Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

Já não há peixe na baía

Já não há peixe na baía

A Baía de Inhambane já foi, em tempos, um alfobre de não acabar. Mais do que isso, tinha a vocação de um tanque piscícola natural e interminável, construído pela própria Mão de Deus, para dar peixe e todo o tipo de marisco aos habitantes daqui e a outros que, não sendo daqui, vinham desfrutar deste maná. Todos os dias os pescadores desciam ao mar e de lá traziam os cestos fartos, outras espécies capturadas eram devolvidas à água, não porque havia a consciência da preservação, mas constituíam peso desnecessário. Pescava-se diariamente, de dia e de noite, mas o peixe não acabava, até que, já não suportando mais, cansou-se de tanta pressão. E o que acontece hoje são mais lembranças daquele tempo, do que propriamente a alegria de levar para casa o alimento. O peixe já não sai como saía antigamente.

Para começar decidi dar uma volta pela ponte-cais, a partir de onde tenho em todo o meu redor uma paisagem esplendorosa. Indescritível, na medida em que o mar e o imenso coqueiral e as cidades de Inhambane e Maxixe, que se podem contemplar infinitamente a partir dali, entram em perfeita consonância. E tudo o que é perfeito não se descreve. Ou seja, quem está arrebatado não estará em condições de narrar o que vê e sente.

Mas o que me leva ao local não será apenas aquela beleza. Quero ver os pescadores, falar com eles, apreciar o peixe preso ao anzol, ou ainda, ouvir contar as prováveis tristezas destes homens que hoje em dia ficam ali tempos infindáveis, por vezes horas, sem tirar nenhum peixe cá para fora, ou para dentro do cesto. Tenho o desejo também de reconstituir os momentos de faina voraz, com homens espalhados em quase toda a plataforma, atirando constantemente os fios à água e de lá sacando a desgraçada presa que vai engordar as mesas.

Tenho essas passagens na memória, está em mim a imagem daqueles que, não querendo pescar a partir do tampo, desciam até aos pilares, em tempo de maré vaza, com todos os riscos que isso representa. Mas era necessário correr o perigo porque havia objectivos muito claros, e metas para alcançar. E alcançavam. Peixes de diferentes tipos eram ali tirados, a partir da simples pescadinha às monstruosas garoupas e serras e xerewas.

Durante o Inverno, era a sardinha que inundava a ponte, convidando pescadores profissionais e desportivos, que voltavam para casa abastados. O que acontece é que esta espécie é muito fácil de caçar, pois ela deixa-se praticamente flutuar na superfície, alimentando ainda mais a gula dos pescadores, que não vão precisar de isca, bastando o anzol. Outros ainda, os mais profusos, amarram ao fio quatro ou cinco anzóis ao mesmo tempo, e aquilo torna-se um espectáculo de pescaria.

Fui à ponte-cais com estas memórias. Com esta nostalgia. E o que encontrei não foi mais que a própria tristeza dos pescadores. Sobretudo daqueles que nunca souberam fazer mais nada na vida senão acordar de manhã e ir àquele local à busca de meios de sobrevivência. A juventude de alguns que ainda hoje subsistem ao tempo e as intempéries foi escavada ali, sem piedade. E o que ficou deles, depois de garimpada a frescura do físico, são os buracos da dor de nunca terem feito quase nada com o pescado dali tirado e, pior do que isso, a frustração de já não terem o produto nas mesmas quantidades de que usufruíam naquele tempo.

Mas não desistem, são pessoas anónimas que lutam diariamente pela vida, homens cuja energia soçobra visivelmente, e mesmo assim não podem ficar em casa. Continuarão a ir à ponte-cais até ao último suspiro, mesmo que o peixe não saia. “Vamos ficar em casa a fazer o quê?”. Na verdade, ficar em casa seria bem pior, “pelo menos aqui temos a esperança de levar caril para a família”. Contudo, as contingências da vida nem sempre lhes permitem levar o pouco que conseguem para casa. “Sim, às vezes somos obrigados a vender todo o pouco que conseguimos aqui, porque precisamos do dinheiro para comprar outras coisas”.

É isso, na ponte-cais o movimento que se regista é escasso. Vê-se um pescador aqui e ali. E acolá. Desafiando as adversidades da vida. Tentando contrariar a fustigação dos tempos. E muitos já lá não vão, não vale a pena ir por ir. Porém, os jovens, alguns deles com escolaridade suficiente para trabalharem em algum lugar, fazem-se ao terreno, e, como não há emprego, “estamos aqui a queimar tempo de forma proveitosa. Nos dias de sorte conseguimos peixe para comer e algum para vender, mas, como já se disse, e o senhor sabe muito bem disso, as coisas não estão fáceis. Não há peixe. Mas vale apena estar aqui, divertindo, do que morrer de tédio”.

As canoas são de hoje

Naquele tempo não havia canoas (mombo, em bitonga) na baía de Inhambane. Se havia, era um e outro. Mas hoje esses meios são usados de forma significativa para a pesca. São jangadas minúsculas, geralmente preparadas para acolher apenas uma pessoa, que se aventura na baía portando consigo um ou dois fios de diâmetros diferentes, e um remo para mover a sua embarcação. A partir da ponte-cais podem ser vistas essas barcaças, aconcoradas em lugares identificados, bem conhecidos pelos pescadores, que se movimentam com domínio.

Eles conhecem todos os habitats da zona, conhecem os ventos e as correntes, o comportamento das marés, e adivinham os perigos antes de chegarem. São homens endurecidos pelo tempo, que se entregam diariamente ao sol e, nos dias de chuva, continuam a desempenhar o seu trabalho, entregando absolutamente o corpo sem qualquer defesa. Mesmo assim não levam muito para casa. Vão para ali porque o desejo de continuar vivo é maior. Senão não valeria a pena.

Olhando para as pequenas canoas estendidas na baía, na solidão de cada um dos seus utentes, e no silêncio que nem os barcos a motor que fazem o transporte na travessia Inhambane-Maxixe e vice-versa conseguem diluir, percebe-se facilmente que a faina aqui é fraca, o que me faz lembrar as recentes palavras de Momad Wa Simbo, em Mucucune: “Deus diminuiu as bênçãos”.

Dá a impressão de que os mimombo, (plural de mombo), vieram susbstituir os barcos à vela, que levavam, por sua vez, enquanto os outros pescavam na plataforma do cais, vários grupos de pescadores que na baía se espalhavam na procura do marisco. É apenas uma impressão porque esses barcos ainda existem, nem que isso seja em número diminuto. Mas eles também, os que ainda resistem, não fazem muito porque o mar não lhes permite, não lhes dá o que precisam. Vão e voltam, todos os dias, quase sem nada nos cestos. É a desolção em si, numa atmosfera em que as pessoas não param de acreditar. E sobretudo não param de trabalhar, ou de pescar.

Camarão, que camarão?

Este é o marisco de maior procura e, por isso mesmo, de maior escassez. Na baía de Inhambane a pescaria de camarão foi sempre confiada maioritariamente às mulheres. Que vão descer à praia ao princípio da noite, quando a maré é baixa (mati mafa, em bitonga), ou ao princípio da madrugada, em tempo de marés equinociais (maguluti, em bitonga). Tempos houve em que o resultado desta faina era uma festa, as mulheres iam com a certeza de trazer fartura, e voltam alegres, revigoradas.

Outras, obrigadas pela vida, levavam os seus bebés às costas, arrastando com elas a rede por debaixo do frio, por vezes sob fustigação da chuva, mas todo esse sofrimento era compensado. No mesmo cesto (lisengwe, em bitonga), a par do camarão, eram apanhadas outras espécies, como makhulu, um tipo de peixe minúsculo, muito saboroso quando frito, e aconselhável para o mata-bicho. Vinha makhulu e lula e carangueijo e mais, para alimentar os bitongas, e por sua vez os vathswa e chopis, que vieram para aqui atraídos pelo mar e pela beleza dos barcos à vela.

O makhulu praticamente desapareceu. Quando aparece, em pequenas quantidades, a juventude de hoje não o conhece, desdenha-o, pelas suas características pouco ortodoxas. Hoje as mulheres sentem preguiça de ir à pesca de camarão. Quando vão não trazem nada e, quando conseguem alguma coisa, é um camarão muito fino, insignificante. Que vai ser vendido, mesmo assim, a preços exorbitantes, porque elas têm necessidades. Urgentes. Precisam de dinheiro, cada vez mais minguante.

Nas manhãs e tardes, a baía era engalanada. Por mulheres jovens e adultas e crianças. Que se estendiam desde Inhapossa até muito perto da ponte-cais, numa procissão de apanha de caranguejo, cujas variáveis, em bitonga, nos oferecem-nos dzindlolo, cihologo, sikalakadani, sidzeguedzegue, por aí em diante. Elas aproveitavam a maré baixa para procurarem os crustáceos muito perto do canal (nondlwa, em bitonga), ou atravessam-no de barco para Boni e Bebebe, nomes dados a dois bancos de areia que ficam expostos quando as águas baixam.

Era um regalo vê-las nesse exercício em que os corpos vergavam e endireitavam-se de tempos a tempos para apanhar o marisco preso por debaixo do pé. Aquela paisagem que elas desenhavam era também uma poesia, ou seja, eram as mulheres e o mar e os barcos e os carangueijos, e mais nada, ou melhor, com Deus a controlar tudo. Por vezes o diabo.

Lembro-me de que se registavam, a espaços, desaparecimentos das apanhadoras de carangueijo, ou das pescadoras de camarão, que iam e não voltavam mais, ou iam e o que voltava para casa eram os seus corpos. Sem vida. Mas elas não paravam de demandar o mar por causa desses acidentes, nem a baía parava na sua generosidade de dar alimento aos vatonga, e aos outros que, não sendo vatonga, vinham para cá degustar da dádiva da água salgada. Vêm-me as lembranças desse tempo hoje, quando desço, descontraidamente, para esses locais e já não vejo o magote dessas pessoas. O que se depreende é um vulto aqui e ali, e acolá, parecendo buscar com as mãos a água num poço que só tira lama.

Na verdade já não há muito caranguejo por aqui, como havia antigamente. Quando aparece os preços doem. Afastam-nos, mesmo recusando-nos a voltar para casa de mãos sem nada. Mas o que vai nos criar a maior revolta é o camarão gigante de Cobane, que regava banquetes e banquetes dos biotongas e de outros. Quando chegava a altura de ele ser cuspido pelas águas, enchia reservatórios.

Os que não tinham como conservá-lo fresco secavam-no. Aqueles que o pescavam vinham à estrada exibi-lo a preços de oferta e, quando a noite chegasse sem que acabasse, voltavam como ele para casa a fim de colocá-lo no processo de secagem, ou ainda, baixavam mais os preços, convidando pessoas que, apesar disso, não se interessavam. Amanhã haverá mais.

Hoje, este crustáceo transformou-se em ouro. Para consegui-lo é necessário fazer encomendas antecipadas. Entretanto, sem a certeza de ter as quantidades desejadas. Os próprios pescadores nunca fazem promessas. Sabem das vicissitudes actuais, que têm a ver, segundo as tradições locais, com a zanga dos antepassados, donos da zona, que “fecharam” a produção por causa dos desrespeitos e abusos que ali se verificam. Há rituais que não são seguidos.

Há pessoas que pensam que ali podem dar orientações ou ordens, quando efectivamente não estão permitidos a tal. Nem com a instauração de períodos de defeso o camarão reproduz a contento. Toda a baía está zangada. Aqueles que aqui desapareceram em naufrágios e cujos corpos não foram nunca encontrados estão vivos lá em baixo e controlam tudo. Há nomes conhecidos que aparecem na consulta de curandeiros a reivindicarem direitos, a reclamarem violações feitas por desconhecidos, a apelarem, em primeiro lugar, à restauração da ordem. Um reordenamento que as pessoas não parecem estar dispostas a cumprir.

Cientificamente, o desaparecimento do marisco explica-se pela forte pressão que se faz sobre ele, e pelas mudanças climáticas, mas os sábios naturais dizem que não, Deus sabia que haveria pressão sobre o pescado no futuro, e Ele terá feito tudo para que, quanto mais fosse capturado, mais se reproduziria. Deus não é maluco para não prever o futuro, o que acontece é que os Homens se juntaram ao diabo.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts

error: Content is protected !!