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Gwaza Muthini: um mito corrompido

Gwaza Muthini: um mito corrompido

Os tempos de Massinguitane já lá se foram. Para trás ficaram os Magaia e os Mahazule e o parente de Massinguitane (promovido a régulo), Fernando Mabjaia. Lembramo-nos dela naquele dia desrespeitado. Porque se você quer falar com os espíritos, faça-o no limiar da aurora, quando ainda se podem encontrar as gotas do orvalho. Eles (os espíritos), gostam de ser adorados a essa hora, não à hora que você quer.

A primeira paulada ao desgraçado cabrito foi desferida na cabeça quando o sol já queimava os corpos que para ali acorreram com o fim assistir a mais uma celebração do Gwaza Muthini. O régulo Mabjaia, para além de estar atrasado no início da cerimónia, vinha trajado a rigor, com o uniforme oficial atribuído pelo Governo, deixando os galões à vista, que assustarão, naturalmente, os Magaias e todos os guerreiros que tombaram na grande batalha de Marracuene. O régulo Magaia trazia ainda uma capulana por sobre as calças, o que, mesmo assim, não poderá alegrar nem os Mahazule, nem os Magaias, nem os guerreiros tombados na batalha de sangue.

Outrossim, pensamos que os guerreiros sacrificados na Grande Batalha de Marracuene, vêm antes dos heróis nacionais proclamados na senda da luta pela libertação nacional. Sendo assim, como é que o régulo Magaia dá primazia a estes? Magaia iniciou o acto de homenagem aos perecidos na “Praça dos Heróis”, depois é que foi fazer a cerimónia de Ku Phahla, ainda por cima tarde, vituperando todos os princípios estabelecidos pelos nossos antepassados.

Reverberando o sol

Ainda faltavam quinze minutos para as cinco da manhã e nós já estávamos em Marracuene. O sol espreguiçava-se ao longe, abrindo alas para expor toda a sua exuberância, dominando tudo. A vila também se preparava para um dia de imenso frenesim. O régulo Mabjaia idem e aspas, vinha a caminho, com os seus séquitos, dentro de uma personalidade forjada pelos espíritos. Há alguma gente junto à Praça dos Heróis, onde o régulo irá prestar homenagem àqueles que verteram o seu sangue pela libertação da pátria e àqueles que, em tempos idos, lutaram para defender a nossa terra, que estava a ser invadida pelos colonialistas portugueses.

O sol ergue-se e já é manhã plena. As ruas são invadidas por vendedores que trazem uma gama de produtos à conquista de potenciais compradores que escassearão. As barracas para as bebidas também estão aí, com as suas habituais propostas que vão sempre degenerar em bebedeiras desenfreadas. Cheira a carne de frango, a peixe e sentem-se outros aromas que, apesar das censuráveis condições de higiene, nos vão criar água na boca.

Agora já ninguém vai parar o sol. Está livre, soberbo. Queima a terra e os homens e os simulados guerreiros que vão dançar com os corpos descobertos, reverberando o grande astro impiedoso. Marracuene está escancarada, recebendo todos aqueles que a querem e desejam ver a festa do Gwaza Muthini e o Festival da Marrabenta, que foi amplamente divulgado. Também querem ver o mano “Guebas”, falando com aquele vigor que lhe é característico: “Temos a sabedoria, devemos ser como as águias que voam alto, temos que voar alto como as águias. Nós não somos galinhas que ficam na capoeira, temos que ter auto-estima. A pobreza não é uma fatalidade, temos que vencer”.

É o mano “Guebas” a falar e, quando o chefe fala, temos que prestar atenção. Quem somos nós para não o fazer? Mas há aqueles que ouviam o Presidente da República com um recipiente de canhu na mão, tragando um golo de vez em quando para aclarar as ideias e ouvir bem o “boss” de todos nós. Olhei para trás e vi alguém que bebia a gargalo. Ele também me viu. Piscou-me o olho perguntando-me com um gesto se eu também queria. Sorri e respondi-lhe, também com um sinal, que ficava para depois.

Está a falar o mano “Guebas” e, eu, de vez em quando, olho para o abastado Rio Incomati, lá em baixo, cujas águas, serpenteando, também reverberam o sol, mostrando-nos toda aquela magnitude paisagística arrebatadora. Do outro lado está a praia da Macaneta, para onde acorrem, todos os dias, vários pescadores à busaca do peixe que depois será trazido para a terra, onde será vendido para alimentar os homens e as mulheres e os velhos e as crianças. É assim todos os dias. Há um vaivém incessante, com o beneplácito do Incomati.

E mano “Guebas” já está a tecer as últimas palavras. São os últimos “vivas”. Olho para trás e o “brother” que traz a garrafa de canhu, pisca-me um olho vitorioso, do tipo, “o Chefe já vai embora, agora vamos lhe dar a valer, vamos ao regabofe”. Sorrio para ele, como se já nos conhecêssemos à longa data.

Mano “Guebas” já foi, vai ao palácio da administradora do distrito onde se vai deliciar com canhu e ouvir o extraordinário Alexandre Mazuze a cantar. Para trás fica a festa popular, num momento em que as pessoas se vão tornando num verdadeiro mar, um oceano. Querem ver de perto o Antoninho Maengane, o Manjacaziano, o Xidiminguane, o Ernesto Ximanganine, o Djambo. Querem ouvir música ao vivo. Fazer parte do espectáculo. Festejar.

Há muita gente em Marracuene. A oferta de produtos é imensa, contra uma procura quase inexistente. Não há dinheiro! Todos querem beber e comer, mas não há dinheiro. Mesmo o canhu, que é barato como quem diz, está sem muita concorrência, para além de que, segundo os provadores experimentados pelas andanças, não tem qualidade. Mesmo assim, continuará com as suas funções afrodisíacas.

Bebe, brother, bebe! E as goelas estão prontas para isso.

A música depois vai fechar tudo, numa festa que aconteceu sem o hipopótamo. Mas está tudo bem.

Até mais!

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