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Moçambique ainda tem muitos desafios na área dos direitos humanos

Moçambique conta desde 2012 com uma Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), criada com o objectivo de promover a cultura de paz e reforçar os mecanismos de promoção, defesa e melhoria da situação dos cidadãos relativamente à matéria dos direitos humanos no país.

Em conversa com o @Verdade, o presidente deste órgão, Custódio Duma, reconhece que os desafios que tem pela frente são enormes pois o país ainda vive uma situação de penumbra, em relação a essa área: muitas vezes os violadores, assim como as vítimas, não têm a noção dos direitos humanos.

Durante este período de existência, a Comissão atendeu 36 casos de violação dos direitos humanos, maioritariamente perpetrados pela Polícia moçambicana contra singulares. Todavia, Duma esclareceu que o país, no que diz respeito à ratificação de instrumentos internacionais sobre os direitos humanos, “está numa boa situação” – assinou sete das noves convenções das Nações Unidas, – mas o problema continua a ser a aplicação da legislação.

@Verdade – A Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) comemorou, no dia 5 de Setembro, um ano de existência. Tendo em conta os constrangimentos que enfrentou nesse período, que balanço é que faz?

Custódio Duma – Esta é o primeiro órgão nessa área, uma vez que nunca existiu outro e também nunca tivemos uma instituição semelhante antes, e temos na comissão uma diversidade de instituições representadas. Mas sobre o balanço considero que foi positivo, não de grande sucesso como gostaríamos, mas…

@V – O que significaria ter tido “grande sucesso”?

CD – Já poderíamos ser uma instituição operacional, mas ainda estamos na fase de instalação. Estamos a criar condições para que o cidadão possa chegar até nós. Ainda não contratámos o pessoal da Comissão, ainda não criámos condições para que tenhamos representações pelos menos ao nível das regiões Centro e Norte. E esse era o sucesso que nós queríamos para o primeiro ano, mas não conseguimos fazer isso.

O que nós fizemos de facto foi criar as nossas bases legais, porque ainda nos faltava elaborar alguns documentos que tinham de ser aprovados pelo Conselho de Ministros e isso conseguimos fazer. Tínhamos de criar uma estrutura interna de funcionamento. Repartir as áreas de trabalho, criar o nosso plano estratégico e participar nos encontros internacionais para apresentar a Comissão dos Direitos Humanos de Moçambique, isso também conseguimos fazer.

@V – Que instrumentos ainda há por aprovar pelo Conselho de Ministros?

CD – Tem de se aprovar os procedimentos de funcionamento, que é uma espécie de código de processo que mostra como os casos entram na Comissão e como é que são tramitados. Tem de se aprovar os direitos e regalias dos comissários; o quadro de pessoal. Ou seja, quantas pessoas serão contratadas para que a Comissão possa funcionar. Conseguimos entregar esses documentos e estamos à espera da sua aprovação. Aparentemente, são documentos que serão aprovados daqui a pouco tempo.

@V – Durante esse período quais foram os principais constrangimentos que a CNDH enfrentou?

CD – Primeiro, não tínhamos uma sede, só conseguimos tê-la na semana em que comemorámos o nosso primeiro aniversário. E para uma instituição que não tem sede isso é um grande constrangimento. Segundo, não temos meios de funcionamento: viatura, computadores, Internet e não tínhamos pessoal. Por isso, nesse período o nosso trabalho esteve mais virado para questões internas que externas. Agora podemos começar a atender os cidadãos.

@V – Tendo em conta as “facilidades” que outras instituições tiveram logo após o seu surgimento, no caso do Provedor de Justiça, em algum momento sentiu que não houvesse interesse do Governo em ver o órgão a funcionar?

CD – A verdade é que o Provedor não sentiu tanta falta de condições como nós. Tem falta, mas pensamos que a sua situação é melhor que a nossa. Não que eu queira comparar, mas o Dr. José Abudo já era Juiz Conselheiro e como tal ele tinha uma viatura de Tribunal Administrativo que o levou à Provedoria, por exemplo. Ele já tinha um salário no Conselho e levou o salário para a Provedoria. Então foi fácil. E outra coisa é que ele está sozinho.

Enquanto para nós tudo tinha de ser criado. Eu não era funcionário público, muitos dos meus colegas não são funcionários públicos. Então tem de se aprovar o Estatuto dos membros da Comissão, porque até agora nós não tínhamos recebido nenhum salário, simplesmente porque não tinha sido aprovado o nosso Estatuto. E para o Provedor, algumas dessas situações foram fáceis porque ele já tinha condições. A Provedoria é um órgão composto por uma pessoa, e nós somos 11. Se resolvermos o problema de um, ficam ainda dez pessoas e é um pouco difícil para um órgão colegial.

@V – Um dos desafios da Comissão é fazer-se conhecer e criar condições para que o cidadão esteja mais próximo. Como se pretende conseguir isso, numa situação de falta de meios?

CD – Estamos a trabalhar no sentido de termos um website da Comissão e até o final do ano poderá estar pronto. Estamos a produzir matérias que podemos distribuir ao nível das províncias, nas escolas sobre a Comissão e os direitos humanos. E no próximos ano teremos o nosso Plano Estratégico. Temos agora alguns fundos das Nações Unidas e poderemos ter mais do Estado no próximo ano para essa actividade de divulgação da Comissão e dos direitos humanos. Estamos a trabalhar como podemos e posso garantir que os próximos quatros anos vão ser dedicados a dois objectivos: instalar e fazer conhecer a Comissão e divulgar os direitos humanos.

@V – Em termos de promoção e defesa dos direitos humanos em Moçambique em que estágio estamos?

CD – Estamos num nível muito baixo. Há muito trabalho por fazer. Muitas pessoas não conhecem os seus direitos e aqueles que os violam não sabem também que estão a violar. A Polícia por vezes pensa que prender alguém sem seguir a lei está a fazer um bem para a sociedade porque aquela pessoa tem um perfil de bandido.

Então, o agente da Polícia não sabe que está a violar os direitos humanos. O nível de conhecimentos e a cultura dos direitos humanos é muito baixo em Moçambique. E isso é aproveitado por aqueles que violam e muitas vezes a vítima não percebe que há um direito que foi violado. É um grande desafio para a Comissão, temos de informar os dois lados: o violador e a vítima.

@V – A nossa Polícia é a face mais visível quando se fala da violação dos direitos humanos. A que se deve isso?

CD – Tem de ser a Polícia porque ela é a força do Estado e só este é que pode interferir nos direitos fundamentais do cidadão. O Estado não vai usar médicos ou professores para reprimir os cidadãos, vai usar a Polícia. Por isso é que a Polícia é um dos grandes violadores. Mas é claro que as violações dos direitos humanos não se limitam à Polícia, temos nas áreas social, económica, entre outras. Em todo o mundo a situação é essa, a Polícia ou promove os direitos humanos ou então viola-os.

@V – Mas parece que a nossa Polícia está mais para violar…

CD – O que nós queremos é que a Polícia cumpra os seus deveres observando a lei. Não prender as pessoas de forma arbitrária, não manter as pessoas na cela depois de extravasar o prazo da prisão preventiva, não violar o domicílio das pessoas, não violar a privacidade das pessoas, não torturar o cidadão.

@V – Mas é isso que acontece de forma recorrente…

CD – Sim, porque a Polícia não está a aprender, não é bem formada. Por um lado tem uma formação deficiente e por outro o cidadão também depois de ser ameaçado pela Polícia não tem coragem para responsabilizar aquele agente. Quando muitos polícias forem punidos, muitos outros deixarão de agir à margem da lei.

@V – A percepção agora é de que a Polícia não é responsabilizada.

CD – Isso é verdade, mas é porque agora o cidadão não queixa. O cidadão tem de queixar quando o Polícia lhe agride. E o Poder Judicial também deve actuar contra aquele Polícia. Desse modo os outros vão tomar aquilo como exemplo e não vão agredir. Mas a falta de responsabilização e de conhecimento faz com que eles sejam reincidentes.

@V – Nos dias actuais tem-se reclamado, de forma recorrente, a questão da expropriação da terra envolvendo cidadãos nacionais e multinacionais. Quem deve zelar por essas casos?

CD – Primeiro, quem devia evitar isso é o Estado. Os ministérios que lidam directamente com essas questões deviam ter o cuidado de não entregar a terra às multinacionais antes de reunir condições para as populações porque depois temos muitas pessoas que são retiradas das zonas onde viviam e produziam para lugares sem condições para tal e distantes dos serviços e infra-estruturas básicos. Portanto, o Ministério da Agricultura, dos Recursos Minerais e até da Justiça devem criar condições para trabalhar com as empresas de modo a salvaguardar os direitos do cidadão.

@V – Sucede que, aparentemente, o Estado está a eximir-se desse papel…

CD – Nesse caso o cidadão pode ir à Procuradoria-Geral da República, ou à Comissão Nacional dos Direitos Humanos, ou ainda recorrer aos tribunais: o Administrativo ou judiciais. E são casos recorrentes de facto; nós como Comissão dos Direitos Humanos já recebemos duas queixas e estamos a trabalhar nos casos.

@V – Para um país que tem uma das melhores leis de terra, qual é a razão de estarmos a passar por essas situações?

CD – Bem, esse é o problema das leis em Moçambique. As nossas leis, quase todas, são as melhores mas o problema está de facto no seu cumprimento. Quanto à Lei de Terra o que falta é a garantia do respeito pelo direito do cidadão. As multinacionais não olham para os direitos humanos, eles pensam que por se tratar de camponeses as pessoas podem ser colocados em qualquer lado.

Ignoram que aquelas pessoas estão ligadas àquela terra por diversas razões: as suas tradições, os seus antepassados que estão enterrados naquele espaço. Na terra onde vivem pode passar, por exemplo, um rio onde bebem água ou estão perto de uma estrada que é uma meio vital para eles. Portanto, não é só um pedaço de terra, há muitos outros valores: económicos, sociais e até costumeiros que devem ser levados em conta nesses processos.

@V – A questão é se o Estado, que devia zelar pelos interesses do cidadão, diz que essas questões não ocorrem. Qual deve ser a saída?

CD – Antes não existia uma Lei de Protecção, mas agora foi aprovada e o Estado deverá cumpri-la. O que aconteceu, por exemplo, em Cateme é que não tínhamos uma lei que pudesse proteger os cidadãos. Mas a questão da terra tem outra face, que é o aliciamento dos representantes locais do Governo pelas empresas interessadas nessas terras.

Estamos a falar das administrações e dos municípios, que são lugares relativamente pequenos que recebem valores muitos altos e às vezes isso acaba por retirar a lucidez dessas pessoas. Nesse aspecto é preciso muito trabalho de sensibilização para que os dirigentes não sejam simplesmente corruptos, mas aceitem servir mais o cidadão e não servir as multinacionais, porque estas têm sempre tendência de violar os direitos humanos.

@V – Com a entrada de mais multinacionais no país, como se prevê que aconteça, essa situação não poderá agravar-se?

CD – Não devia agravar-se porque já foram estabelecidos os princípios para o reassentamento. Uma coisa é verdade, as pessoas devem ser retiradas do locais onde serão explorados os recursos porque a população não vai explorar, mas ao saírem tem de haver um acordo, não é só dar 60 mil e dizer “saiam”.

É preciso discutir as condições com as comunidades. Agora, se o Estado falhar no próximo reassentamento, depois da aprovada a lei, então poderemos concluir que lhe falta vontade de organizar a situação. Porque os primeiros reassentamentos foram uma experiência mal gerida e isso justifica-se pela ausência de normas de como deviam ter sido feitos, mas agora já há normas. O que deve acontecer é estarmos atentos porque realmente ainda virão multinacionais e haverá tentativas recorrentes de violar os direitos humanos.

@V – Como é que estamos em termos de ratificação de instrumentos internacionais em matérias de direitos humanos?

CD – Nós estamos muito bem, somos melhores que muitos países. É claro que continuamos com muitos desafios. Ainda não ratificámos, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional, mas, das nove convenções das Nações Unidas, Moçambique é parte de sete. Só faltam duas que ainda não ratificou, uma delas é o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais – PIDESC, que, aliás, já devia ter sido ratificado e a outra está relacionada com o uso de armas. Moçambique é bem falado fora das suas fronteiras; o problema é aqui dentro, as nossas práticas.

@V – Moçambique é sempre apontado nos relatórios internacionais como um dos piores países na observância dos direitos humanos. Como se pode inverter a situação?

CD – Primeiro, nós temos de informar mais sobre os direitos humanos e sobre a responsabilização, porque o principal problema é a falta de informação, tanto por parte das agentes que violam, assim como das vítimas. Segundo, a Comissão, quando estiver a funcionar devidamente, vai servir de estímulo porque o cidadão irá saber que tem espaço onde pode queixar. Aqueles que violam ficarão inibidos porque sabem que serão questionados sobre isso.

@V – Recentemente falou da necessidade de a Procuradoria-Geral da República se responsabilizar pelos crimes cometidos pela Polícia de Investigação Criminal no âmbito do seu trabalho. Pode explicar esse ponto de vista?

CD – É simples: na instauração do processo-crime existe a Polícia de Investigação Criminal (PIC), a Procuradoria-Geral da República (PGR) e os tribunais. Quando há um crime a PIC é que faz a investigação, mas quem dirige o processo, chamado de instrução, é a Procuradoria. Sucede que durante a investigação a Polícia tortura um cidadão. Nesse instante onde está a Procuradoria que dirige o processo?

Portanto, em última instância, esta deve ser responsabilizada pelos crimes que a PIC comete durante esse processo. Normalmente nós só acusamos a Polícia. Aliás, é preciso recordar que, depois de reunidos os factos, a Procuradoria é que deduz a acusação que vai ao Tribunal. Por isso, na minha opinião, a PGR deve ser responsabilizada pela tortura e pelos maus tratos perpetrados pela PIC durante a investigação.

@V – Quem deve responsabilizá-la?

CD – Bem aqui já há um conflito de interesses, porque os procuradores não vão querer acusar-se entre si. Mas a princípio quem deve intentar uma acção criminal é a PGR. Esta deve disciplinar os seus procuradores. Contudo, a Comissão dos Direitos Humanos pode também levantar o caso contra o Procurador, mas no fim o caso volta à Procuradoria, o que enfraquece a acção da Comissão. Mas temos ainda o Provedor da Justiça, a Polícia ou mesmo organizações como a Liga dos Direitos Humanos que podem levantar o caso contra a Procuradoria.

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