A 11 de Julho de 2014, a Assembleia da República aprovou um novo Código Penal, mas a sociedade civil denuncia que ainda contém violações dos direitos humanos e apela ao Presidente da República para que não promulgue esta lei.
No dia 11 de Julho de 2014, a Assembleia da República aprovou de forma definitiva e por consenso o novo Código Penal, em substituição do que vigorava no país há mais de um século. Este acto veio na sequência de vários debates e alguma polémica em torno de alguns artigos do novo Código Penal, que, no entendimento da sociedade e das organizações nacionais da sociedade civil, violavam os direitos humanos das mulheres e das crianças.
No entanto, é de reconhecer que a última versão aprovada retirou alguns dos artigos ofensivos aos direitos da mulher e da rapariga. Por exemplo, o que antes era chamado de “crimes contra a honra” passou a ser designado de “crimes contra a liberdade sexual”. Por isso, o novo código Penal tem o mérito de definir que o bem a proteger nos crimes sexuais é o da liberdade sexual e a integridade física, reconhecendo-se a autonomia no desenvolvimento da sexualidade e na preservação da dignidade da pessoa humana.
Entretanto, quando analisados concretamente os tipos criminais previstos no novo Código Penal, verifica-se que nem todas as normas respondem a esta preocupação. Reagindo ao novo Código Penal, associações da sociedade civil, organizadas numa coligação informal, denominada “Plataforma de Luta Pelos Direitos Humanos no Código Penal”, apesar de reconhecerem os esforços que foram feitos, lamentam que persistam lacunas e violações dos direitos humanos.
Argumentam que as mesmas contrariam não só a Constituição da República mas também as Convenções regionais e internacionais de que o Estado moçambicano é parte. Apontam sobretudo o seguinte:
Violação do princípio da igualdade – artigo 35º da Constituição
O artigo 35 da Constituição que estabelece o princípio da igualdade institui que todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política. As disposições que violam este princípio da igualdade no novo Código Penal são as seguintes:
Artigo 243 (Crime de discriminação)
Esta norma teve em vista materializar o princípio da igualdade, transformando num comportamento criminoso certas situações em que ele é violado. Com efeito, o artigo estabelece penas para quem injuriar outrem usando expressões ou considerações que traduzam preconceito quanto à raça ou cor, sexo, religião, idade, deficiência, doença, condição social, etnia ou nacionalidade e que visem ofender a vítima na sua honra e consideração.
No entanto, nesta enumeração das situações que podem constituir discriminação ficou de fora uma discriminação que é muito comum na nossa sociedade, a discriminação em função da orientação sexual.
A não criminalização da discriminação em função da orientação sexual constitui uma situação de discriminação contra as minorias sexuais, pois transmite a mensagem de que este grupo não carece de protecção legal tal como outras situações de vulnerabilidade que traduzam preconceito e que mereceram a protecção da lei (nomeadamente, quanto à raça ou cor, sexo, religião, idade, deficiência, doença, condição social, etnia ou nacionalidade).
E a consequência desta omissão legislativa inconstitucional será a de agravar a violência a que este grupo de cidadãos se encontra exposto face à não criminalização desta base de discriminação.
Artigo 223 (Denúncia prévia)
Este artigo prevê que nos crimes de atentado ao pudor e violação (com excepção da violação de menor de 16 anos), os procedimentos criminais tenham lugar após denúncia prévia do ofendido, salvo nalgumas circunstâncias. No entanto, a gravidade dos crimes contemplados nesta secção justifica que o Estado intervenha para garantir a punição do agressor, tendo em conta o bem jurídico a proteger (a dignidade e integridade física e moral do ofendido), pelo que deveria poder ser denunciado por qualquer pessoa (crime público) e não apenas por algumas pessoas (crime semi-público).
Pensamos que esta disposição é discriminatória não só em função do género (homem e mulher), mas também é discriminatória em termos de direitos das crianças, ou seja, protege apenas uma parte deste grupo vulnerável deixando de fora outras crianças (as crianças maiores de 16 anos e menores de 18 anos).
Em termos estatísticos, as mulheres são maiores vítimas de violência sexual do que os homens. Também, relativamente à denúncia destes crimes, verifica-se que as mulheres sofrem maiores constrangimentos para efectuar a denúncia, por causa da vergonha pela experiência por elas vivenciada, por medo do perpetrador ou até pelo estigma social.
Em termos de tratamento dado pelas autoridades à violência sexual envolvendo mulheres, na prática verifica-se que estas situações são minimizadas pelos agentes que, à luz da lei, são responsáveis pela sua punição. Deste modo, deixar à responsabilidade das mulheres vítimas de violência e as pessoas a elas próximas a responsabilidade de denunciar as situações de violência sexual, apenas irá agravar as situações de desigualdade de acesso à justiça pelas mulheres.
2. Violação do direito à privacidade – artigo 41º da Constituição
O artigo 41 da Constituição da República estabelece o direito dos cidadãos à reserva da sua vida privada. O nº 2 do artigo 258 do novo Código Penal parece violar esse direito:
Artigo 258 (Abertura fraudulenta de cartas)
O nº 1 deste artigo estabelece que aquele que maliciosamente abrir alguma carta, papel fechado ou meios electrónicos de outra pessoa, será penalizado. O nº 2 deste artigo diz, no entanto, que a disposição do nº 1 não é aplicável aos cônjuges, pais e tutores, quanto às cartas ou papéis de seus cônjuges, filhos ou menores que se acharem debaixo da sua autoridade.
A Plataforma é de parecer que embora se possa compreender a aplicabilidade de tal disposição relativamente aos pais no que diz respeito aos seus filhos, é inaceitável e violador dos direitos individuais dos cônjuges que esta disposição seja a eles aplicável. O que torna mais grave esta situação é o facto de o artigo reconhecer que a abertura da correspondência é feita “maliciosamente” e, mesmo assim, isentar da condenação quando tal acto é praticado entre cônjuges.
Esta disposição viola entretanto não só a Constituição da República, mas também a Lei de Família que estabelece como um dos principais suportes do casamento o respeito mútuo entre os cônjuges.
3. Violação dos direitos das crianças – Artigo 47º da Constituição
O nº 1 deste artigo estabelece que as crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. O nº 3 do mesmo artigo acrescenta que todos os actos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas ou privadas, devem ter em conta o superior interesse da criança. Assim sendo, todos os actos legislativos devem reflectir este princípio.
Por outro lado, a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e a Carta Africana sobre os Direitos e Bem-estar das Crianças, ambas ratificadas por Moçambique, bem como a legislação nacional, definem como crianças todas as pessoas menores de 18 anos.
Com base nestes fundamentos, a Plataforma considera inaceitável que o Código Penal não respeite a idade dos 18 anos, na protecção que deveria dar aos menores, não respeitando o princípio do “interesse superior da criança”. São exemplos disso:
Artigo 219 (Violação de menor de doze anos)
Esta disposição que procurou qualificar o crime de violação de menores, estabeleceu uma moldura penal mais pesada, por considerar mais gravoso este crime quando praticado contra crianças. No entanto, peca por considerar crianças apenas os menores de 12 anos, em violação às disposições da Constituição da República e das Convenções acima referidas.
Artigo 220 (Actos sexuais com menores)
Na mesma linha do artigo anterior, este novo artigo deu importância a outras formas de violência sexual contra menores, embora só proteja as crianças até aos 16 anos.
Artigo 223 (Denúncia prévia)
Tal como referido acima, este artigo é discriminatório e desprotege as crianças entre os 16 e os 18 anos de idade.
Artigo 24 (Encobridores)
O novo Código Penal falha em proteger os menores que sofrem de violência sexual no entorno familiar. Com efeito, este artigo isenta dos crimes de encobrimento os cônjuges e familiares, permitindo-lhes alterar ou desfazer os vestígios do crime com o propósito de impedir ou prejudicar a formação do corpo de delito, ocultar ou inutilizar as provas, os instrumentos ou os objectos do crime com o intuito de concorrer para a impunidade.
Esta norma terá impacto negativo na investigação dos crimes de violência sexual contra menores, que as estatísticas demonstram que a maioria das vezes ocorrem num entorno familiar. Isentar de punição as pessoas que encobrem estes crimes, só por serem familiares, é uma forma de o legislador ser cúmplice da violação dos direitos das crianças e do menosprezo do princípio do superior interesse da criança.
4. Direito à vida – Artigo 40º da Constituição
A Constituição garante o direito à vida e à integridade física e moral. Alguns artigos no novo Código Penal falham em responder a este requisito, desprotegendo as cidadãs e os cidadãos. Vejamos:
Artigo 218 (Violação)
No crime de violação apenas se considerou a relação sexual forçada por meio de coacção moral ou física, deixando de lado a violação por penetração oral e por introdução de objectos, cada vez mais comuns nas denúncias deste tipo de crimes. Seria necessário ter uma noção mais abrangente do acto sexual, de modo a incluir a diversidade dos actos que colocam em causa a liberdade sexual. Por outro lado, o regime de sanção previsto para certas condutas sexuais afigura-se brando, tendo em conta a repercussão negativa na esfera da vítima. Os crimes de natureza sexual são hediondos, tal é a sua incidência na desvalorização da dignidade da pessoa humana. Daí justificar-se um regime de sanções mais severo.
Artigo 222 (Agravação especial)
Neste artigo o novo Código Penal traz alterações, ao enumerar as circunstâncias que tornam os crimes mais gravosos, instituindo, por isso, a agravação das penas. No entanto, entre as circunstâncias listadas, não se menciona a situação em que o crime contra a liberdade sexual é cometido por duas ou mais pessoas.
A comparticipação de duas ou mais pessoas na acção com vista a violar a dignidade sexual facilita sem dúvida o controlo da vítima, e representa uma violência muito maior, por exemplo, quando se trata de violação sexual, como se tem testemunhado em muitos crimes que a imprensa relata.
Deixar que a violação em grupo (duas ou mais pessoas) fique somente como circunstância agravante de carácter geral não é suficiente para defesa dos direitos da vítima. Como elemento determinante do aumento da pena deveria merecer uma qualificação especial, em nome da protecção integral da liberdade sexual.
5. Princípio da Igualdade de Género – Artigo 36º da Constituição
A Constituição garante que os homens e as mulheres são iguais em todos os domínios da vida política, económica, social e cultural. Mas esta igualdade não se concretiza apenas com leis que tratem homens e mulheres da mesma maneira, já que a base de partida é a profunda desigualdade que existe entre eles, na família, no trabalho e em todos os espaços públicos e privados.
Por isso, para garantir esta igualdade, há que ter medidas específicas que garantam que, apesar das desigualdades, todos e todas possam ter as mesmas oportunidades e o mesmo acesso a recursos.
É isto também que está instituído nos instrumentos regionais e internacionais que Moçambique ratificou, por exemplo, o Protocolo sobre os Direitos das Mulheres, na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
Por isso, quando à última hora se incluiu no novo Código Penal a Lei da Violência Doméstica (artigos 245 a 257), a Plataforma considerou que essa decisão era precipitada e prematura e, por isso, de desaconselhar. Vejamos os motivos apresentados:
A Lei da Violência Doméstica foi criada e aprovada pelo Estado moçambicano com o objectivo especial de promover os direitos humanos, mais especificamente os das mulheres como sujeitos de direito (não obstante a mesma ser aplicada indistintamente também aos indivíduos do sexo masculino), como forma de acabar com a situação de desigualdade existente entre esta e o homem em todos os campos. Ou seja, com a aprovação da Lei da Violência Doméstica o Estado reafirmou por meio de medidas legais o objectivo de minimizar as desigualdades historicamente construídas em torno do homem e da mulher e com isso promover a igualdade de direitos.
O tempo de vigência desta lei é relativamente curto para se avaliar com profundidade a sua aplicação prática e os problemas que se levantam, e são quase nulos os estudos e registos sobre este assunto.
Contudo, e ainda assim, é possível apontarem-se os vários constrangimentos que minam a efectividade da lei, pelo que seria preferível, por parte do legislador, proceder a uma reformulação da Lei da Violência Doméstica (Lei nº 29/2009), para que alcance eficazmente os objectivos traçados com a sua aprovação.
Ou seja, ao incorporar-se a Lei da Violência Doméstica no Código Penal aprovado, a violência da qual vem sendo vítima a mulher moçambicana será com este instrumento agravada e não combatida eficazmente. Isto, defende a Plataforma, torna o referido Código materialmente inconstitucional, na medida em que viola em termos materiais o princípio constitucional e universal da igualdade, já que está provado que a maior parte dos casos de violência doméstica levados a tribunal têm como vítimas o sujeito do sexo feminino.
A inclusão da Lei da Violência Doméstica agravará a situação de precariedade no tratamento judicial do crime de violência doméstica, e consequentemente aumentará a sensação de impunidade e o problema da minimização do fenómeno no seio da sociedade em geral e, em particular, dos operadores judiciários (juízes, procuradores, advogados e polícia), perpetuando a violência sofrida pelas mulheres e raparigas em Moçambique.
Perante as lacunas e soluções legais contidas no novo Código Penal acima apontadas, A Plataforma endereçou uma carta ao Presidente da República, apelando para que o Código Penal não seja promulgado e seja devolvido ao Parlamento para revisão dos problemas inconstitucionais indicados.
Coligação de Organizações
Organizações que fazem parte da coligação informal “Plataforma de Luta Pelos Direitos Humanos no Código Penal”: ActionAid Moçambique, Associação Moçambicana dos Juízes (AMJ), Associação das Mulheres Moçambicanas de Carreira Jurídica (AMMCJ), CECAGE, Centro Terra Viva, Fórum Mulher, Fórum das Rádios Comunitárias (FORCOM), Fórum da Sociedade Civil para os Direitos da Criança (ROSC), Fórum da Terceira Idade, Lambda, Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH), Mulher, Lei e Desenvolvimento (MULEIDE), Mulher e Lei na África Austral (WLSA), Pathfinder, Rede HOPEM, Rede CAME.
Normas polémicas retiradas no novo Código Penal
Despenalização do crime de bigamia – eliminado.
Criminalização do adultério – eliminado.
Fixação da idade criminal aos 10 anos – aumentado para 16 anos.
Suspensão da pena do violador por se casar com a vítima – eliminado.
Discriminação entre menores virgens e não virgens (crime de estupro) – eliminado.
Descriminalização da violação conjugal – eliminado. Penalização de menores por prática da prostituição por menores – eliminado.
Representantes das Organizações
Rafa Machava – Directora da MULEIDE
O Código Penal, como lei criminal mais importante do país, deveria ser forte e claro quanto à defesa dos direitos humanos. Mesmo depois de tanto trabalho e de tantos apelos das organizações da sociedade civil para termos um Código Penal exemplar e isento, esta ainda não é uma lei justa.
Graça Júlio – Membro da Fórum Mulher
A inclusão da Lei da Violência Doméstica no Código Penal deixou as mulheres mais desprotegidas. Vai fragilizar toda a luta para a erradicação de todas as formas de violência praticada contra a mulher e é uma negação ao gozo pleno de direitos por parte das mulheres.
É também a negação da existência das desigualdades de género, pois trata da mesma maneira a violência contra as mulheres e a violência contra os homens e cria condições para a não efectivação do princípio de igualdade emanado pela Constituição da República.
A materialização deste princípio só será efectiva se forem eliminados todos os obstáculos que impedem o gozo pleno dos direitos pelas mulheres. Ao mesmo tempo, o legislador ignorou todos os compromissos internacionais e regionais assumidos pelo Estado Moçambicano que instam o Estado Moçambicano a adoptar medidas legislativas específicas para a protecção de grupos mais vulneráveis, como é o caso das mulheres, crianças e raparigas.
Dário de Sousa – Membro da Lambda
Um grande ganho do novo Código Penal agora aprovado é a retirada dos crimes contra a natureza, aos quais eram aplicadas medidas de segurança e podiam ser usadas para sancionar relações entre pessoas do mesmo sexo. Entretanto, uma grande batalha da sociedade civil foi a inclusão da expressão orientação sexual na letra do artigo 234, que tipifica o crime de discriminação, o que não aconteceu.
A enumeração do artigo 234 é taxativa, o que contrasta com o artigo 35 da Constituição da República relativo ao princípio da igualdade, que apresenta uma enumeração meramente exemplificativa. Estamos claramente perante uma inconstitucionalidade do artigo 234 do novo Código Penal.
Terezinha da Silva – Coordenadora da WLSA
Sendo o Código Penal a mais importante lei criminal, ele é o garante dos nossos direitos constitucionais. Assim, ele deve proteger e defender a dignidade humana.
O Código Penal recentemente aprovado pelo Parlamento moçambicano carece ainda de ver reflectidos os direitos relacionados com a criança (considerada até aos 18 anos pela nossa Constituição) e os das mulheres, relativamente ao direito de viverem livres de violência. Por outro lado, as penas propostas contra as violações sexuais ainda são muito reduzidas.
Gilberto Macuácua – Membro da Rede HOPEM (Homens Pela Mudança)
Congratulo-me com a aprovação do novo Código Penal. É um instrumento importante e pertinente para a actual dinâmica em Moçambique, em pleno século XXI. Mas particularmente estaria satisfeito se o novo Código Penal respondesse cabalmente aos problemas de violação dos direitos humanos. Infelizmente, algumas disposições deste novo Código Penal mostram-se discriminatórias.
Para mim é inaceitável que os crimes de violência sexual, que atacam a pessoa humana não só ao nível físico como na sua integridade moral e dignidade, não sejam crimes públicos e precise de haver uma denúncia prévia (Artigo 223 – Denúncia prévia) (com excepção dos menores de 16 anos).
Eu acho que esta é uma das questões mais elementares, entre outras, que deveria ter sido vista pelo legislador antes da aprovação do Código Penal na Assembleia da República. Espero sinceramente que o Presidente da República faça a mesma análise, para o bem desta nação, e não promulgue esta lei tal como está.