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Pandza: Mão de Deus

Frequentava a vida pelo lado amargo. Convivia intimamente com a solidão. Como os trapos e papelões que entopem as sarjetas, entupia as ruas errando à vontade do vento. A sua presença já não fazia muito sentido no mundo dos vivos. Tinha casa mas pernoitava onde melhor se aconchegava, no calor frio do relento.

Tinha parentes mas a sua verdadeira família era constituída por as garrafas e pelo luar, com quem passava os dias e as noites. Ao contrário das pessoas, o luar e as garrafas davam-lhe luz e afecto, com que se equilibrava.

O luar, com os braços dóceis que as suas réstias são, abraçava-o e embalava- -o com carinho todas as noites. As garrafas tinham por ele um afecto líquido, que fermentava nas veias e adormeciam abraçados, de boca e gargalos juntinhos, em cumplicidade de amantes. Fazia anos.

Não se lembrava de, nos últimos tempos, ter comemorado algum aniversário. Nem se lembrava dos seus aniversários. Quem tem necessidades primárias tem mais com que se ocupar do que andar a comemorar aniversários. Houve quem dissesse que levava a vida em constante comemoração, pois, a beber assim, só podia estar a festejar algo.

– Bom homem, mas eish, bebida…

Fazia anos. Foram buscá-lo, caído algures, no labirinto da cidade. Pernoitara como sempre ao relento. Olharam para ele como se olha para um rato a defi nhar e, com uma piedade formal, comentaram: – Bom homem, mas eish, bebida…

Fazia anos. Cuidaram dele com mais dever do que carinho. Ainda assim era uma atenção a que já não estava habituado. Separaram-lhe da companheira, com quem partilhava aquele amor líquido, etílico, mas verdadeiro, a garrafa. Seguraram-no pelo braço e arrastaram-no, como se arrastam carcaças para a sucata.

As calças riscaram o chão, a urina pincelou o passeio. Levaram-no de carro, como há muito não faziam. Limparam-lhe a baba. Apararam-lhe do rosto os pelos grisalhos e castanhos como se disfarçassem a folhagem amarela duma acácia cansada. Lavaram-no, com mangueira e escovas, como se lava moradores de um estábulo.

Usaram sabonetes de aromas invulgares, que há muito não sentia. Vestiram-lhe como se embalassem uma encomenda, roupas como há muito não vestia: uma camisa limpa, um fato novo, e sapatos. Perfumaram-no, disfarçando o cheiro a vagabundo que tresandava. Até flores lhe ofereceram. Deixaram-no pronto para a cerimónia.

– Bom homem, mas eish, bebida… – lamentava-se.

Juntaram as mesas, requisitaram cadeiras e esteiras na vizinhança. Prepararam bebes e comes. Vinho e mahêu, arroz com caril em panelas grandes. As pessoas juntaram-se à sua volta, ora em silêncio, ora entoando aqueles cânticos que se aprendem na igreja, o corpo não dança mas a alma percebe.

Pareciam harpas as cordas vocais daquela gente. Entoava versos com que o aniversariante se identifi cou: “Se as águas do mar da vida quiserem afogar-te (…) se as tristezas desta vida quiserem sufocar-te…”

No embalo dos cânticos, irrompeu entre os presentes um homem de idade, barbudo, em trajes humildes. Por trás o sol aureolava-o dando-lhe um aspecto místico. Trajando panos brancos, aproximou-se pisando com a sandália sem magoar o chão.

Alguém aumentou o volume da orquestra de vozes e os cânticos ganharam uma entoação mais gospel. O homem levantou lentamente o braço e estendeu-o ao aniversariante, quando das vozes se ouviu: “Segura a mão de Deus, segura a mão de Deus…”.

O aniversariante segurou a mão de Deus, e sentiu firmeza. “Não temas, segue em diante e não olhes para atrás…” mas ele olhou para trás e viu o cortejo de cantantes em lágrimas. Deus olhou para ele, para a camisa, para o fato, para os sapatos, para as flores há pouco oferecidas, e disse, com a voz majestosa:

– Deixa ficar tudo isso. Lá para onde vamos não vais precisar. Despiu-se e deixou ficar a roupa, as flores, os perfumes, o carinho, as lágrimas, tudo o que nunca teve mas hoje lhe ofereciam.

– Deixa também ficar o corpo. Traz só a alma contigo.

“Segura a mão de Deus e vai…” ouviu-se, enquanto os dois caminhavam, com a cumplicidade das mãos juntas. Sorrindo, Deus olhou por cima do ombro e disse:

– Feliz aniversário, meu filho.

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