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“Moçambique tem de descobrir Eduardo Mondlane”

“Moçambique tem de descobrir Eduardo Mondlane”

Nyeleti Mondlane, a filha mais nova de Eduardo Mondlane, recebeu @ VERDADE na intimidade da sua casa para falar da sua intimidade com o pai, da sua vida, da sua morte, dos seus hábitos e do que resta hoje em Moçambique do legado de Eduardo Mondlane. Nyeleti na primeira pessoa.

@ Verdade (V) – Quando o seu pai morreu quantos anos tinha?

Nyeleti Mondlane (NM) – Acabava de fazer sete. Faço anos a 17 de Janeiro e ele foi assassinado a 3 de Fevereiro.

(V) – Então nasceu no ano da fundação da Frelimo?

(NM) – Sim, servi de fonte de inspiração (risos). O meu pai, nessa altura, estava completamente absorvido na organização do partido que dava os primeiros passos.

(V) – Qual é a primeira recordação que guarda do seu pai?

(NM) – Os momentos mais alegres e divertidos com o meu pai foram sempre os fins-de-semana na praia. Em Dar-es-Salam vivíamos numa casa muito perto da praia de Oysterbay. Íamos à praia todos os fins-de-semana. Nessa altura tinha toda a atenção dele. Porque durante a semana ou ele estava fora ou tínhamos os camaradas lá em casa. Muitas reuniões do Comité Central realizaram-se à mesa da sala de jantar. Uma mesa que a minha mãe ainda hoje conserva.

(V) – Quais eram os camaradas mais assíduos?

(NM) – Samora Machel, Marcelino e Pamela dos Santos, Aurélio Manave, Romão Mondlane, Zacarias Kupela, Raimundo e Marina Pachinuapa, Josina Machel, Joaquim Chissano, Jorge Rebelo. Lembro-me do Rebelo a ouvir música clássica de olhos fechados, muito concentrado. Era um ambiente muito dinâmico, de uma família política muito unida. Havia de tudo: pessoas de baixa formação académica e outros muito intelectuais; brancos, mulatos, negros, porém, todos tinham uma convicção revolucionária muito forte. Falavam todos horas e horas com o meu pai.

(V) – Qual era a língua “oficial” da casa?

(NM) – Era um espaço bilingue. Nós, na altura, só falávamos inglês. Só aprendemos português quando começámos a frequentar as escolas da Frelimo. A língua da casa era o inglês, mas logo que vinham os camaradas o meu pai virava para o português.

(V) – O ambiente era de secretismo, de clandestinidade?

(NM) – Se calhar até era, mas, na percepção de uma miúda de sete anos, não. Lembro-me de gostarmos muito de estar com os camaradas. Nunca me apercebi de que houvesse tensão entre eles. E era provável que houvesse.

(V) – Afinal, onde é que morreu Eduardo Mondlane?

(NM) – O meu pai morreu em casa de Betty King, mas aquela casa era frequentada por todos os camaradas. O escritório da Frelimo era um espaço muito pequeno e estava permanentemente cheio de gente. Ali era difícil haver concentração. Todos tinham um segundo local para meditar, reflectir e trabalhar concentrados. O canto do meu pai era a casa da Betty King. Era uma casa em cima do mar e nós também gostávamos de ir para lá.

(V) – Quem era Betty King?

(NM) – Era uma senhora americana que trabalhava para o African American Institute (AAI), uma ONG que simpatizava com a causa independentista. Eduardo estava à procura de uma pessoa que pudesse ajudar a minha mãe na organização do Instituto Moçambicano e sugeriram-lhe o nome da Betty. Foi assim que ela começou a trabalhar no Instituto Moçambicano. Em 1967 a Betty pediu um aumento salarial mas a Frelimo não tinha dinheiro e ela acabou por sair. Todavia, continuou nossa amiga e muito dedicada à causa de libertação de Moçambique.

(V) – Como é que explica que a historiografia oficial continue a defender que Eduardo Mondlane morreu nos escritórios da Frelimo?

(NM) – Não sei, por exemplo, quem é que escreveu o livro da 5ª classe! Acho que os nossos técnicos do Ministério da Educação devem ter um dia feito essa pergunta e obtiveram como resposta os escritórios da Frelimo. Agora pergunta-se: Pode considerar-se a casa de Betty como um lugar de reunião da Frelimo? Façam a discussão. O que é facto é que aquele lugar era onde Eduardo trabalhava muitas vezes.

(V) – No dia fatídico, Eduardo Mondlane foi pessoalmente ao escritório recolher a correspondência?

(NM) – Sim, foi ao escritório de manhã. A última pessoa com quem ele falou foi o Roque Chooly Vicente que estava a dirigir a Escola Secundária da Frelimo no Bagamoyo que acabava de abrir. Daí o meu pai foi para Msasani, para a casa da Betty. A explosão deu-se por volta das 11 da manhã mas os camaradas só souberam depois das 19 horas pela rádio. Ninguém sabia o que se estava a passar. Nas horas seguintes, foram presos vários camaradas para averiguações, entre eles o Chissano.

(V) – O livro armadilhado não tinha aspecto suspeito?

(MN) – Não, era uma encomenda normalíssima, embrulhada em papel pardo como se usava na época. Foi a secretária que lho entregou.

(V) – O atentado terá tido uma mão interna?

(MN) – Como filha interroguei-me muito sobre isso. Acho que foi um trabalho da PIDE com ajuda de dentro. Não tenho dúvidas em relação a isso. Ainda tenho fé que um dia os camaradas esclareçam o assunto. Não sei quem desencadeia a decisão: se são os descontentes dentro da Frelimo ou se é a PIDE.

(V) – Lembra-se do dia da morte do seu pai?

(NM) – Eu estava em Dar-es-Salam na escola internacional. De repente, ouvi o som de muitas sirenes e de carros da polícia, mas ninguém sabia o que era. O meu pai era para nos vir buscar ao meio-dia e meia e não veio.

(V) – Era ele que vos ia buscar sempre à escola?

(NM) – Nem sempre, mas por esses dias sim porque a minha mãe estava na Europa. Nesse dia veio um carro da Frelimo buscar-nos, já era tarde. Fomos primeiro para a escola do Partido e depois para a casa de Marcelino dos Santos. Ficámos lá dois dias. Os meus irmãos, que eram mais velhos, foram informados da morte do meu pai mas eu não. Diziam-me que ele tinha viajado. Quem me contou foi a minha mãe dois dias depois. Aí comecei a ter consciência política.

(V) – Porquê?

(NM) – Até aí pensava que a Frelimo era um grupo normal como havia muitos outros. No dia do funeral tenho o primeiro contacto com a importância do meu pai. Estava lá o Presidente da Tanzânia, todo o Governo, americanos. Tenho uma imagem de grande aparato do funeral. Era alguém fora do normal. Pensei: afinal este homem é especial para muita gente e não só para mim.

(V) – Quem é que Eduardo preferia que lhe tivesse sucedido?

(NM) – Entre aquela troika – Marcelino, Uria e Samora – naturalmente que era Samora. Ele estava em Moçambique, no terreno, à frente das operações militares, tinham profundo conhecimento daquilo que estava a acontecer em Moçambique e era de extrema confiança de Eduardo. Samora era uma pessoa de muita clareza e objectividade que havia abraçado a luta de libertação com muita alma. E depois fazia, ao contrário de Marcelino, de uma forma exímia o contacto com as massas.

(V) – E o Uria Simango?

(NM) – Não tenho grandes bases para falar dele. Conhecia-o como uma das pessoas que frequentava a nossa casa, mas não tive qualquer interacção com o Uria. Não o conheci verdadeiramente. O que sei é pela história.

(V) Quando é que veio pela primeira vez a Moçambique?

(NM) Em 1974, já depois da Revolução do 25 de Abril em Portugal. Vim alfabetizar adultos. Nessa altura Samora convidou-me para fazer a marcha do Rovuma ao Maputo. Foi inesquecível.

(V) – Acha que o Moçambique de hoje é aquele que Eduardo Mondlane idealizou?

(NM) – É muito difícil responder a essa pergunta. Mas acho que Eduardo era um líder com um estilo muito diferente dos outros, por isso naturalmente faria as coisas de um modo diferente. É uma pergunta injusta. Como filha, como pessoa que já leu todas as cartas de Eduardo, algumas coisas seriam sem sombra de dúvidas diferentes. Mas a Frelimo é um elenco. É difícil entender o Samora como um homem não absoluto. Samora recebia uma informação, analisava-a e tomava uma decisão. Em certas alturas foi bom.

(V) – Samora então não conseguia viver numa democracia como hoje a entendemos?

(NM) – Samora dificilmente faria compromissos com coisas em que não acreditava.

(V) – Podia, por exemplo, submeter-se a eleições?

(NM) – Acho que não. Pelo estilo dele, acho que não. O Samora tinha um projecto absolutamente pró-Moçambique, para beneficiar os moçambicanos. Se calhar não conhecia as fórmulas para esse projecto ter sucesso, mas era profundamente honesto. Exigiu que o elenco dele entrasse na onda. Depois, Chissano foi antítese.

(V) O que resta hoje do pensamento de Eduardo Mondlane?

(NM) – Acho que Moçambique tem de descobrir Eduardo Mondlane. No geral, as pessoas sabem que Eduardo Mondlane foi um herói nacional mas não sabem porquê. Estou obviamente a referir-me, sobretudo, à juventude. A culpa desse desconhecimento é nosso, do Governo, do Partido. Em vez de se interessarem por saber onde é que morreu Eduardo Mondlane, deviam procurar saber o que é que ele fez na Tanzânia com os seus camaradas. O que estavam lá a fazer aqueles homens?

(V) – O Partido esqueceu Eduardo Mondlane?

(NM) – Depois da Independência houve uma grande euforia. Celebrámos a nossa unidade, a liberdade e estávamos muito ocupados com o projecto da construção nacional. O legado dos heróis moçambicanos passou para segundo plano porque a liderança do país tinha outras prioridades. Guebuza ascendeu à presidência quando o país se encontrava estável, e ele retoma o seu projecto antigo de reavivar os heróis. Esta é, sem dúvida, uma iniciativa dele.

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