu ateliê.”

“Tudo está parado, mas vamos criar”

Viramos à esquerda, e entramos numa picada bem mais estreita, que, decididamente, não é feita para o trânsito destes dias. Os berros estridentes das crianças no cruzamento indicando o caminho para a casa do mestre, arranca sorrisos a Mundau que, jocosamente, diz “obrigado pela indicação pois estávamos perdidos.”

Passam dois camiões carregados de terra vermelha muito fina, daquela que só exista nesta África. “Vão descarregar e depois vem o tractor espalhar, para a estrada ficar mais lisa”, esclarece Mundau. “O Presidente Guebuza não pode andar aqui aos saltos.” Quando o camião descarrega o pó vermelho cobre tudo em redor.

O primo diz-nos que Malangatana vinha amiúde a Matalana. “Passava muitos fins-de-semana aqui. Aqui é que Malangatana gostava de pintar, brincar com as crianças, visitar a casa de familiares e amigos de infância. Era a casa dele”, resume.

Passamos pelo Centro Cultural de Matalana, uma das últimas grandes obras do mestre. É uma série de edifícios, alguns com aspecto inacabado. “Agora está tudo parado. Mas vamos criar”, promete Mundau. Que logo esclarece que o mestre vai ser enterrado no terreno destinado à Fundação que irá instalar-se por detrás da casa grande, recentemente concluída.

E continua: – “O corpo irá chegar na quarta-feira, pelas 19 horas, e irá estar aqui no centro onde vamos actuar com cânticos, danças, e… qué-qué-qué, qué-qué-qué – o etc. local. Hoje de manhã estivemos a limpar isto tudo.”

Estamos bem no coração ronga de Moçambique. Aqui o português é só usado para comunicar com os estrangeiros, com quem vem de fora e, da boca das wansatis – mulheres –, pouco mais sai do que um cumprimento de boa tarde. Os assobios, característicos desta língua, fazem-se ouvir aqui com bem mais intensidade do que em Maputo.

Já a sair da zona do Centro Cultural, passamos por uma instalação da autoria do mestre que esteve exposta na Expo 98 de Lisboa. Trata-se de uma base de um carro, onde um crocodilo – Ngwenya, em ronga – transporta uma série de mamanas e vários animais. “É uma confusão”, resume, para despachar, Mundau. “Estão todos no carro para seguir em cima do corpo dele.”

A picada apresenta-se cada vez com mais areia e não tardamos a cruzar com um carro atascado. “Aqui só passam 4×4.” Junto às casas do mestre o estacionamento não é fácil. “Isto não é nada. Na quinta-feira vai ser impossível”, previne Mundau. “Nessa altura não se vai conseguir aqui chegar.”

Sepultado entre a casa grande e a Fundação

Lá está a casa ‘por enquanto’, assim lhe chamava o mestre, enquanto a outra, a grande ao lado, ainda não estava pronta. Foi aqui que Malangatana passou muito tempo, a pintar, a cantar, a brincar, a conviver. Dois quartos circulares com uma sala pelo meio e uma pequena casa de banho completam o espaço. No interior, tudo está como o mestre deixou. “Esta escultura fui eu que fiz”, refere, orgulhosamente, Mundau, apontando para um busto de madeira curvilíneo. O espaço está decorado de uma forma muito simples, tal como era o seu proprietário.

Quatro serigrafias da sua autoria adornam as paredes. Ao lado, uma foto com a seguinte legenda: “O Mundo na Cabeça Carlos 96”, onde se vê duas mulheres do campo a carregarem duas pesadas latas. No cavalete, ficou um óleo com rostos tristes. Talvez Malangatana se estivesse a despedir da vida.

Duas estantes – uma com louça e outra com livros –, uma mesa de jantar, cadeiras em volta, uma geleira e uma arca congeladora completam o rol de objectos. O quarto, à esquerda de quem entra, era o do mestre. Uma cama alta de madeira ocupa a parte de leão, onde ainda se vêem duas mesinhas com tampo de mármore e, no chão, a parafernália que existe sempre em casa de um pintor: tintas e pincéis.

Num dos armários embutidos, ficou pendurada a bata, uniforme de trabalho destes artistas. Cá fora, passamos pela casa grande, em tons laranja, projectada pelo amigo José Forjaz. É, sem dúvida, a maior construção num raio de muitos quilómetros. “É grande como ele”, atira um vizinho a rir-se. Entre a casa grande e os terrenos destinados à Fundação, encontra-se uma comitiva que vem “tratar de organizar as coisas”, como diz Mundau.

Estão exactamente no local onde o mestre vai ser enterrado. “Era a vontade dele”, esclarece Manuela Soeiro, directora do Teatro Avenida, do grupo de teatral Mutumbela Gogo e responsável pela vertente cultural do funeral. “A quinta-feira vai ser dedicada à cultura. Haverá danças, cantares, declamação de poesia, etc.”

A comissão, criada para o efeito, anda numa azáfama para que tudo esteja em ordem quando, na quarta-feira (dia 12), o corpo chegar a Matalana. Andam para cima e para baixo, da casa para o Centro Cultural, num corrupio constante.

“A Arte era a sua Televisão”

Os 83 anos de Champilino Ngwenya já não permitem grandes correrias. Este primo de Malangatana é presidente da assembleia do Centro Cultural. É ele que reporta tudo o que se passa no Centro. Nove anos mais velho do que Malangatana, recorda-se sobretudo dos anos de infância do mestre. “Gostava muito de desenhar. Na escola era o que fazia os desenhos mais claros” – leia-se melhores.

O berlinde e a fisga eram as brincadeiras preferidas. Há uns anos ainda me prometeu ir aos pássaros com a fisga. Mas já não conseguia andar muito bem por isso não chegámos a ir. Até agora vinha aqui passar os fins-de-semana. Era aqui que ele gostava de pintar porque na cidade tinha muitas visitas a desconcentrá-lo. Às vezes ficava aqui a pintar até de manhã. Tinha de pensar muito para fazer o trabalho dele.”

José Ntila está sentado à mesa de cimento que ele próprio construiu. “Fui eu que fiz tudo isto”, refere, apontando para a casa ‘por enquanto’, para a casa grande e para as construções do Centro Cultural. “Ele [Malangatana] explicava como queria as coisas e eu construía. Esta casa onde ele dormia foi construída em dois meses. Isto não é nada. Parece casa de brincar.”

Já a construção da casa grande arrastou-se por três longos anos. “Não havia dinheiro para terminá-la. Teve de ser aos poucos.” Uma casa para a Fundação era outro dos planos próximos do mestre, como assegura Ntila. Para isso contava com o apoio de Portugal, dos países nórdicos e com instituições como a UNICEF e os CFM. Este também primo do mestre, de 72 anos, não nasceu em Matalana mas conhece a terra como poucos. “Nasci do outro lado do rio [Incomati] junto à Macaneta. É mais fresco”, risos.

“Ele [Malangatana] era homem de força. Não estava a ver nada que o pudesse matar de um dia para o outro. Quem está sempre com a arte na cabeça nunca fica quieto. Está sempre a contar histórias. Se ele estivesse aqui só durante o tempo que estamos aqui a falar já teria feito vários desenhos. A arte era a sua televisão.”

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