Depois de quase quatro anos de debate, a Assembleia da República (AR) concluiu, com a aprovação por consenso, na última sexta-feira (11), o processo de revisão do actual Código Penal (CP) que vigora desde 1886. O novo instrumento entrará em vigor em Fevereiro de 2015, introduzindo no direito penal moçambicano uma nova tipologia de crimes.
Para além de crimes cibernéticos, matérias como agiotagem, rapto, linchamento, sequestro, terrorismo, aborto, entre outras que que não constam do actual Código foram incluídas naquele novo documento que deverá ser promulgado pelo Presidente da República (AR), Armando Guebuza, dentro de um prazo que se estende até meados de Outubro, visto que nesse mês decorrerão as eleições para a escolha de novo Chefe de Estado.
Este é o primeiro CP inteiramente moçambicano e contou na sua produção com um amplo debate envolvendo diversos sectores da sociedade seja a nível nacional assim como internacional, com o objectivo de apresentar um instrumento que reflectisse a realidade moçambicana.
As contradições durante a fase de debate permitiram que algumas matérias herdadas da legislação colonial que constavam da proposta de revisão e que eram consideradas um atentado aos direitos fundamentais dos cidadãos caíssem por terra, tendo como objectivo conformar o novo CP às necessidades do país no que diz respeito à definição dos tipos de crimes ou delitos e à determinação das respectivas penas aplicáveis.
Alguns artigos considerados polémicos que tinham a ver com a consagração do perdão a um violador que aceitasse casar com a sua vítima foram eliminados. Numa marcha realizada em Março do presente ano, a sociedade civil manifestou-se também contra o facto de o Código Penal ignorar ou discutir sem profundidade aspectos tais como a pedofilia, a violação sexual entre casais, o aborto, o direito das minorias sexuais, entre outras matérias.
No entanto, durante o debate na especialidade, vários artigos que constavam da proposta de revisão e que foram contestados por diversos grupos sociais e por pessoas singulares por considerarem que os mesmos iam contra os direitos dos cidadãos foram eliminados ou alterados no texto final.
Parlamento ignorou proposta da sociedade civil
A sociedade civil desencadeou, durante o debate na especialidade do Código Penal, um movimento que nalguns casos forçou o legislador a ter que voltar atrás e a desistir de algumas das suas pretensões em relação a algumas matérias, embora nalgum momento as suas propostas não tenham sido satisfeitas na totalidade.
No artigo 218 sobre “violência” o Parlamento entendeu alterar o termo “cópula” por “coito”.A Plataforma da Sociedade Civil para a revisão do Código Penal entende, no entanto, que a alteração tem apenas o mérito de incluir as relações sexuais por via vaginal e anal, mas continua a excluir a penetração por via oral e a introdução de objectos, formas cada vez mais comuns nas denúncias de casos que chegam às organizações não- governamentais (ONG) e à Polícia. Reclama ainda da moldura penal determinada para este tipo de crime (dois a oito anos de prisão) que é inferior a que é aplicada a quem comete o crime de furto (oito e 12 anos de prisão). Esta situação evidencia que o legislador dá mais valor ao bem a proteger em detrimento da integridade física das pessoas.
No artigo 219 sobre “violação de menores de 12 anos” as ONG entendem que o crime de violação de menor deveria reflectir a definição de criança patente na lei moçambicana, passando por isso a ser “violação de menor de 18 anos”. Sobre os “Actos sexuais com menores” plasmado no artigo 220, o Parlamento determinou que a vítima desse crime passasse a ser considerada tendo em conta a faixa etária dos 16 anos e não dos 12 anos de idade, mantendo-se inferior ao que havia sido proposto pela sociedade civil que era que a idade máxima fosse de 18 anos.
O artigos sobre “encobridores” (24) no CP ora aprovado continua a eximir algumas figuras tais como pais, cônjuges e familiares até ao terceiro grau de parentesco, de responder como encobridores no acto criminoso. Esta situação é vista como tendo um impacto grave, principalmente quando cometido por familiares ou dentro de casa envolvendo mulheres ou crianças. Relativamente ao artigo 245 sobre “discriminação”, o Código faz menção a várias formas de discriminação, mas ignora a que ocorre em relação à orientação sexual, considera, pela sociedade civil, uma das formas de violência dos direitos humanos, pois desvaloriza estas pessoas da condição de seres humanos.
No artigo sobre “denúncia prévia”, o novo CP substituiu a idade de 12 anos para 16 anos. No entanto, a sociedade civil entende que mais do que essa alteração, a lei devia determinar que os crimes previstos nesses artigos fossem de natureza pública.
Já no artigo 261 sobre “abertura fraudulenta de cartas” a Plataforma das OSC havia proposto a retirada do cônjuge do rol de pessoas contra quem não se aplica esta disposição (nº 2), com vista a impor aos cônjuges o respeito pela privacidade de cada um, proposta que não foi aceite.
Embriaguez e prostituição eliminados
Da proposta inicial aprovada na generalidade constatavam artigos que apontavam a intenção de se criminalizar algumas práticas comuns na sociedade, nomeadamente a embriaguez, a vadiagem, a mendicidade, o adultério e a prostituição. A classificação destes como crime não colheu simpatia por parte de alguns grupos sociais que se viram obrigados a pressionar o legislador no sentido de reconsiderar tal pretensão.
Quanto à embriaguez, artigo eliminado, o Parlamento entendia que “o álcool é também uma droga”, sendo por isso necessário punir com uma detenção de 24 horas, em estabelecimento policial as pessoas que aparecerem em lugares públicos embriagados pondo em perigo a sua própria segurança ou a alheia em virtude do consumo de bebidas alcoólicas. Contrariamente ao que tem sido publicado nalguma Imprensa, o artigo sobre embriaguez foi realmente retirado do novo Código Penal.
Em contacto com o @Verdade, o vice-presidente da primeira Comissão, Ernesto Cassimuca Lipapa, confirmou que esta matéria havia sido retirada por não colher consenso, tal como consta da “adenda consolidada” do relatório na especialidade. No relatório de votação na especialidade, o Parlamento suprimiu também artigos considerados controversos, tal é o caso dos referentes ao adultério, vadiagem e mendicidade.
Ao tentar assumir a mendicidade como crime, o legislador apoiava-se no artigo 45 da Constituição da República que estabelece os deveres e direitos do cidadão para com a comunidade, que são, entre outros: servir a comunidade, pondo ao seu serviço as suas capacidades físicas e intelectuais; trabalhar na medida das suas possibilidades e capacidades; pagar as contribuições e impostos. Sobre a vadiagem e mendicidade o Parlamento concluiu que não se mostrava viável a criminalização de vadios, muito menos a definição de quem seja vadio ou mendigo perante a situação económica e laboral prevalecente em Moçambique.
Quanto ao adultério, pretendia-se tratar o adúltero que de alguma forma atentasse contra a estabilidade da família, mas a não aceitação do público em relação a essa matéria obrigou a sua retirada do CP.
Sobre a prostituição, pretendia-se punir a que viola as posturas municipais, os regulamentos e leis, quando praticada em locais inadequados, para além de que a medida visa proteger a saúde pública.
O artigo que previa a suspensão da pena do violador que se casasse com a vítima também foi retirado. Foi igualmente eliminado o artigo 82 sobre a aplicação de medidas de segurança.
“Esperávamos um Código melhor”, bastonário da OAM
Alguns juristas ouvidos pelo @Verdade defendem que houve precipitação por parte do legislador em aprovar a revisão do CP sem que o debate tivesse sido aprofundado.Estes afirmam que o Parlamento deu um importante passo ao aprovar este instrumento, principalmente por nele ter agregado vários tipos de crime que antes não estavam previstos na legislação moçambicana. Mas em contraposição a esse aspecto afirmam que o Código devia ter sido melhor debatido de modo a consubstanciar-se a reserva de valores essenciais da sociedade.
“Comparado com proposta apresentada aquando da aprovação na generalidade, devo dizer que houve uma evolução no documento final, mas ainda não está à altura das necessidades do país”, considerou um jurista após a aprovação deste instrumento, acrescentando que este é apenas o Código possível e não o que devia ter sido produzido.
O bastonário da Ordem dos Advogados, Tomás Timbane, corrobora com a ideia de que se devia ter dado mais tempo para a discussão da revisão do CP. “É verdade que esperávamos um Código Penal melhor, que tivesse abrangido mais pessoas durante os debates. Acreditamos que os cerca de sete meses em que a Assembleia esteve a debater este instrumento na especialidade não foram suficientes, mesmo assim consideramos que há aqui uma grande conquista do nosso país ao ter um novo CP”, disse.
Por sua vez, o provedor da Justiça, José Abudo, diz que os aplicadores da lei já têm um instrumento que vai dar respostas às preocupações da sociedade na área criminal. “Com o novo CP não há haverá muitas desculpas de que determinada matéria não está prevista na legislação.
Neste CP tentou-se incluir todas as matérias que não estavam previstas no instrumento anterior. Eu penso que as questões terão as respostas apontadas neste Código”, afirmou Abudo. Segundo o provedor, o novo Código Penal responde às expectativas, mas naturalmente pode levantar outros problemas de conceitos e questões que são próprias da área jurídica.