Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

Mergulhar no Inferno e voltar

António e Clara* foram ao fundo, pensaram em desistir da vida, mas um intervalo de lucidez mostrou-lhes que para quem sabe olhar para trás nenhuma rua é sem saída. Hoje, lutam todos os dias para não regressar ao reino de Lucífer já que a droga e o álcool, traiçoeiros como são, espreitam ao virar da esquina.

Cansaço. Foi sobretudo por cansaço que Clara pegou no telefone e discou para a casa da mãe. Tinha essa ideia em mente desde o dia em que ouvia a sua história contada pela boca de outro, num programa de rádio. Numa noite qualquer “de muita solidão, despero, vergonha e cansaço da vida”, telefonou para o irmão que a levou a uma igreja. Um ano depois, parou de beber e prostituir-se. Já lá vão seis anos e meio. Clara, que empurrada pelo estigma prefere passar incógnita, com nome fictício, tem 32 anos e não se lembra de quando começou a beber, mas sabe que mal começou veio a prostituição. “Sei que, por volta dos 24 anos, chegava a casa depois do trabalho, bebia um copo, saia à rua e metia-me com homens. Para descontrair.” Do resto já não se lembra, nem de como a esse se somaram outros, nem onde começou com uma urgência que lhe apertava o corpo até esvair-se em álcool e sexo.

No álcool encontrava o alívio que antes lhe trazia cuidar do filho já falecido. No sexo pensava fazer recriar a gravidez. “Recordo-me de sair como uma bala do serviço para brincar com o meu menino”. O filho era a sua obssessão. Depois que o perdeu começou a ler compulsivamente, mas tinha sempre o profundo sentimento de não estar nem no sítio certo nem de fazer o que queria. “Nada era suficiente para suprir a ausência do pequeno Zezinho, tudo estava errado.”

Nas empresas por onde passou, ninguém lhe descobriu o problema. “Pensavam que tinha uma depressão. Nunca me viram tocar em álcool. Se havia jantares de trabalho, bebia primeiro em casa, e mal saía esperava-me uma garrafa no carro. Era um esforço sobre-humano se me via numa situação de stress sem ter álcool à mão”. Mas o comportamento, ora de aceleração, ora de apatia – nos momentos de abstinência – , ou a sucessiva ausência em reuniões levaram-na ao desemprego. Estava com 43 anos, “Com o dinheiro da indemnização decidi que iria beber e fornicar para o resto da vida.” Nem sequer tentou empregar-se de novo. Ficou em casa, com a mãe (com quem já vivia há alguns anos) e entrou num poço que parecia não ter fundo.

O alcoolismo é uma doença progressiva e incurável. Nenhum alcoólico consegue recordar-se do momento exacto em que se tornou alcoólico, mas não há um que não se lembre do dia em que parou de beber. E todos sabem que basta um copo “apenas um”, para uma recaída.

“Deus salvou-me a vida. Física, mental e espiritualmente”. Quando chegou à igreja, Clara levava a ideia errada de que bebia muito porque tinha a vida num inferno, incapaz de reconhecer que foram os excessos do álcool a “enterrá-la”, do ponto de vista económico, familiar e social. Nessa altura, apareceu alcoolizada em muitas reuniões. Até que numa ou noutra noite de desespero confrontou-se: “Eu sou diferente desta gente e não sou capaz de parar. Já cá estou há um ano, os outros conseguiram parar e eu não. Porquê?”. Fez-se-lhe luz: ‘porque não paro de beber?’. Desde esse dia, Clara largou o álcool e entregou-se à causa de Deus. Hoje é obreira na Igreja Universal do Reino de Deus. Embora infectada por HIV/SIDA encara a vida com um sorriso aberto.

Um pesadelo disfarçado

Os pássaros emudeceram. Fugiram das árvores e eles desertaram da terra. A vida era um lugar estranho, onde António pouco pousava. Durante seis anos, foi um gatafunho do menino, que crescera por entre desvelos de mãe e empregadas. Numa casa com seis quartos, a dois passos da igreja Santo António do bairro da Polana. A droga moldou-o como barro. Ele já não era ele, apenas sombra – à caça de nova dose, deitar na prata, queimar e fumar.

Quando é que a descida começou? Não sabe. Primeiro, à procura de adrenalina – ainda não imaginava o que eram moedas e já as roubava. Tão-só por ser errado, ouvir passos no corredor e sentir o coração disparar. Aos 15 anos teve a sua primeira experiência. Umas cervejas geladas e a receita: beber para esquecer inseguranças. Depois, os primeiros cigarros. Num instante, a soruma, as alucinações do LSD nas discotecas, a euforia da cocaína, os comprimidos… E a paixão pela heroína. Empenhar a vida por um bafo, entrar na espiral. A viagem a começar alegre, a haxixe a torná-la “apaziguante”, o tempo a desmascará-la qual pesadelo. Descer o abismo e por lá ficar. Consumir, ressacar, acordar nos restos de si mesmo. Consumir, depauperar-se, consumir, roubar, espatifar-se de mota. Consumir.

Gastou anos no desatino. Durante alguns, manteve a aparências. O pai, conceituado homem de negócios, só não tolerava más notas. E António, que aos sete anos já estudava num colégio privado, foi segurando o cristal. Quando o descobriam num amargo, albergava-se em desculpas nas boas graças da sociedade: “Ontem, bebi demais.” Acabado o ensino médio, embarcou para o ISPU – em Maputo, uma fortuna por mês. Mas depressa desistiu. Rumou então para a África do Sul, a fim de tirar gestão. Consumia tudo o que encontrava, remoía na saudade da heroína. Ao fim-de-semana, em segredo, voava até Maputo. À “Colômbia”, na zona militar, onde conhecia todos os cantos e os “dealers”.

Sobrevia 2000 quando, formado além-fronteiras, conseguiu estágio de gabarito num banco. Faltou-lhe largar a heroína. Foi tratar-se ao Hospital Psiquiátrico de Infulene, voltou. Encetou funções de director de recursos humanos numa afamada empresa. Nova recaída, novo tratamento, novo regresso. Estreou-se como director de Marketing numa empresa pública. Gabavam-lhe competências, parecia esquecido de mocas. Mas o abismo não mostrava fundo. Um ano depois, mais consumos, mais ressacas, mais internamento. A família fechou-lhe as portas. Recaiu outra vez, recaía sempre. Fumava tanto que vezes sem conta encetou prosa com a morte.

Um dia, deu por si no chão. Deitado, fantasma, um saquinho de heroína ao lado: “Foi o fundo do poço. Tinha feito tanto mal para ter aquilo e já não consumir me apaziguava… Nesse momento decidi acabar com a vida.” Aproximou-se da botija, deitou-lhe a mão. Mas a sorte espreitava. Antes de conseguir soltar o gás, perdeu os sentidos. Despertou no dia seguinte. Julgava-se morto, respirar espantou-o. Nesse sopro, encontrou fé – a força da última oportunidade. Levantou-se e arrastou-se até a REMAR – um grupo de religiosos de auto-ajuda para adictos: “Foi um milagre. O primeiro dia da minha recuperação.”

Vida nova. Outra vez, a vontade de miúdas. A capacidade de se apaixonar. A liberdade de não precisar de um grama. A paz de respeitar princípios. Nunca mais deixou os grupos de auto-ajuda: “Esta é uma doença manhosa. Acorda sempre mais cedo que eu e tenta pregar-me uma rasteira. Sair do abismo é muito difícil, o contacto com a adicção é o que me mantém bem”. Tem 32 anos, cinco de recuperação. Hoje, dá a mão a pessoas tão no fundo quanto, um dia, ele esteve.

*nome fictício

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts

error: Content is protected !!