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Não há cultura de adopção em Moçambique

Que um infantário é um ponto de chegada e não uma paragem na vida de um menor torna-se flagrante em Moçambique. O número cada vez mais magro de crianças adoptadas é disso um exemplo. Contudo, nem sempre o destino dos menores se resume ao infantário…

Moçambique conta, actualmente, com cerca de 1.8 milhão de crianças órfãs e vulneráveis, para além das 20 mil que são chefes de agregados familiares. A maior parte vive ou é proveniente das zonas rurais e está nesta situação devido a vários motivos, dentre os quais a pobreza, a baixa escolaridade, e o abandono por parte dos pais. As províncias de Manica, cidade de Maputo e Cabo Delgado são as que mais casos registam, com 14.018, 5.779 e 1.562 crianças em situação difícil, respectivamente.

Foi para acolher menores nestas condições, assegurar os cuidados básicos e garantir o respeito pelos seus direitos que foram concebidos e construídos os infantários, orfanatos e centros de acolhimento. Segundo dados do Ministério da Mulher e Acção Social, que é responsável por estas instituições, em todo o país existem oito infantários públicos que acolhem 1.166 crianças e 15 privados nos quais se encontram 1.237 menores. Há ainda 221 centros de acolhimento, sendo 115 em regime de atendimento aberto e 106 em regime fechado. Estes prestam atenção a 38.107 crianças.

A presença das crianças nestes locais não é permanente, mas sim transitória, mas o aumento do número de menores órfãos e vulneráveis está a obrigar o Estado a albergá-las, de forma permanente, como último recurso. Ao atingir os 12 anos de idade, elas são direccionadas a outros centros de acolhimento, onde podem passar pelo processo de adopção ou tutela, o que lhes permite crescer num ambiente que possa garantir a definição da sua personalidade.

Mas é no capítulo das adopções e tutela que os dados são preocupantes. Só para se ter uma ideia, embora não existam dados sistematizados, a Repartição da Criança em Idade Pré-Escolar do Ministério da Mulher e Acção Social refere que deram entrada nos primeiros dois meses (Janeiro e Fevereiro) deste ano 153 processos de pedido de tutela e 54 de adopção, números correspondentes a oito províncias, uma vez que Niassa e Zambézia não apresentam nenhum caso.

Isto quer dizer que de 1.8 milhão de crianças órfãs e vulneráveis, apenas 207, ou seja, menos de um porcento, é que terão a oportunidade de crescer numa família, caso os seus processos relativos à sua adopção e/ou tutela sejam aprovados.

Não é necessário fazer-se um estudo para se descobrir o destino dos petizes que não têm a sorte de serem adoptados ou assistidos pelo Estado. A mendicidade, o trabalho infantil, os casamentos precoces e a prostituição têm sido as alternativas que elas encontram para sobreviver. Algumas caem nas malhas do crime organizado e são vítimas do tráfico de seres humanos.

Embora a legislação moçambicana permita que os cidadãos adoptem crianças, esta prática não é muito comum no país, a julgar pelos números disponibilizados pelas instituições de tutela. Muitas razões podem ser invocadas para tal, mas o desconhecimento, ligado à pouca divulgação (senão inexistente), afigura-se como o mais provável.

Os que já vivem com filhos adoptivos afirmam que o processo não é fácil. É o caso do casal Alberto* e Celeste*, de 32 e 29 anos, respectivamente, que, devido ao facto de não poderem ter filhos, optaram por perfilhar José*, um menino de nove anos de idade, que tinha os passeios das lojas da baixa da cidade de Maputo como casa. Mas porque a sua acção não podia terminar só no simples gesto de tirá-lo das ruas, decidiram adoptá-lo. Porém, a burocracia que reina nas nossas instituições fê-los desistir do processo.

“Nós não podemos ter filhos mas temos o amor do lar de que toda a criança necessita para crescer saudável e num ambiente familiar. Quando encontrámos o José pela primeira vez, em Junho do ano passado, ele estava a pedir esmola no semáforo da esquina entre as avenidas 24 de Julho e Guerra Popular. Demos-lhe 10 meticais, mas no dia seguinte voltámos para saber por que motivo ele tinha ido parar à rua. Ele não se lembrava de nada. Levámo-lo para a nossa casa no mesmo dia, a fim de morar connosco”, contam.

“Dois meses depois, submetemos um pedido de adopção mas o processo ainda não foi concluído. Já passam cinco meses. O problema agora está do lado da Acção Social. Há muita burocracia. Já adiaram a ida à nossa casa para verificar se temos ou não condições para criar o rapaz, apesar de as termos. Devido a essas dificuldades todas, estamos a pensar em desistir. O menino já vai à escola e já o registámos em nosso nome. Se estivéssemos à espera do fim do processo, ele nem estaria a estudar porque não teria documentos”, acrescentam.

Números tendem a diminuir na cidade de Maputo

Se o número de pedidos de adopção e tutela é ínfimo no país, enganado está quem pensa que na cidade de Maputo, por ser a capital e o maior centro urbano, a situação é menos preocupante. Dados da Direcção da Mulher e Acção Social da Cidade de Maputo revelam um cenário alarmante. Entre 2010 e 2012 foram adoptados apenas 159 crianças, uma média de 52 por ano. “Os números revelam uma diminuição, mas ainda não existe uma explicação para tal. Estamos preocupados com o facto. Muitos preferem crianças recém-nascidas e do sexo feminino”.

Estrangeiros não podem adoptar

Os responsáveis dos Serviços de Acção Social, pelo menos a nível da cidade de Maputo, referem que não aceitam pedidos de adopção submetidos por estrangeiros não residentes no país. Tal deve-se ao facto de “ser impossível saber o que eles (os requerentes) pretendem fazer com a criança adoptada. Todos os requerentes, independentemente de serem ou não moçambicanos, devem residir em Moçambique, porque só assim é que podemos fazer o devido acompanhamento. O nosso papel não termina com o deferimento do pedido”.

Como adoptar?

A Lei da Organização Jurisdicional de Menores determina os procedimentos que devem ser seguidos para se efectuar uma adopção. Deste modo, o interessado deve submeter um requerimento dirigido ao tribunal da área de residência do menor, no qual devem ser justificadas e comprovadas as vantagens da criança a ser adoptada. Do expediente, devem ainda constar a idade do adoptando e do adoptante, o estado civil dos adoptantes e três testemunhas.

Após a submissão do requerimento, os Serviços da Acção Social, instituição adstrita ao Ministério da Mulher e Acção Social, devem aferir a identidade da pessoa que quer adoptar, a condição financeira, a residência e avaliar a capacidade de criação e educação da criança.

Este exercício pode ser feito através da realização de inquéritos em colaboração com pessoas ou organizações da área de residência do adoptando e do adoptante, de forma a conhecer o ambiente familiar dos requerentes e das vantagens da adopção para o menor. Cabe aos Serviços da Acção Social fazer o acompanhamento periódico e permanente do menor acolhido até este atingir a maioridade.

Segundo a lei, a instrução do processo leva no máximo três meses, sendo que a sentença é proferida no prazo de oito dias. Caso a adopção seja aprovada, e se as circunstâncias o determinarem, pode ser necessário um período inicial de integração do menor na família adoptante para que os Serviços de Acção Sociais concluam se há ou não condições para acolher a criança.

Quem pode ser adoptado?

Segundo a Lei da Família, podem ser adoptados: (1) os filhos menores do cônjuge adoptante, ou de quem com este viva em união de facto ou em comunhão de vida há mais de três anos, desde que o progenitor do adoptado dê o seu consentimento; (2) os menores de 14 anos que se encontrem em situação de orfandade, de abandono ou de completo desamparo; (3) os menores de 14 anos, filhos de pais desconhecidos; ou (4) os menores de 18 anos que, desde idade não superior a 12 anos, tenham estado à guarda e cuidados do adoptante.

Quem pode adoptar?

A Lei da Família refere ainda que podem adoptar conjuntamente duas pessoas que reúnam as seguintes condições: (1) casados ou em união de facto há mais de três anos; (2) tenham mais de 25 anos; (3) possuam condições morais e materiais que possibilitem o desenvolvimento harmonioso do menor.

Pode ainda adoptar, mesmo não sendo casado: (1) quem tiver mais de 25 anos e possua condições morais e materiais que garantam o são crescimento do menor; (2) quem tiver mais de 25 anos, sendo o adoptado filho do cônjuge do adoptante; (3) quem tiver mais de 25 anos, sendo o adoptado filho de quem o adoptante mantenha comunhão de vida há mais de três anos.

PS: Salvo algumas excepções, a diferença de idades entre o adoptado e o adoptante não deve ser inferior a 18 anos ou superior a 25 anos.

Direitos do adoptado

Como forma de salvaguardar os direitos dos menores, a Lei da Família estabelece um pressuposto-chave como condição para a adopção. Trata-se da igualdade entre as crianças biológicas e adoptadas, segundo o qual a criança adoptada integra-se com os demais descendentes, fazendo-se menção no registo civil, podendo usar os apelidos dos adoptantes.

Este pressuposto determina ainda que os adoptados passam a ter direitos iguais aos filhos biológicos dos adoptantes. Por isso a lei fixa a irrevogabilidade da adopção, independentemente do acordo entre o adoptado e o adoptante.

*Nomes fictícios

Disputa de crianças adoptadas

No ano passado o Ministério da Mulher e Acção Social revelou ao @Verdade que estavam a aumentar no país casos de disputa de crianças adoptadas por casais moçambicanos na altura da consumação dos pedidos de divórcio.

Embora não tivesse números, na altura, a chefe da Secção de Adopção do Departamento da Criança em Situação Difícil, Inês Botela, disse que os casos eram dirimidos com a intervenção directa dos assistentes da Acção Social.

Muitos destes casos culminavam com o retorno das crianças disputadas pelos casais em separação aos centros de acolhimento públicos e privados onde viviam antes da adopção.

Quanto à sua adaptação e integração nas novas famílias, Botela referiu que o processo tem sido difícil nos primeiros anos, “mas, à medida que o tempo passa, as crianças acabam por se integrar e conviver normalmente no seio da família adoptiva”.

Alguns dados sobre os riscos aos quais as crianças estão expostas

Tráfico

Segundo um relatório da Organização Internacional de Migração (2002/2003), cerca de mil mulheres e crianças moçambicanas são anualmente traficadas para a África do Sul, muitas delas para serem exploradas na indústria do sexo.

A estes dados junta-se um número impreciso, apesar de grande, de crianças traficadas a nível interno. Moçambique é, portanto, um país de origem e de trânsito do tráfico de pessoas na África Austral.

Internamente, o tráfico de crianças dá-se segundo três tendências: das zonas rurais para as urbanas mais próximas, e das zonas urbanas para as grandes cidades, como Maputo, Nampula e Beira, e de Maputo para a África do Sul. (Fonte: UNICEF)

Violência

Mais de 3.500 casos de violência contra crianças foram denunciados à polícia em 2009. O número real de crianças que sofreram violência, abuso e/ou exploração é provavelmente muito maior do que os casos denunciados. A tolerância da sociedade frente à violência contra crianças e mulheres inibe a denúncia, dificultando o combate a esses crimes. (Fonte: UNICEF)

Trabalho infantil

O inquérito sobre a Força de Trabalho realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em 2004/2005 indica que 32 porcento das crianças com idades compreendidas entre os sete e os dezassete anos estão envolvidas em algum tipo de actividade económica, com diferenças significativas entre áreas urbanas e áreas rurais.

Nos últimos tempos, a questão do trabalho infantil começa a aparecer como uma das consequências do HIV/SIDA, dada a existência de crianças chefes de famílias, que têm que tomar conta dos irmãos mais novos em consequência da morte dos pais, vítimas do HIV e SIDA. (Fonte: UNICEF)

HIV e SIDA

Existem em Moçambique cerca de 35 mil crianças órfãs e vulneráveis com idades compreendidas entre 0-17anos, devido ao HIV e SIDA, segundo dados seleccionados em Moçambique em 2008.

As crianças órfãs e vulneráveis devido ao HIV e SIDA são as que têm mais probabilidade de ser estigmatizadas e expostas a situações de risco de tráfico, abuso, exploração e negligência. Os últimos dados indicam que 12 porcento de crianças moçambicanas são órfãs, das quais cinco porcento são vulneráveis devido à SIDA, e que a percentagem é maior nas áreas urbanas (20 porcento) do que em áreas rurais (16 porcento).

A província de Gaza é a que regista a mais elevada prevalência de crianças órfãs e vulneráveis (31 porcento), seguida pela cidade de Maputo e província de Sofala (20 porcento). As províncias de Tete e Niassa têm as menores prevalências, com 12 e nove porcento, respectivamente.

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