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Marrabenta clama por ajuda!

Contar a história da música tradicional moçambicana, sobretudo a produzida no período pós-independência, excluindo a Orquestra Bantu, seria o mesmo que cometer uma heresia digna de maldição imediata, como acontece em algumas crenças religiosas. No entanto, apesar das mil e uma apreciações favoráveis que se podem fazer a respeito, a falta de um trabalho discográfi co registado é o paradoxo que teima em persistir.

A verdade é que, com apenas três instrumentos musicais convencionais – violas, percussão, bateria, incluindo um africano, o reco-reco – por meio da arte de cantar, os Bantu fizeram “furor” nas pistas de dança. Contrários, ao facto, não se manifestam os mais atentos à música moçambicana da época.

No entanto, como é da praxe – em Moçambique sobretudo – entre os trovadores da música genuína, vários anos (depois da sua assunção como artistas por diversos motivos) decorreram sem que os Bantu tenham pelo menos um disco compacto gravado. A Orquestra Djambo, um grupo da velha guarda, e o músico Gabriel Chiau, que em 2010 celebrou 50 de carreira, são outros exemplos dos mais irrefutáveis.

É neste prisma que em resposta ao apelo popular (uma espécie da causa nacional) para a salvaguarda do que há de mais precioso na cultura moçambicana – a Marrabenta – presentemente os Bantu esparramam-se pelos quatro ventos do território nacional clamando por apoio. A finalidade, um projecto ambicioso, é a necessidade de conservar a memória colectiva do povo através de um registo discográfi co dos êxitos musicais da referida banda.

Estão em jogo cerca de 65 mil meticais para a produção de 500 cópias de discos contendo 12 temas musicais, dos quais “Moçambicano” e “Margarida”, por exemplo, pairam no tempo, como verdadeiros hinos populares.

Sobre o tópico (e muitos outros) @ Verdade que, muito recentemente, conversou com Nuro Mohamed (vocalista) e Augusto Tembe, um dos instrumentistas da banda traz em linhas gerais o resultado do debate.

“Surgimos logo depois da proclamação da independência nacional como os Bantu. A maior parte de nós vivia no bairro de Chamanculo. Decidimos criar um agrupamento por meio do qual difundiríamos a nossa música padrão – a Marrabenta – sem, no entanto, descurarmos a imitação que fazíamos em relação à música internacional”, começa por dizer, em jeito de recordação, Nuro Mohamed, garantindo que “na época fizemos furor”.

Recorde-se que a última gravação da música dos Bantu decorreu em 1979. Mais adiante com a dinâmica da vida social – marcada pela guerra dos 16 anos, a crise económica entre outras vicissitudes sociais da época – os Bantu dispersaram-se.

E porque mesmo diante da acção do tempo, a boa música não se corrompe além de criar nostalgia, eis que 30 anos depois, o povo impele o grupo a editar em CD, do que em tempos só foi registado em discos de 45 rotações, para adequá-los à realidade tecnológica actual.

Voltar à estaca zero

Para o efeito, de há uns cinco anos a esta parte, os Bantu lançaram-se no campo a fim de recuperarem todas as músicas, gravadas em discos de 45 rotaçõesou mesmo em fita magnética. O trabalho foi concluído com êxito. O que significa que, ainda que não tivesse a qualidade almejada, a banda já tinha as músicas registadas em CD, que foi imediatamente destinado à Vidisco Moçambique para acertos técnicos.

Não tardou muito que um incêndio de proporções gigantescas deflagrasse nas instalações da editora. Ou seja, até o período anterior ao incidente, o projecto da edição do disco dos Bantu estava em fase avançada incluindo, numa primeira fase, apenas a impressão de apenas 500 cópias. Uma vez que “a capa e a matriz já haviam sido produzidas. Mas da forma como dizem que a editora pegou fogo, acredito que não deve ter sobrado nada”, receia Nuro.

Em outras palavras, “isto equivale a dizer que voltámos à estaca zero. Temos que rebuscar as gravações, como fizemos antes”. De qualquer modo, “tal trabalho é o de menos. Basta que encontremos a fonte das músicas em fita e passá-la para o disco”, realça.

Depois da escravidão

“Uma experiência interessante. Algo que dava a impressão de que estávamos a acordar de um sono. Depois de despertar e fazer a nossa música foi interessante, sobretudo pela grande aceitação que tivemos por parte do povo. Nós, e tantos outros artistas na época, trouxemos a realidade do povo para o povo moçambicano”.

É com estas palavras que os Bantu se recordam do tempo em que os artistas moçambicanos tinham que contornar a perseguição colonial portuguesa para se expressarem por meio da arte.

O peculiar é que ainda que os portugueses os perseguissem, não era necessariamente porque não se rendiam à arte moçambicana. O facto é que tinham temperamentos.

Por exemplo, “dançavam a Marrabenta com muito gosto, mas não admitiam que tal género se chamasse Marrabenta. Impeliam-nos a assumir que se tratavade música folclórica”. Ora, “a Marrabenta é uma música tradicional. Uma raiz cultural. Um género que possui a espinha dorsal da cultura do povo moçambicano. E não é música folclórica”, assevera Mohamed.

A consequência imediata do fenómeno é que “tocávamos (imitávamos) todos os géneros musicais do mundo”. Afinal, “ainda que tocassem, na ocasião, a música moçambicana na rádio (como acontecia à música do João Domingos, por exemplo) era mais para consolar o povo autóctone”.

É por essa razão que logo a seguir à independência nacional, “assumimos a nossa personalidade para promovermos – por essa via – a canção tradicional moçambicana. Assumimos a nossa cultura”.

Os tempos são outros

Em resposta ao pelo popular, o Ministério da Cultura e a Rádio Moçambique autorizaram os Bantu a recuperar as suas músicas para se produzir o disco,o que significa que “a nossa música ainda tem interesse para o país”.

Sucede porém que “levámos cinco anos a recolher o material, a produzir a matriz, para no fim de tudo a Vidisco dizer-nos que temos que pagar”. Ora, “isto é contraditório, porque, durante muitos anos, eu gravei música em estúdios. Mas nunca havia sido obrigado a pagar. Muito pelo contrário, o estúdio é que me pagava”. Por essa razão, presentemente, “estamos à procura de financiamento para fazer face à demanda e à realidade actual”.

No reino dos problemas

Na amálgama de dificuldades clamando por resolução – e na incapacidade do Homem – o tempo costuma-se encarregar de tal responsabilidade. Contrariamente ao adágio popular, Nuro Mohamed exalta a acção humana, ao afirmar que (ainda que em grandes dificuldades) “estão de parabéns os vários agrupamentos que organizam concertos públicos de música moçambicana” do passado. O criador da “Margarida” apela para que não se confunda a música moçambicana com música feita por moçambicanos.

É que, segundo diz, existe um tipo de música que uma vez tocada e escutada, a marca da origem Made in Moçambique não se confunde. Em contra-senso, outras músicas existem que apesar de repetir-se nelas o coro “dançar Marrabenta”, jamais serão moçambicanas. Não são oriundos de Moçambique, sobretudo porque “canta- se e dança-se Marrabenta” mas dançam “Kwassa-kwassa”.

Convenhamos, então, que por mais que determinado espectáculo musical seja fabuloso, caso não for de Ngalanga ou Xigubo, por exemplo, não tenhamos ilusões de que se trata de música moçambicana. O problema é que “a própria rádio moçambicana está a falhar no aspecto da difusão da música”. Afinal, “difunde muita música que de moçambicana não possui nada e diz que é moçambicana”.

Financiados e desencaminhados O nosso interlocutor lamenta que alguns jovens talentosos se deixem desviar das suas matrizes culturais, por mero complexo de inferioridade em relação à música alheia. Mas o que mais lhe preocupa é a inoperância do mecenato, bem como o facto de se teimar em apoiar a mediocridade. À guisa de exemplo, Mohamed cita o caso do guitarrista moçambicano Amável Pinto que experimentou a indisposição do mecenato em relação aos seus projectos musicais.

“Recordo-me que a mcel se recusou a apoiar os projectos musicais de Amável Pinto. Esta empresa simplesmente disse que o que ele está a fazer não é nada”. Ou seja, “querem que seja igual a Djimi Dludlu, que Amável vá à África do Sul para poder sobressair”.

O pior é que esta empresa, em contrapartida, “vai financiar alguns miúdos que produzem música no computador em detrimento de um artista que é executor nato a quem a gente admira e aprecia”. Logo, “o problema éque depois de mal influenciados, desencaminhados, os miúdos sãofinanciados para rumar por caminhos ínvios”.

Proliferam estúdios clandestinos

Outro aspecto que preocupa os Bantu é a proliferação de estúdios clandestinos na cidade de Maputo. É que, segundo dizem, não são os principais promotores da imoralidade musical na camada juvenil. Afinal, são geralmente desprovidas de pessoas que critiquem o teor das composições gravadas. E como são de fácil acesso, qualquer pessoa – que por qualquer motivo acorde músico – pode, no dia seguinte, por “apenas 200 meticais gravar músicas insultuosas que logo são legitimadas pela rádio que a difunde”, afirma Augusto Tembe.

Conduzindo a sua opinião ao extremo, Tembe contesta, afirmando que “se quisermos construir uma sociedade sã e disciplinada, devemos impor a disciplina”. Ou melhor, “devia-se encerrar as tais casas que em nada contribuem para a construção social do homem”. Nos estúdios de gravação musical, devia haver pessoas com idoneidade inquestionável em matérias de música, para trabalharem como críticos e conselheiros.

As línguas nacionais são as mais incorrectas

A preocupação de Nuro Mohamed é, acima de tudo, a linguística. É por essa razão que o artista prefere ilustrar com ocaso das línguas vernáculas nacionais.

Como tal, encontrando entre as principais línguas da região sul do paralelo 22 – Inhambane, Gaza e Maputo – o Gitonga, o Xichangana e o Ronga, sucede que em situações comunicacionais, em cada frase (actualmente) quando se fala o Gitonga, pelo menos cinco palavras são portuguesas e apenas, duas da língua original. Contrariamente quando se canto o mesmo não sucede.

Relativamente às duas ultimas línguas – Xichangana e Ronga – não se percebe em que língua os músicos cantam. “É uma salada detal maneira que não se percebe. E não há quem os oriente”.

Enquanto isso, grupos como Irmãos Will e Aníbal, Orquestra Djambo, Gabriel Chiau, entre outros – verdadeiras bibliotecas com originalidade em termos de línguas vernáculas – vêm-se protelados e condenados a um esquecimento infundado.

Portanto, devia ser feito um trabalho sistemático de preservação da genuinidade das línguas nacionais sob pena de elas desaparecerem. É que, incompreensivelmente, quando comparado com as línguas nacionais, o português está a ser muito bem tratado. Deve ser o mais correcto possível, de maneira que se alguém comete uma gralha percebe-se imediatamente. Tristemente, “o Xichangana e o Xironga são as línguas mais incorrectas. E ninguém se preocupa com isso”.

Desculpabilizar os jovens

Os jovens podem até ser acusados de tudo. A verdade, porém, manda dizer que os mesmos não são culpados. “A culpa é das instituições que estão a deixar isto andar”, diz Mohamed, acrescentando que “não me posso armar até os dentes para combater o cenário, quando existem pessoas que estão empenhadas em providenciar o mesmo”. E isto verifica-se sobretudo “quando não se apoia os autores da música genuína moçambicana”.

Por isso, “eu digo que se deve trabalhar fortemente nas línguas vernáculas ao nível do ensino primário”. Afinal, “ensinar Xichangana a um indivíduo que está prestes a concluir a universidade não é diferente de perguntar a mim sobre se voltarei a cantar com os Bantu e eu não saber responder. Que trabalho vou fazer com esta idade?”, questionou Nuro Mohamed engolindo em seco.

Pequena biografia

O agrupamento Bantu existe desde o período anterior à conquista da independência nacional de Moçambique, em 1975. Na época exploravam a música diversificada, imitando os astros da música da época como Roberto Carlos, Elvis Presley, entre outros, e nos mais variados géneros musicais.

Em finais da década ´70 – com o país independente – decidem lançar novos desafios característicos da época, voltados à valorização da cultura autóctone, com sete elementos, nomeadamente, Domingos Cumba (já falecido, na viola solo), Yassin Abubacar no contra-solo, Jeremias Magaia, na viola baixo, Jaime Ngovo (Jaimito, na bateria), Augusto Tembe, que para além da guitarra explorava o reco-reco, um instrumento tradicional moçambicano, Alberto Mahumana, na repercussão e, por fim, Nuro Mohamed que era o vocalista.

Depois de em ´79 realizarem uma das suas últimas gravações musicais, os elementos do grupo não suportaram a dinâmica sociopolítica e económica da época, tendo-se dispersado em batalhas de combate à pobreza – equação que a música não consegue dar solução.

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