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Há mais pessoas “esclarecidas” a cometer violações domésticas

Há mais pessoas “esclarecidas” a cometer violações domésticas

Em 1996, bem antes da aprovação da actual Lei da Violência Doméstica Contra a Mulher, o que só veio a acontecer em 2009, um caso grave de irascibilidade revoltou os moradores do bairro Polana Caniço, quando uma mulher foi espancada até a morte pelo seu esposo. Essa descomunal situação fez com que alguns residentes daquele bairro, saturados da onda de violações, criassem no mesmo ano a Associação para as Vítimas de Violência Doméstica, actualmente composta por cerca de 500 membros. Hoje, passadas mais de duas décadas após a sua implantação, a agremiação diz-se preocupada com o facto de a violação doméstica estar a ser cometida de forma sistemática por pessoas com um elevado nível de educação, ou seja, pessoas “esclarecidas” nessa matéria. Em conversa com @Verdade, a fundadora e actual presidente, Madalena Domingos, desabafa e mostra- -se indignada com os casos que lhe são reportados diariamente e acusa as entidades que intervêm nos processos de se terem esquecido de que existe um prazo estabelecido por lei para a sua resolução.

@Verdade (@V) – Quando e como surge a Associação para as Vítima de Violência Doméstica?

Madalena Domingos (MD) – Oficialmente, a associação surge em 1999, ano em que foi registada, mas foi em 1996 que nós começámos com os nossos trabalhos. A ideia surgiu aquando de um episódio ocorrido em 1996 em que um senhor espancou até a morte a sua esposa. Na altura, houve muita revolta dos residentes daquele bairro (Polana Caniço) porque eram muitos os casos de violência doméstica. Diante dessa situação, procurei um grupo de pessoas para que fôssemos conversar com a líder do bairro da Polana Caniço para resolvermos aquela situação. Foi com esse grupo de pessoas que se fundou a associação. O nome da associação deveu-se essencialmente ao facto de a ideia ter partido de um caso de uma pessoa que perdeu a vida vítima da violência doméstica.

(@V) – Qual era o vosso objectivo?

(MD) – O que nós queríamos era elevar o estatuto social da mulher através da aposta na sua formação profissional. Sabemos que naquela altura, e até hoje, muitas mulheres enfrenta(va)m dificuldades para conseguir singrar no mercado de trabalho. Isso faz com que elas sejam dependentes dos seus maridos, o que, por sua vez, lhes coloca numa situação de vulnerabilidade a diferentes tipos de violência doméstica. O que estamos a tentar dizer é que se uma mulher tem emprego, por exemplo, e no final do mês recebe o seu salário estará, de certa forma, a diminuir as possibilidades de ser vítima de violência económica ou então a reduzir os seus efeitos.

(@V) – Olhando para esses objectivos que nortearam o vosso surgimento, que balanço faz da vossa actividade?

(MD) – Um dos ganhos que nós registamos é que as mulheres que nós formamos, até hoje, estão a trabalhar, então a partir daí podemos falar de resultados positivos. Sabemos que há mulheres, por nós formadas, que hoje trabalham em restaurantes e hotéis e isso é um grande ganho.

(@V) – Está a falar de quantas pessoas já formadas e em que áreas?

(MD) – Na verdade as formações pararam há algum tempo devido a problemas financeiros. Mas, por exemplo, o último grupo formado (em culinária e corte e costura) foi de cerca de 40 mulheres, isso em 2005/6.

(@V) – Existem outras áreas de formação?

(MD) – Sim, por exemplo, formámos também líderes comunitários porque a dada altura apercebemo-nos de que era importante envolver as lideranças locais nesse trabalho. Eles são líderes de opinião, as suas recomendações são facilmente acatadas pela população. Quando são os membros da associação a falar a mensagem não é acatada com a mesma flexibilidade. Para além de que, em caso de necessidade, as pessoas recorrem sempre aos seus líderes.

(@V) – De que bairro são esses líderes?

(MD) – São 19 chefes de quarteirões, todos do bairro Polana Caniço e o projecto está a ter um bom impacto.

(@V) – O que a associação faz no dia-a-dia?

(MD) – A associação está envolvida nas componentes de atendimento, aconselhamento e encaminhamento dos casos de violência doméstica que chegam. Fazemos o encaminhamento porque não podemos atender as pessoas e ficar por aí. Temos de seguir a história até o veredicto final, ou seja, até ao seu julgamento, se for o caso.

(@V) – Qual é o ponto focal da vossa actuação?

(MD) – O nosso ponto focal é o atendimento e acompanhamento integral dos casos que nos chegam. Acompanhamos a pessoa na ida ao centro de saúde e à esquadra. Há casos em que a pessoa tem de ir para a medicina legal, mas muitos nem sequer sabem que existe. Tudo isso permite-nos fazer um bom relatório para que o juiz tome uma decisão justa.

(@V) – Qual é a média de casos recebidos?

(MD) – O fluxo varia de acordo com a época do ano. Na quadra festiva o número de casos tende a aumentar chegando a atingir 10 ou mais por dia, mas noutras épocas podemos falar de dois ou três.

(@V) – A associação surge bem antes da aprovação da “famosa” Lei 9/09 de 2009. Como era a situação antes disso?

(MD) – Posso dizer que antes dessa lei vivia-se um verdadeiro caos no bairro. As agressões eram muito mais frequentes. Agora as coisas estão a mudar. As pessoas estão a ganhar consciência de que afinal é possível resolver os problemas sem recorrer à violência sejam eles quais forem.

(@V) – Isso é fruto da lei ou das actividades de consciencialização que ocorrem a vários níveis?

(MD) – Diria que ambos têm a sua influência. Veja que um dos problemas que enfrentámos logo no primeiro ano após a aprovação dessa lei foi a sua má interpretação. Muitos pensavam que a lei era somente para proteger as mulheres, o que não é verdade. Felizmente, essa consciência está a ser deixada para trás, as pessoas aos pouco estão a aperceber-se de que afinal a lei é para todos. Outra coisa que resulta da existência da lei é que as pessoas a cada dia vão ganhado consciência dos diferentes tipos de violência.

Algumas pessoas já sabem, por exemplo, que só de chamar nomes a alguém estão a cometer violência contra ela e podem ser penalizadas. E um dos aspectos muito positivos nesta legislação é que qualquer pessoa pode denunciar. Se alguém vê os seus vizinhos a agredirem-se pode muito bem, mesmo sem o conhecimento ou consentimento da vítima, ir denunciar. E como se trata de um crime público, por vezes nem é necessária a denúncia. Basta as autoridades tomarem conhecimento do caso podem e devem tomar medidas.

(@V) – Disse que as pessoas estão a ganhar consciência de que a lei não é só para mulheres. Tem recebido caso de homens vítimas de violência doméstica?

(MD) – Sim, mas o número é muito reduzido. Há ainda muito preconceito por parte da sociedade em relação aos homens que são agredidos pelas esposas. São tidos como fracos, entre outros estereótipos que giram em volta disso, mas nós tentamos encorajá-los a denunciar. Na verdade, os primeiros homens que apareceram na associação a apresentarem uma denúncia foram recebidos com uma certa estranheza. Para nós era uma coisa anormal, mas com o tempo fomos percebendo que afinal não há nenhuma anormalidade, direitos iguais impõem respeito mútuo. Nós tentamos sempre encorajar também as vítimas a denunciar os abusos sexuais.

Muitas vezes quando a violação ocorre entre membros da mesma família há uma tendência de esconder, ou então, resolver em família. Mas essa suposta solução familiar muitas vezes é movida por um sentimento de vergonha. Não querem expor as pessoas e isso nalguns casos resulta numa vida insegura por parte da vítima. Então nós encorajamos as pessoas a denunciar sempre. No bairro onde actuamos a violações sexuais são muitos frequentes.

(@V) – Com que frequência ocorrem os casos? Há estatísticas?

(MD) – Não temos os dados esquematizados mas os casos são muitos.

(@V) – Tem-se a impressão de que as mulheres são as maiores vítimas. Qual é o tipo de violência mais frequente?

(MD) – Realmente, a avaliar pelo número de casos que temos recebido, pode-se dizer que essa percepção é real, mas deve-se incluir também as crianças que sofrem mais que as mulheres. As mulheres jovens casadas com idade até os 45 anos e as crianças são as que mais casos apresentam. Há muitos casos de violência patrimonial em que os maridos, por exemplo, por já não quererem viver maritalmente vendem a casa sem o conhecimento ou consentimento da esposa. Mas temos em maior número ainda a violência física.

(@V) – E qual é a vossa prioridade?

(MD) – Todas as violações são preocupantes. Entretanto, há uma situação muito mais preocupante que é a seguinte: muitas vezes tem-se a impressão de que violência é praticada pelas classes mais desfavorecidas ou pobres, que não tiveram acesso à educação formal. Mas nós, e digo isso com muita tristeza, temos recebido casos de pessoas “esclarecidas” que, entretanto, enveredam pelo caminho da violência para resolver as suas diferenças domésticas. E isso preocupa-nos. Temos, inclusive, estudos que nos indicam que há muito mais violência entre pessoas que já são letradas comparativamente às outras. Temos casos de alguns médicos, polícias que são a priori conhecedores da matéria a fazerem isso. Esses sabem que não podem usar a violência para resolver os problemas, mas recorrem a esse método.

(@V) – Perante esse cenário, que medidas podem ser tomadas para pôr cobro à situação?

(MD) – Nós pensamos que esses são casos de pessoas que herdaram a violência das suas experiências de infância. É preciso lembrar que as nossas atitudes, ou seja, dos pais, têm grande influência no comportamento dos filhos no futuro. Se eu bato no meu filho, por exemplo, ou então pratico violência contra o meu marido na presença do meu filho, há grande probabilidade de ele se tornar um adulto violento porque ele pensa que é dessa maneira que se vive. E esse comportamento violento desse filho começa a manifestar-se ainda na tenra idade. Ele torna-se agressivo para com os colegas na escola, amigos do bairro, etc. Num lar onde se vive em diálogo, os filhos, ao atingir a fase adulta, terão a mesma tendência.

(@V) – Mas, então, como quebrar esse ciclo de violência?

(MD) – A violência deixa traumas “incuráveis.” Os psicólogos minimizam, mas não curam os seus efeitos. E outra coisa: quantas pessoas são assistidas por um psicólogo após sofrerem uma violação? A quebra desse ciclo só é possível com mais trabalho de consciencialização e vigilância. Nalguns caso é possível identificar marcas do comportamento violento num indivíduo ainda criança e aí pode-se fazer um trabalho com vista a corrigi-lo.

(@V) – Em que bairros a associação actua?

(MD) – A nossa sede está no bairro Polana Caniço, na periferia da cidade de Maputo, mas trabalhamos também no bairro Luís Cabral. Por enquanto só actuamos nesse dois locais. (@V) – Há algum plano de alargamento do espaço de actuação? (MD) – Sim, pretendemos, nos próximos tempos, alargar a nossa acção para o bairro de Zimpeto. Com o tempo chegaremos a mais locais.

(@V) – Como é que é feita a escolha dos bairros?

(MD) – Há bairros em que, na nossa opinião, há pouca informação sobre essa matéria e as pessoas pura e simplesmente não sabem que existe uma lei que protege as vítimas de violência doméstica. Noutros, a informação é muito deficitária, sabem mas fazem uma má interpretação tal como alguns homens afirmam que essa lei é das mulheres e só veio para lhes prejudicar. Então nós usamos isso como base para efectuar a escolha.

(@V) – E qual tem sido o papel da associação em relação a essa falta de informação?

(MD) – Temos feito palestras nos bairros, divulgamos a lei e os seus benefícios.

(@V) – Comemorou-se recentemente o Dia do Idoso. O que se tem feito em relação a essa grupo etário?

(MD) – Nas palestras quando falamos da pessoa idosa a principal mensagem, para os mais novos, tem sido a de que nós também estamos a caminho da terceira idade e é importante não fazer com eles o que não queremos que nos façam no futuro. Os idosos são a nossa biblioteca. E se queremos uma sociedade justa temos de os respeitar.

(@V) – Qual é o papel das escolas na prevenção da violência?

(MD) – Na verdade tem de haver uma preocupação maior nas escolas. Já tivemos algumas escolas que se preocuparam muito nessa área, como é o caso da Escola Secundária Sansão Muthemba, da Polana Caniço, na qual formámos jovens nessa matéria. Aliás, essa foi uma das razões pelas quais o Secretário das Nações Unidas, Ban Ki-moon, visitou aquela instituição quando veio a Moçambique. Nessa escola já há um espaço de acolhimento, ou seja, são os alunos a receber os colegas.

(@V) – Fora a Escola Secundária Sansão Muthemba, sente que os estabelecimentos de ensino se têm empenhado nesse aspecto?

(MD) – Temos conhecimento de um projecto de uma formação de alunos activistas na área de violência doméstica. Achamos que muitas escolas serão abrangidas, pelo menos a Direcção da Educação da Cidade de Maputo mostra alguma preocupação em relação a isso. O que nós lamentamos é que temos a lei mas a sua implementação ainda é deficiente. Eu conheço um caso que está pendente deste Janeiro, mas sabemos que os casos de violência doméstica devem ser céleres porque um longo tempo de espera apenas serve para apagar os vestígios do crime. Nesse tal caso, quando se marcou o primeiro julgamento em Janeiro, uma das partes não se fez presente, o que fez com que fosse remarcado para Março, mas até hoje nada aconteceu.

(@V) – Que tipo de pressão se pode fazer para mudar essa situação?

(MD) – Nós estamos agora a preparar um programa de visitas a algumas entidades governamentais que intervêm nos processos de violência doméstica, tal é o caso dos ministérios de Justiça, da Saúde, do Interior assim como os tribunais. E esperamos que nessas visitas este assunto seja fortemente discutido. Acho que essas entidades esqueceram-se de que existe um prazo estabelecido por lei para a resolução de um caso de violência doméstica.

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