Se há males que vêm por bem, também há bens que vêm por mal. Este é o caso das obras do prolongamento da Avenida Joaquim Chissano, que irão afectar um terço, pelo menos, dos agricultores do Vale de Infulene os quais serão obrigados a deixar o local onde há mais de vinte anos ganham a vida, socorrendo-se da produção de hortícolas, não tendo, presentemente, onde ir…
Ainda não se sabe ao certo quantos agricultores terão de abandonar aquela área, porém, só depois da demarcação do espaço se conhecerá o número exacto dos afectados num espaço de 120 hectares. Por enquanto calcula-se que cerca de 30 agricultores que exploram a zona deverão deixar o local devido às obras, um troço que parte da rua da Resistência, no bairro da Malhangalene, até ao nó da Machava, orçadas em três milhões de dólares norte-americanos.
O drama dos agricultores
Apesar de a infra-estrutura ser de crucial importância para a redução do intenso tráfego rodoviário da capital, vozes há que consideram que a obra constitui uma catástrofe pelo facto de causar alguma desgraça à vida dos “machambeiros”. Neste caso, referimo-nos a Latino Nhavotso, agricultor desde 1987. Nos próximos dias, Nhavotso, que só sabe ser agricultor, assistirá, sem poder fazer nada, à construção de uma estrada no lugar que vai passar literalmente pelo lugar onde actualmente se encontram os seus 42 canteiros de couve e alface. Segundo o mesmo, ainda não foi informado de que nos próximos tempos terá de abandonar a terra que explorou durante toda uma vida para buscar o sustento diário.
Ele confessa que ficou bastante surpreendido quando viu uma máquina escavadora, sem aviso prévio, estacionar a escassos centímetros da sua fonte de subsistência. Nhavotso lamenta ainda por não saber o que será de si e da sua família, caso venha a ser retirado dali, a não ser que, conforme as suas palavras, lhe atribuam um outro pedaço de terra, pois que, além de cultivar, nada mais sabe fazer. Dependendo da procura, mensalmente obtém um rendimento de 12600 meticais à razão de 300 meticais por canteiro. Vivendo quase na mesma situação, está Ricardo Pedro Mutote, proprietário de 1000 canteiros, representante da comissão dos agricultores e explorador daquelas terras há 20 anos.
Ao contrário de Nhavotso, este cultivador perderá mais da metade do seu campo. De acordo com as suas palavras, nos finais de 2008 teve conhecimento de que alguns agricultores iriam perder os seus campos de cultivo e que a edilidade se reuniria com eles para debater o assunto e, passados alguns tempos, nada aconteceu. Aquele representante afirma, igualmente que, quando viu as escavadoras aproximarem- se do vale, ficou surpreso e tratou logo de contactar as autoridades municipais e estes mandaram- no ter com a empresa encarregue da construção, a CMC-África Austral.
Por sua vez, a empresa disse que o assunto não era da sua alçada, cabendo-lhe apenas executar a obra, mas garantiu que ainda não tinha autorização para entrar nas machambas. Mutote receia que algo corra mal, mas afirma que os agricultores não vão ceder, pois vivem daquilo. “Há mais de vinte anos que vivemos deste trabalho, pelo que não vamos permitir uma burla, daqui só saímos com acordos claros”, disse Mutote, ao mesmo tempo que lamenta pelo número significativo de famílias que irão perder o seu ganha-pão, caso as coisas não terminem como se pretende.
Segundo ficámos a saber, o abandono dos camponeses poderá provocar o agravamento do preço de comercialização daqueles produtos nos principais mercados da capital e arredores. “Com os produtos cultivados aqui abastecemos quase todos os mercados de Maputo, Xai- Xai e até da África do Sul. Daqui sai a maior parte da couve e alface que alimenta a cidade”, reiteram, avisando que os consumidores “não se surpreendam caso os preços dispararem ou se por acaso se notar uma escassez de produtos hortícolas no mercado”.
Informações contraditórias…
De acordo com o Concelho Municipal da Cidade de Maputo, ao nível do bairro de Infulene estão a ser envidados esforços no sentido de encontrar alternativas para os agricultores, todavia, a procura é enorme e há cada vez menos terras para cultivar. “Estamos numa zona urbana, pelo que pode ser difícil conseguir terras em quantidades desejáveis para todos, mas os nossos esforços a nível do distrito municipal número 5 apontam nesse sentido”, assegura Mário Macaringue, vereador para a área de infra-estruturas. Para aquele responsável existe, por parte da edilida- de, preocupação visando o reenquadramento dos agricultores. “Naturalmente, que alguns agricultores serão afectados porque a estrada tem de passar por ali, mas a nossa intenção é que a parte socioeconómica seja a menos afectada possível”, afirmou.
Voz dos afectados
Conforme relatos de uma testemunha, presume-se que algo vai mal em torno de todo o processo por haver tentativas de ludibriar os camponeses. “Pairam indícios de burla e corrupção neste processo, não faz sentido que as coisas estejam a ser dificultadas enquanto tudo foi acertado com a equipa que veio aqui e prometeu desembolsar quantias em dinheiro para os que fossem afectados pelas obras”, afirma. Refere-se, igualmente, que há dois anos quando se falou da reabilitação e expansão daquele troço foi negociado que os cultivadores seriam indemnizados, como também beneficiariam de outras terras para desenvolverem as suas actividades, um recurso que segundo a Lei Mãe pertence ao Estado.
“Hoje, concretizados que estão os planos, a vida agrária por aqui virou um autêntico martírio”, referem. A título de exemplo, o representante da comissão de agricultores disse que há dias uma das agricultoras viu as suas expectativas frustradas quando, após terem sido acordados 228 mil meticais e mais um terreno correspondente aos cálculos e promessas feitas, nessa altura, foram-lhe atribuídos apenas 108 mil meticais referentes aos produtos. No entanto, ao exigir o acordado eis que lhe disseram que devia agradecer pelo facto de ter recebido alguma coisa.
Outra questão levantada é a falta de clareza na tomada de decisões. Consta que o ambiente que se vive por ali denuncia um certo conflito de interesses e uma falta de coerência entre a edilidade, administração do distrito, o secretário do bairro e a CMC, empresa responsável pela execução da obra. “Está tudo estranho, não se sabe como é que as coisas funcionam. Há falta de articulação na tomada de decisões”, afirmam. Segundo um dos residentes, há dias, sem mais nem menos, os agricultores foram surpreendidos por uma equipa da EDM que passou por ali com o fito de remover os cabos eléctricos e que para o efeito estavam informados de que todos os cultivadores tinham sido indemnizados. Esse incidente causou alguma consternação aos agrários porque, segundo eles, ainda aguardam ansiosamente pelas informações e os próximos passos a seguir. “E porque até aquela altura não tínhamos nenhuma informação, expulsámos os homens da EDM”, contam.
Secretário do bairro vs CMC
Citando a versão de Milagre Manhique, o secretário do bairro, ainda não existe um número exacto de agricultores que terão de abandonar aquela área de cultivo, pois cabe à empresa construtora, neste caso a CMC, definir a quantidade dos que irão perder as suas machambas. No entanto, à semelhança da equipa da EDM que foi vaiada quando tentava levar a cabo os seus trabalhos, um grupo da CMC foi, há dias, igualmente escorraçado. Os agricultores alegam que as obras não vão arrancar “caso as coisas não fiquem em pratos limpos. Só aceitamos sair daqui caso clarifiquem as coisas, queremos indemnizações”, reiteram. Por sua vez, a CMC argumenta que só obedece a ordens, pelo que a empresa já tem permissão para seguir em frente e diz que existe um documento dando conta de que tudo já foi negociado ao nível da vereação municipal.
O percurso da produção
O vale de Infulene constitui o maior, senão a principal cintura verde de Maputo. Dali provém quase metade da produção hortícola de toda a zona sul do país. Neste momento, directa ou indirectamente, inúmeras famílias dependem dos seus produtos para sobreviver. A venda é feita por canteiros que actualmente variam entre 300 e 500 meticais, um preço considerado alto devido à escassez de produtos causada pela onda de calor dos últimos tempos. No Inverno, particularmente nos meses de Maio a Setembro, o preço chega a baixar para 100 meticais. Segundo os agricultores, os produtos são vendidos nos mercados de Maputo, Xai-Xai e África do Sul a preços que variam de acordo com as margens de lucro dos revendedores.
De referir que por cada canteiro os revendedores ganham 1500 meticais depois de retiraram da receita o valor do transporte e da compra. Ou seja, os produtores são quem menos dividendos colhem do seu trabalho. Na capital do país por exemplo, os locais que mais caro vendem são os que se situam no centro da cidade, designadamente os mercados Janete, Central e o do Povo. Xipamanine e Chiquelene são algumas das paragens onde os produtos se vendem de forma acessível. Portanto, de acordo com uma fonte do Concelho Municipal de Maputo, nos próximos dias, prevê-se a construção de uma fábrica de processamento de sementes, nas imediações do vale.
Devido às intensas chuvas que fustigaram Maputo no dia 27 de Janeiro, 700 dos 1500 hectares existentes em Maputo sofreram inundações que provocaram prejuízos incalculáveis a cerca de 600 agricultores em todas as zonas verdes. Este facto, associado aos últimos acontecimentos transformam Infulene não apenas num simples lugar repleto de dissabores, mas também num autêntico vale de lágrimas. Segundo os agrários, estas situações poderão provocar, nos próximos dias, o aumento do preço dos produtos, sobretudo o da couve.
Impacto socioeconómico
Para alguns economistas ouvidos pela nossa reportagem, a retirada de alguns camponeses daquela área de produção agrícola poderá, de certa maneira, provocar o agravamento dos problemas socioeconómicos enfrentados por milhões de moçambicanos, uma vez que se trata de uma actividade de subsistência e dezenas de agricultores irão certamente perder a sua principal fonte de rendimento e, consequentemente, os seus trabalhadores também serão afectados, perdendo, assim, os seus empregos. E, por outro lado, afirmam que aquela medida terá efeitos negativos na procura de insumos.
“Sem dúvidas, a procura por insumos agrícolas poderá registar uma redução significativa”, comentam e chamam a atenção para a importância e a necessidade da via pública em construção no âmbito do desenvolvimento da província e da cidade de Maputo. No entanto, indemnizar e encontrar outras zonas de cultivo são apontadas como algumas das soluções para oferecer a sobrevivência económica aos que provavelmente perderão parcial ou totalmente os seus campos de produção.
Quanto à provável escassez dos produtos cultivados naquela região, particularmente a couve e a alface, nos principais mercados da cidade e arredores, os economistas avançam que é necessário um estudo profundo para analisar se na verdade o número dos agricultores obrigados a cessar as suas actividades provocará ou não uma significativa redução na produção agrícola.
O que a lei preconiza
A maior parte dos agricultores cultiva a terra há mais de 10 anos. Segundo relatos, um dos problemas que os aflige é a falta de comprovativos sobre a titularidade das terras. “Há muito que lutamos para obter os documentos para provar que essas terras nos pertencem, até hoje o Gabinete das Zonas Verdes não nos dá respostas certas, esse tem sido o nosso ponto fraco. Já passaram mais de 10 anos desde que ocupámos isto, mas infelizmente não temos como provar”, lamentam.
Contudo, no que toca à aquisição de terras, o artigo 12 da Lei de terras, na sua alínea b), defende que o direito de uso e aproveitamento da terra é adquirido por: ocupação por pessoas singulares nacionais que, de boa-fé, estejam a utilizar a terra há pelo menos dez anos; por sua vez o número dois do artigo 13 da mesma lei preconiza que a ausência de título não prejudica o direito do uso e aproveitamento da terra adquirido por ocupação nos termos das alíneas a) e b) do artigo anterior.
Com base nos preceitos legais acima transcritos, @ VERDADE ouviu alguns juristas. Segundo eles, tudo indica que os agricultores do vale de Infulene, mesmo sem documentos para tal, sejam donos daqueles terrenos, pois o facto de se encontrarem há mais de uma dezena de anos na labuta da terra confere-lhes essa titularidade à luz do Direito Costumeiro, pelo que a sua retirada implica uma indemnização por parte dos órgãos que o fizerem.