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Há mulheres condenadas pelo lado oculto da vida

Há mulheres condenadas pelo lado oculto da vida

No seu primeiro livro intitulado O Lado Oculto, que contém um conjunto de relatos, a jovem escritora moçambicana, Lídia Mussá, extraindo da voz de quem se vê infernizada por um marido espiritual, muitas vezes mau, expõe a angústia de mulheres moçambicanas condenadas ao sofrimento por sagas causadas pelos seus antepassados.

O Lado Oculto da Vida – grifo nosso – é um assunto complexo. Lamentavelmente, a obra só tem 500 exemplares, mas, dada a complexidade do assunto que as suas páginas abrigam, devia ser multiplicada e distribuída em todo o país. O problema dos maridos espirituais é sério e bicudo e, a avaliar pelos relatos das vítimas, provoca a estagnação da vida de muita gente. É muito sofrimento. São muitos lares que se frustraram precocemente.

Outros não chegaram a formar-se. Depois de ler o livro, o mínimo que se nos ocorre fazer, para a sensibilização do estimado leitor, ou para o consolo de quem passa por uma experiência similar, nesta narrativa – no nosso jeito particular – é transcrever alguns estratos de depoimentos de mulheres que, no âmbito do tema, revelaram as suas experiências à jovem jornalista moçambicana, Lídia Mussá. Mas o ideal era que as pessoas lessem o livro ou que – num arranjo urgente – o reciclassem para que muito mais pessoas consumam a informação.

No prefácio, logo na introdução, o psicólogo moçambicano Bóia Efraime Júnior escreve que os maridos espirituais fazem parte do imaginário de muitas culturas. Mas, depois da leitura do livro, constatámos que, infelizmente, eles fazem parte da sua realidade. Na sua explicação historicista, Bóia escreve sobre a origem destes espíritos, tendo em conta o continente africano. Mas eles manifestam-se noutras civilizações das Américas.

“Os povos Bantu, particularmente os Ndaus e Ngunis guerrearam-se na primeira metade do século XIX, aquando da expansão do império de Shaka Zulo. Muitos guerreiros não foram enterrados e hoje ainda clamam por vingança ou reparação. Estes espíritos dos guerreiros Ngunis, chamados ‘Xipocos’, ‘Mmpfhukawa’, ‘Swikwembu swa mathlári’ ou ‘gamba’, para os apaziguar as famílias ofereciam-lhes uma esposa, uma palhota, entre demais coisas” (Sic).

As vítimas explicam que o referido marido é um espírito que elas assumem como cônjuge, contra a sua vontade, podendo até impedi-las de se casarem ou de engravidarem e ter filhos. O psicólogo Bóia Efraime – que também é consultor – esclarece que na sua experiência clínica “tive clientes que explicaram as suas dificuldades na relação conjugal com o facto de serem casados com espíritos. Os distúrbios eram diversos, desde a disfunção sexual até à infertilidade”.

Um assunto complexo

Tratando-se de um tema complexo, como relata a autora do livro, Lídia Mussá, “a dificuldade de muitos em conversar sobre este assunto constitui o maior entrave, até para as pessoas próximas das vítimas”. Mussá refere que o sentimento de angústia que a realidade lhe causou foi o motivo que lhe fez aceitar o desafio de investigar e escrever O Lado Oculto.

A experiência narrada foi vivenciada pela deputada moçambicana, Flávia Ernesto*, formada em Economia. Com 49 anos, até à data da realização da entrevista, 2013, ela casou-se aos 19 anos de idade. Experimentou as dificuldades que sente uma mulher controlada por um marido espiritual que a moveu a procurar tratamento em médicos tradicionais e curandeiros, a fim de combater as barreiras que se lhe impunham na luta pela felicidade, incluindo a possibilidade de ser mãe.

Por isso, na sua história, muito triste, o ponto melancólico – por constituir a primeira grande perda da sua vida – ocorreu quando lutou a fim de ter a sua primeira filha e assegurar a estabilidade do seu lar. Afirma ela que “a bebé, no momento do parto, ficou presa na minha vagina, por três minutos, com a metade do corpo dentro e outra fora. Nesses três minutos, tive e senti as piores dores da minha vida, vindo em mim a imagem de um homem muito escuro, a receber a bebé nos braços. Aí gritei e a minha filha saiu”.

De acordo com o livro, depois do parto, instalaram-se na vida da deputada Flávia noites sequenciadas de sonhos – na verdade, pesadelos – com o referido marido espiritual a carregar a sua filha. O pior é que o espírito intercedia nas relações sexuais do cônjuge fazendo com o que seu marido sentisse uma presença masculina, o que lhe causava um grande desconforto, um mal-estar.

Sobre o tratamento tradicional a que recorreram – o primeiro porque depois houve viários – Flávia recorda-se de que “entre mios de gatos, sibilos de cobras, chiados de ratos, um espírito manifestou-se muito zangado, apontando para mim, disse que era o meu primeiro marido, pois eu tinha quatro maridos espirituais”. Relata a vítima que “este espírito apareceu a exigir a consagração da minha filha para si como uma condição para sair de mim. Os outros três maridos também queriam o mesmo. Caso não fizesse a cerimónia da consagração da minha filha (…) acrescentou que o meu marido ia zudar sempre de emprego e seria um desgraçado”.

Como se percebe na segunda consulta com os curandeiros, na história de Flávia, o tratamento da luta contra os maridos espirituais é uma experiência difícil porque “enquanto os seus acompanhantes tocavam o batuque, ele matava as galinhas e deixava escorrer em mim o sangue, por cima da minha cabeça. Abriu o peito dos pombos, num golpe agressivo com os seus dedos, e retirou os seus corações. Acendeu as velas, colocou-as ao meu redor enquanto eu segurava a vela vermelha que estava acesa na minha mão. Mandou-me engolir os corações dos dois pombos, sem os mastigar”.

Flávia andou de tratamentos em tratamentos até que sucedeu a segunda ocorrência funesta da sua vida. “O homem que eu amava, o pai da minha filha, por quem tanto lutei, faleceu alguns segundos antes de chegarmos ao hospital. Naquele momento gritei acusando os espíritos, ‘mataram o meu marido, os maridos que eu não conheço, mataram o meu marido!’”

O tempo passou, a deputada Flávia Ernesto recompôs-se, mas a saga não parou de a perseguir. Por isso, narra ela, “seis anos depois de muito sofrimento, voltei a casar-me, tinha já 28 anos. A felicidade do meu novo casamento dependia de medicamentos ou de drogas do meu curandeiro. Tive uma felicidade fictícia durante dois anos. E do fruto do casamento tive duas filhas gémeas”.

O grande receio é que a sua filha mais velha, actualmente com 24 anos, experimente situações similares. No seu depoimento, a cidadã Cristina, de 29 anos, que é estudante, afirma que falar sobre o dito assunto “é muito complicado porque carrego algumas cicatrizes”. A sua irmã mais velha vivenciou os males perpetradas pelos maridos espirituais, chegando a acusar a sua mãe de ser uma das responsáveis pelo fenómeno. No entanto, inocente, Cristina não acreditava nas suas palavras.

“A tua mãe, para ter a riqueza que tem, vendeu-te a um espírito. Por isso não posso ficar mais contido, pois posso prejudicar-me, assim como à minha família. O tal espírito diz ser teu dono e eu, de forma alguma, segundo o curandeiro, não posso lutar ou desafiá-lo, porque a tua mãe não cumpriu com o acordo pré-estabelecido”.

Foi assim que a irmã de Cristina reproduziu as palavras do seu namorado, cuja família já não queria saber do seu romance. Estamos esclarecidos de que as experiências dos outros não se aplicam em nós e, tomando em conta que a comunicação é sempre um processo tentativo cuja eficácia, muitas vezes, se encontra nos espaços extra-linguísticos, não nos espantámos com o estranhamento de Cristina perante a realidade de que a sua irmã lhe falava.

Por mais que dele se fale é impossível fazer do sentir de uma pessoa o de outra. Por isso, por sua vez, diferentemente da sua irmã que por causa dos maridos espirituais estava à beira de perder o namorado, ela, porque quase noiva, quando o seu marido espiritual começou a reivindicá-la, viu o seu noivado transformar-se numa grande miragem.

Narra ela o seguinte: “Eu felicíssima, já atrás dos convites, o meu noivo marcou uma reunião comigo e com os pais, para os preparativos do casamento. Saí da escola muito empolgada, era uma quarta-feira, noite fria, tendo chegado às 19 horas ao encontro na casa do Dilson. Ouvi vozes, mas como o pai do Dilson, todos os dias após o jantar, tomava um vinho e falava em voz alta, achei normal; sentei-me na copa e, quando prestei atenção, ouvi: – Dilson, não, não, não, não! Você não vai desgraçar a sua vida com aquela mulher feia, logo daquela família, há, há, há, há…”. Os impactos da situação gerada pelos maridos espirituais são desoladores.

Segundo as palavras da vítima Cristina, “a minha irmã namorava na nossa casa, porque o meu cunhado ia ter com ela, mas eu caí de noiva para ‘pita’. Namorávamos às escondidas. Passou um ano até que finalmente conseguiu dizer que tinha que sair da vida dele, que os seus pais nunca iam aceitar de novo a nossa relação, e que eu nunca teria filhos por causa do meu marido espiritual”.

De acordo com Cristina, “quem olha para mim, não pode acreditar nem sequer pode imaginar, muito menos pensar que tenho um marido espiritual. É um segredo difícil de revelar, pois todo o mundo culpa todo o mundo. Mas a verdade é que o africano é complicado. O africano usa muito a medicina tradicional em busca de riqueza e nós os filhos acabamos por pagar um preço muito alto”.

*Alguns nomes são fictícios

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