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Governo faz-se de surdo-mudo em relação às queixas da UNAC

Governo faz-se de surdo-mudo em relação às queixas da UNAC

A União Nacional de Camponeses (UNAC) realizou, entre 01 e 02 de Outubro corrente, em Maputo, a III Conferência Internacional Camponesa sobre a Terra. A tónica dominante foram a usurpação da terra, a rejeição das sementes transgénicas, a defesa de um negócio favorável aos camponeses, a falta de uma legislação que proteja as sementes locais, o deficiente acesso ao crédito e as dificuldades de acesso a mercados para a venda de excedentes agrícolas. São problemas do costume, conhecidos pelos gestores do Estado, mas não se vislumbram soluções com vista a ultrapassá-los.

Entre o Governo e os mais de 250 camponeses presentes no evento em alusão houve um debate de surdos-mudos na medida em que não houve respostas concretas relativamente às inquietações dos agricultores. No que diz respeito à usurpação da terra, eles consideram que a implantação de mega-projectos tem um impacto directo e negativo no seu dia-a-dia, em virtude de o Executivo estar a conceder grandes extensões de terra a investidores estrangeiros sem realizar consultas comunitárias, o que, também, constitui uma violação grosseira da Lei de Terra em vigor em Moçambique.

Nada foi dito sobre como este problema será ultrapassado, sobretudo para preservar, nas acções e no papel, a ideia segundo a qual a agricultura é a base do desenvolvimento do país. Aliás, no último domingo (05), durante o lançamento da campanha agrária 2014/2015, o Presidente da República, Armando Guebuza, apelou aos agricultores para produzirem mais com vista a desenvolverem o país, enfatizando que “a agricultura é e continuará a ser a base do desenvolvimento social e económico (…). O sector emprega 80 porcento da força do trabalho e que contribui com 25 porcento do Produto Interno Bruto e é a mais importante fonte de matéria-prima para a nossa economia”.

Entretanto, no debate, João Mosca, economista moçambicano, considerou que a legislação proíbe a venda da terra, mas a realidade prova o contrário. De acordo com ele, “a lei deixa de ser boa quando não se cumpre. Sabemos de muitos casos que o próprio Estado não cumpre, ou não actua quando os agentes económicos não cumprem a lei”. “Ter uma lei que não se respeita, nem se faz cumprir significa que aquela protecção que a lei poderia dar aos produtores começa a ser muito fraca”, disse Mosca, defendendo que “a máquina está capturada pelos interesses… O Estado está a defender o capital e não os camponeses.”

Costa Estêvão, presidente da UNAC em Nampula e representante da região norte na conferência, disse que “a nossa produção vai baixar, porque estamos a ficar sem terra” e muitos camponeses serão “empurrados” para a fome e a pobreza. Os praticantes da arte de cultivar a terra lembram que os agricultores “são responsáveis pela produção de mais de 90 porcento dos alimentos de Moçambique representam cerca de 81 porcento da população economicamente activa”, mas por todo o território moçambicano “é evidente a usurpação de terras, ao mesmo tempo que os investimentos entram por via de alianças com a elite político- económica do país, contornando a Lei de Terra”.

Alguns casos de expropriação

Costa Estêvão denunciou a empresa Agro-alfa, no distrito de Monapo, na província de Nampula, que expropriou 650 hectares da comunidade de Nacololo para a produção de soja. Por sua vez, a Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU) em Nampula apurou que a mesma empresa está a enfrentar uma forte resistência da comunidade de Vida Nova, aldeia de Meruto, onde tenta usurpar cerca de 1746 hectares, uma área de duas antigas machambas coloniais ocupadas pela comunidade após a independência nacional em 1975, à semelhança dos 650 hectares do Bloco de Nacololo.

Por um lado, Guebuza entende que empreendimentos tais como os de carvão, hidrocarbonetos e produção florestal atraem novos investimentos, concentram centenas de trabalhadores e fazem crescer a economia. Por outro, para Costa, os megaprojectos podem até garantir emprego à população, mas “o camponês sem a terra fica triste”.

O caso da Mozaco

De acordo com o interlocutor a que nos referimos acima, em 2013, a firma Mozambique Agricultural Corporation (Mozaco), uma empresa criada em 2012, através de uma parceria entre o grupo moçambicano João Ferreira dos Santos (JFS) e o grupo português Rioforte (sociedade de investimentos do Grupo Espírito Santo) desalojou cerca de 1.000 camponeses das suas terras, onde produziam diversas culturas para a sua sobrevivência.

“A Rioforte possui cerca de 168 mil hactares de terra no Brasil e Paraguai destinados à agro-pecuária. Em Moçambique, a Mozaco obteve os polémicos 2.000 hactares na Zona III do ProSAVANA, no distrito de Malema, comunidade de Rucha, aldeia de Natuto, com o objectivo de expansão até os 20.000 hectares destinados à produção de soja. (…) Prevê-se que sejam usurpadas terras de mais de 4.500 famílias pela Mozaco”, indica a ADECRU.

“ProSAVANA” financia “Matharia”

De acordo com a mesma organização, a Matharia Empreendimentos, uma empresa financiada pelo ProSAVANA, através do Fundo da Iniciativa de Desenvolvimento do ProSAVANA, usurpou terras de mais de 200 famílias camponesas no distrito de Ribaué, no posto administrativo de Iapala, comunidade de Matharya, para dar lugar à produção de soja. Sobre este assunto, Costa disse que existe um novo projecto designado Desenvolvimento do Vale do Rio Lúrio que será implementado nas províncias do Niassa, de Cabo Delgado e Nampula com maior enfoque neste último ponto do país, onde vai ter lugar em quatro distritos.

“Esse projecto foi apresentado a 28 de Setembro e já prevê no seu plano empurrar camponeses das suas terras para terras incertas ou então inférteis. O Governo promete emprego aos nativos em todo o sítio por onde passa, mas quando visitamos as empresas não encontramos nativos a trabalharem. Todos os dias terras estão a ser ocupadas, recursos estão a ser extraídos e exportados e, consequentemente, os camponeses estão a ficar cada vez mais pobres e prejudicados. Que tipo de desenvolvimento é este?”, indagou Costa.

FAO defende auscultação comunitária

No que a adubos diz respeito, Rabeca Mabui, vice-presidente da UNAC a nível da província de Maputo, disse, em representação da zona sul de Moçambique, que a produção da banana, na Moamba, por exemplo, está a forçar os camponeses “a recorrerem a outras zonas devido a produtos químicos. Eles não têm condições para inverter o cenário”.

No evento participaram, para além da UNAC e do Governo, países tais como Venezuela, Zimbabwe, Angola e Brasil. No debate, um dos temas aflorados foi a questão das reformas do sector agrícola baseadas na facilitação dos meios de produção e produtividade em cada país. Do lado moçambicano, o Executivo não deu respostas óbvias e concretas em relação a este assunto.

A representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) em Moçambique, Carla Cuambe, falou da questão da tributação como uma forma de os países evitarem conflitos de terras. Ela disse que cada nação tem o seu quadro legal e as directrizes recomendadas por esta organização sobre o assunto não são vinculativas. O processo de consulta é sempre fundamental para a execução de qualquer programa.

A agricultura é marginalizada

Segundo Rabeca Mabui, os candidatos a Presidente da República priorizam nos seus manifestos políticos a agricultura em grande escala, apesar de ela ser prejudicial. “Nós camponeses é que alimentamos este país e não as grandes empresas que produzem culturas de rendimento para a exportação, além de usurparem as nossas terras, fazendo aumentar a incidência da pobreza nas comunidades, mas esses candidatos à Presidência da República ignoram estes factos”.

Num outro desenvolvimento, ela afirmou que “todos os candidatos dizem que querem mecanizar a agricultura, criar grandes machambas, mas esquecem-se de que a mecanização do agro-negócio não gera empregos, como geraria uma aposta na agricultura camponesa por via do acesso ao crédito, sementes adaptadas às mudanças climáticas, serviços públicos de extensão mais abrangentes, apoio à comercialização e agro-processamento”. Rabeca, que também se queixou de usurpação de terras nas zonas costeiras das províncias de Gaza, Maputo e Inhambane, questiona: a quem “beneficia a agricultura mecanizada?”.

Continua difícil ter dinheiro emprestado

Em relação às dificuldades de acesso ao crédito e falta de mercados, o membro do conselho de administração da UNAC, Rita Rizuane, disse que os bancos não dão crédito aos camponeses porque alegam que “a agricultura é uma actividade de risco”. Ela queixou-se, igualmente, da falta de mercados para a comercialização dos produtos. Por isso, Rita pede ao Governo “insumos agrícolas e alocação de extensionistas”.

Relatou igualmente o sofrimentos dos camponeses de Tete e Manica por causa da poluição do ar e da água, o que leva a que não se beba o precioso líquido por estar poluído, e nem se pode deixar alimentos ao ar livre. Refira-se que a III Conferência da UNCA visava aprofundar o debate público e democrático sobre os principais desafios estruturais do desempenho do sector agrário, bem como a urgência de uma reforma agrária baseada na facilitação e dinamização dos meios de produção e produtividade no país e de refreio, com urgência, do fenómeno de usurpação da terra.

Zambézia na mira de investidores

Helena Terra, vice-presidente da UNAC na Zambézia e representante dos camponeses da região centro do país, no evento a que no referimos, relatou que os camponeses daquela região do país estão a ser afastados das suas terras sem a devida consulta comunitária. No distrito de Namaroi e Ile foram ocupados pela Portucel cerca de 180.000 hectares para o plantio de eucalipto e pinheiro.

Nessas áreas os camponeses produziam alimentos. A referida companhia portuguesa, autorizada a 19 de Dezembro de 2011, através da resolução nº 71/2011, que concede a essa sociedade o Direito de Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT), numa área de 182.886 hectares na província de Manica para a prática de silvicultura, adquiriu igualmente, em 2011, na província da Zambézia, terras para a plantação de eucaliptos numa extensão de cerca de 173.000 hectares.

“Aglutinando as duas concessões, a Portucel detém em Moçambique uma extensão de terra de cerca de 380.000 hectares, a maior do país. Esta empresa conta com um financiamento da International Finance Corporation, o braço financeiro corporativo do Banco Mundial, que em Outubro de 2013 concedeu à empresa um empréstimo de 2.3 milhões de dólares para o plantio de eucaliptos, prevendo-se o incremento do montante com a implementação faseada do investimento”, disse acrescentando que estima que os impactos negativos resultantes das plantações florestais daquela empresa poderão atingir mais de 50.000 famílias, e incluem a escassez de água e a extinção de aldeias ou comunidades na Zambézia e em Manica.

A falta de políticas

Perante esta situação, os agricultores presentes na conferência questionaram as políticas de desenvolvimento em vigor do país e alegaram que as mesmas culminam com a expulsão de camponeses das suas terras para dar lugar a investimentos estrangeiros que não ajudam a quem depende da terra para sobreviver. “Apenas semeiam cada vez mais conflitos de terras”.

Os programas do Corredor de Nacala

O Governo falou dos programas que o país tem vindo a desenvolver como forma de criar uma agricultura inclusiva dinâmica e sustentável. Debruçou-se sobre a estratégia de desenvolvimento no Corredor de Nacala, um programa que integra as províncias de Nampula, Niassa, Cabo Delegado, Tete e sete distritos do norte da província da Zambézia, nomeadamente Ile, Namaroi, Gúruè, Alto-Molocué, Gilé, Milange e Lugela.

“É um projecto que é o resultado de um memorando de entendimento entre o Governo de Moçambique e do Japão, este último representado pela JICA, cujo objectivo é formular estratégias de desenvolvimento regional de modo a atrair investimentos na região do corredor de Nacala”, realçou Dinis Lissave, representante do Governo.

Segundo o Executivo, espera-se, com o referido programa, supostamente implementado em harmonia com os nativos, um desenvolvimento que possa livrar as populações da pobreza. Porém, a UNAC não vê este programa como sendo um factor positivo para os camponeses, mas sim para os próprios dirigentes do Governo. Para este organismo, trata-se de um programa que visa expulsar os agricultores nativos das suas terras para acomodar os interesses de investidores estrangeiros.

Dirigentes ameaçam agricultores

“Nós não estamos contra o desenvolvimento que o nosso Governo tanto apregoa, mas a nossa preocupação é que temos vindo a verificar a expulsão de muitos agricultores das suas terras para dar lugar aos projectos de cidadãos estrangeiros. Portanto, muitos agricultores têm vindo a perder as suas terras em benefício de estrangeiros e sem nenhuma compensação. E o que está acontecer é que o Governo não nos defende e o pior é que sofremos ameaças até por parte dos directores distritais”, afirmou Halifa Aíde, vice-presidente da UNAC na província do Niassa.

Ela acrescentou que naquela parcela do país mais de 50 famílias não puderam evitar que as suas terras fossem tomadas por estrangeiros. Trata-se de agricultores da comunidade de Lussanhando que viram as suas terras serem tomadas por uma empresa de florestamento. Foi uma acção desencadeada em conluio com o régulo local, que cedeu por temer represálias por parte director distrital.

“Muitos camponeses estão a ser expulsos das suas terras para acomodar os estrangeiros o pior é que o Governo não nos defende. Somos ameaçados pelas autoridades governamentais (…) e ninguém nos ouve. Se o Governo acha que nós camponeses não temos o direito de viver nestas terra que nos diga para irmos a Tanzânia ou Malawi pedir terras aos nosso irmãos e vivermos lá, já que este país não nos pertence”, disse.

“Os projectos desenvolvidos pelo Governo não têm impacto positivo nos camponeses, uma vez que a Lei da Terra traçada não se traduz nas aspirações dos camponeses, na medida em que, segundo a lei, um camponês que tem mais de cinco anos numa determinada terra já não pode ser afastado dela compulsivamente, porém, não é o que acontece na realidade porque o Governo criou esta lei mas não a cumpre. Portanto, é lamentável para nós os camponeses viver numa situação de insegurança”, disse João David, representante da UNAC na província da Zambézia.

“Não” às sementes híbridas

De há tempos a esta parte, as autoridades da agricultura têm estado a promover o uso das chamadas semente? híbridas. Contudo, os camponeses apelam ao Governo para que crie uma legislação que proteja as sementes locais. “O Governo deve criar uma legislação e políticas que visem incentivar que os camponeses continuem a produzir, conservar e fazer a selecção de sementes locais”, defendeu Agostinho Bento, da UNAC, para quem as sementes locais “são melhores em qualidade.

São adaptáveis a algumas condições que não são aquelas em que o camponês moçambicano trabalha. As sementes híbridas são adaptáveis às regiões agro-ecológicas e precisam de muita água e produtos tóxicos”, e o agricultor não está em condições de adquiri-las nem tem moto-bombas para implementar uma agricultura de irrigação.

“A entrada no país de organismos geneticamente modificados que vão dar origem a sementes geneticamente modificadas constitui um perigo, não só para os camponeses, mas também para a saúde das pessoas, no geral e para a biodiversidade, porque elas são produzidas com o objectivo de combater os insectos”, explicou Agostinho Bento, acrescentando que, volvido algum tempo, os bichos apercebem-se de que as referidas sementes estão envenenadas e não as consomem.

“Estamos a desequilibrar a natureza” com os produtos químicos e os entendidos na matéria defendem que tais sementes podem, a longo prazo, constituir um problema de saúde. “Não posso avançar com precisão mas há indicações de que venham a provocar irritação no corpo e até cancros.”

Para Bento, ao introduzir sementes modificadas, o Governo moçambicano está, de forma grave, a violar os direitos seculares dos camponeses pois estes sempre reproduziram as espécies que os seus avós usaram conservando a sua qualidade”.

Carlos Santana, do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), explicou que há um conjunto de acções com vista a melhor implementação das sementes em alusão. As mudanças climáticas levam a que se adopte quer sementes melhoradas, quer sementes geneticamente modificadas, apesar dos seus inconvenientes.

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