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Escrutínio Escolar d´@Verdade: Mupswetu

Todas as cores rendem-se no escuro. Os cães esqueléticos, famintos e vaga-noites recolhem as caudas entre os rabos secos. Rabos ossudos. Trilham as ruas com habilidades instintivas para esquivar as pedradas dos seus colegas da noite: Cães humanos.

Nas únicas quatro paredes do seu abrigo, o Mupswetu enrola, num papel, as suas ervas secas. Alimenta-se de fumo com gestos calmos e serenos. Sente-se leve. Esboça um sorriso. Sente-se no paraíso a baloiçar nas asas de borboletas coloridas. Sente-se no céu a namorar anjas no quarto de Deus.

Começa a fumar do seu rolo de ervas a impulsos mais intensos e ardentes. Concentra-se em cada bola de fumo que liberta para o ar. Bufa a fumaça e imita, com a voz estrondosa de garganta porca de fumo, o arfar de um comboio. Isso lhe recorda o labor dos tempos idos. Tempos em que viajava escondido nos vagões do comboio de angariação de açúcar, da Açucareira da Maragra para o Mercado. Atirava, para os companheiros que aguardavam ao longo da linha-férrea, sacos de açúcar.

Lança uma longa gargalhada – eh mas eu páh – diz ele olhando, com paixão, para o rolo que arde entre os dedos indicador e máximo. Sorve. Faz esforço para engolir o fumo, mas este escapa pelas narinas. Remata com uma gargalhada deixando cair a beata no chão onde há centenas de beatas de dias idos.

Com técnica e domínio, Mupswetu raspa, com uma licha de pedra, um punhal comprido. Quase uma espada. Afia-o e enfia-o na cintura do jeans. Cobre-o com um casacão comprido, da cor da noite – está na hora – avisa-se. Ouve passos do lado de fora. Engana-se ou alguém está no seu quintal? Concentra-se e aguça os tímpanos até ter a certeza dos passos que se aproximam. Agora é um go-go-go na porta – entra Txitxo – diz ele certeiro.

– Não entro, vamos.

– Vamos.

Nos dedos da noite. Entre cães vira-latas. Entre morcegos. Entre feiticeiros. Entre demónios, Mupswetu e Txitxo comungam com o escuro. Lançam-se becos adentro e confundem-se com as trevas.

– De uma cobra não se foge. Cobra mata-se. Se foges hoje de uma cobra, vais fugir amanhã e sempre porque ela estará sempre ali – disse um velho aos companheiros ao se aperceberem dos leopardos humanos que se escondem no caminho que escolheram – não vamos mudar de caminho – diz o velho reduzindo os passos. Vem mais gente. Vozes baixas circulam – ninguém passa por aqui até que sejamos muitos – diziam. Foram enchendo.

– Agora vai um. Será uma isca – diz o velho – está livre da cobra quem a mata e não quem dela foge.

Mupswetu e Titxo, escondidos, aguardam o aparecimento de suas presas. Uma mulher surge-lhes. Passa-lhes de frente, aparentemente distraída e indefesa, com a bolsa pendendo na mão esquerda e o celular em funcionamento no ouvido.

– Para esta galinha não precisamos de planejar o ataque. Vou mesmo sozinho – diz o Mupswetu tirando o punhal da cintura. Pára exibindo-lhe o seu instrumento mortal. Bastou um grito da mulher-isca para todo o grupo lançar-se em cima do Mupswetu com o seu instrumento reduzido a nada perante tanta gente. Pontapés. Socos. Pedradas – é hoje mampara! – diz a população furiosa em resposta aos gritos do Mupswetu.

Agora o povo bate na ferida. Todo o corpo do Mupswetu é uma ferida. As roupas estão empapadas de sangue. Sente-se leve como quando fumava as ervas. Sente-se cada vez mais longe de sí. Sente o poder do divórcio com a alma. É vez do Adeus às ervas secas. É vez do Adeus ao punhal sanguinário. Estica-se. É esse o seu último movimento em vida.

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