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Geografia da sobrevivência

Geografia da sobrevivência

No dia que entra em vigor a fiscalização de instrumentos de medição no país, @Verdade ouviu vendedores e clientes e constatou que ninguém acredita no sucesso desta medida. Os consumidores, ainda assim, acham que é bem-vinda, mas guardam má memória de outras que foram mal sucedidas. Os vendedores, por seu turno, dizem que para que os preços sejam justos é preciso afastar “o senhor de uniforme azul” da partilha de lucros…

Quando o sol se põe, Delfina larga o emprego na Julius Nyerere e parte em direcção ao populoso bairro do Maxaquene. Na plástico leva o que sobrou da mesa dos patrões. “Não é grande coisa”, diz ao mesmo tempo que põe a mão esquerda nas ancas para falar com a nossa equipa de reportagem.

“Em casa dos patrões este pão não serve, mas na minha casa é um luxo”, confessa. O pão está meio seco, mas Delfina, de 42 anos de idade e mãe de quatro rapazes, sabe que na equação da sobrevivência há estômagos que não têm muito por onde escolher.

Da casa dos patrões levou um pão e duas cebolas. Portanto, falta-lhe um lata de arroz, meio quilograma de tomate e um de carapau para confeccionar a refeição para os seus filhos que, em casa, aguardam a chegada da mãe.

Devido ao magro orçamento familiar, Delfina não faz grandes compras. A refeição diária é gerida em função do que sobra em casa dos patrões e dos produtos que adquire todos os dias no mercado Janete, no centro da cidade de Maputo. Os produtos adquiridos dão-lhe vida, mas aumentam-lhe o stress.

A explicação é simples: “roubam- nos sempre no peso”.Nem a boa nova de que o Instituto Nacional de Normalização e Qualidade (INNOQ) inicia hoje, 1 de Junho, a fiscalização dos instrumentos de medição no mercado lhe devolve o sorriso.

Furibunda, justamente indignada, olha-nos muito séria e atira-nos: “Ah! Acha mesmo que será possível impedir que nos deixem de roubar? Lembra- se do peso do pão? Alguém pôs cobro!?” Referia-se a nossa interlocutora à polémica em torno do peso do pão.

Os panificadores e o consumidor nunca estiveram de acordo, com maior incidência para as donas de que casa que, de uma maneira geral, no concernente ao pão e outros produtos de primeira necessidade que as balanças tratam de ampliar o seu peso.

Efectivamente, o pão devia pesar 250 gramas, mas os panificadores afirmam que esse é o peso que a massa deve ter antes de entrar no forno. Uma situação diferente do que acontece nas outras partes do mundo. Mas não é só este o motivo que leva à descrença generalizada na medida do INNOQ.

Recorde-se que igualmente o Governo moçambicano e os panificadores nunca chegaram a consenso acerca do peso do pão, o qual, diga-se, apresenta pesos divergentes em todos os panificadores do país sendo que, de acordo com a legislação em vigor sobre a matéria, o pão usado como referência para venda ao público deveria pesar 250 gramas.

Ronda

@Verdade andou em tempo de ronda pelos mercados. Viu, ouviu e indagou clientes e vendedores. Nem uma só pessoa acredita no sucesso desta medida. Porquê? De resto, esta medida, mal sonante entre os vendedores, pode trazer uma alta de preços.

Se é verdade que eles roubam no peso não é menos verdade que hoje, volvidos 37 anos sem regulação, a geografia de sobrevivência foi construída fora desse prisma. Na balança mais próxima da honestidade 700 gramas pesam um quilograma.

Os clientes andam resignados. Já não se importam que lhes roubem no peso. Vivem na ilusão de que o mesmo é correcto. Preocupa, isso sim, a exorbitância dos preços. Regina e Graciete sabem, mas revelam impotência para discutir o peso duvidoso de alguns produtos.

“Ir ao mercado é procurar um sorriso que quase sempre termina em lágrimas”, diz Graciete, de 52 anos de idade, mãe de quatro filhos. Em frente de uma banca, ela queixa-se. “Não há medida que nos salve, a que vem também será derrotada”.

Resignada com a atitude dos vendedores, Graciete deixa-se seduzir por um punhado de mandioca. “Aqui pelo menos não há como roubar no peso”, diz, aludindo à forma como sempre foi e é comercializado este produto.

Uma e outra vez uma palavra mais ríspida, solta quando o roubo é tão evidente ou no caso em que o preço subiu mais do que as economias podem suportar… Por mais espantado que o leitor fique, a verdade é que estas palavras – e aliás perfeitamente compreensíveis – são proferidas por senhoras de todas as camadas sociais.

Como que escapam, sem querer, e lembram, ali, um grande cartaz onde ficam inscritos os sentimentos de revolta contra um estado de coisas que não pode nem se deve prolongar por mais tempo.

Motivo: nos mercados de Maputo os vendedores roubam no peso de forma descarada. As pessoas, ainda assim,continuam a adquirir os mesmos produtos porque não há outro remédio.

Contudo, Regina e Graciete recuperam o dinheiro que perdem no mercado num outro lugar. Ambas confeccionam refeições e vendem nas ruas da cidade de Maputo.

Embora vendam em pontos diferentes, a estratégia é a mesma: aumentar água no caril e diminuir o tamanho dos pedaços de peixe e carne. “Assim consigo tirar 12 pratos numa panela e recupero o que perco aqui”, diz.

O mesmo não acontece com Delfina, mas esta conta com o pouco de que os patrões não precisam e os 2000 meticais que aufere no fim de cada mês. Ainda assim, são pessoas como ela que mais são prejudicadas pelas balanças dos nossos mercados.

Efectivamente, vivem um dilema. O salário não é suficiente para fazerem um rancho que envolva grandes quantidades de comida.

As compras do @Verdade e o peso

A equipa de reportagem do @ Verdade, na sua rondas pelos mercados, adquiriu produtos de primeira necessidade. No Xipamanine, Janete, Xiquelene, Malanga e Zimpeto não encontrámos nenhuma dentro dos parâmetros normais de medição.

No Xipamine o quilograma de batatas que adquirimos não passava, afinal, de 800 gramas quando colocada na nossa balança. O peso da cebola, talvez devido ao seu menor volume, registou 700 gramas. Assim também aconteceu com o tomate.

Ou seja, o consumidor perde ao adquirir 800 gramas em três quilos de batata, cebola e tomate. A perda, diga-se, é significativa quanto maior for o número de compras do consumidor.

Uma cliente que pagou 175meticais por cinco quilogramas de batata, no momento em que @Verdade fazia as suas compras, perdeu 35 meticais. Na realidade levou quatro quilogramas.

No Janete o roubo é mais descarado e começa nos vendedores de mariscos e de carne. Porém, há outras formas para medir o produto. As senhoras sentadas no chão vendem tomate, alface, cebola e batata. Do outro lado oferecem camarão, frangos, peixe e carne de caça. Mas a balança que aqui circula foi muito bem afinada para levar o cliente na cantiga do peso.

Comprámos um quilograma de batata, mas quando colocámosna nossa balança para pesar qual não foi o nosso espanto quando verificámos que oproduto adquirido pesava apenas 700 gramas.

No Xiquelene e na Malanga rouba-se ao mesmo nível e sem o mínimo respeito pelo trabalhador. Encontrámos uma balança que oferece a possibilidade, ao vendedor, de impingir meio quilo de qualquer produto por um. Um truque que “funciona para clientes apressados e que adquirem grandes quantidades”, diz José Fumo, de 38 anos de idade.

@Verdade, por outro lado, constatou que os preços em alguns supermercados são mais baratos e o consumidor não é roubado no peso.

O que determina o preço

José Fumo vende no mercado da Malanga há 12 anos e tem uma explicação para o roubo no peso: “sobrevivência”. “Se vendêssemos pelo preço certo – o que acontece em poucos lugares – teríamos de deixar de perder dinheiro nos alfandegários”, conta Fumo que já deixou muito dinheiro no percurso da fronteira de Namaacha ao seu negócio na Malanga. “Temos de recuperar o dinheiro em algum sítio”, adianta, aludindo ao roubo na balança a favor do vendedor.

“Quando entrei nesta actividade, um grande momento de mudança na minha vida, transformou-se no pior pesadelo que podia imaginar. Despertei do sonho de ganhar dinheiro honestamente quando fui interpelado pelos agentes alfandegários. Os clientes merecem honestidade, mas isso só seria possível se não perdêssemos tanto nas mãos de quem engorda pelo facto de ostentar uma farda azul”.

A decepção de Fumo é partilhada por Mara Jaime, vendedora informal no mercado grossista do Zimpeto.“Não digo que os clientes não seriam aldrabados, mas acredito que sem aqueles senhores de uniforme azul os preços seriam mais baixos e as balanças sofreriam menos adulterações”.

Em Junho já se anunciava a solução

“Com vista a regular a comercialização de produtos que são submetidos a pesagem e/ ou medição para a sua transacção, no mercado moçambicano, o Conselho de Ministros aprovou na sua 16ª sessão ordinária realizada ontem”. Este é o trecho de um artigo publicado no Canal de Moçambique, na sua edição de dois de Julho de 2008, anunciando a boa nova.

Na altura ainda faltava submeter esta Lei à Assembleia da República para a sua apreciação e aprovação. Efectivamente, a medida que entra hoje em vigor no país possui, pela primeira vez em 37 anos, legislação que regula pesos e medidas. “Em Moçambique nunca houve legislação que regulasse as actividades de metrologia, o que lesa os consumidores”, referiu Luís Covane, na altura porta-voz do Governo.

Alfredo Sitoe, director do Instituto Nacional de Normalização e Qualidade (INNOQ), apontou, a título de exemplo, que aquela instituição possui 441 normas técnicas e serviços de certificação em sistemas de gestão, para além de serviços de verificação e calibração nas áreas dimensional, eléctrica, massa, pressão, temperatura e volume.

Sitoe reconheceu, porém, que o enraizamento da cultura metrológica não é tarefa fácil, pois requer acções duradouras de longo prazo e depende não apenas de treinamento especializado, mas de uma ampla difusão dos valores da qualidade em toda a sociedade.

Enquanto isso, o vice-presidente da Confederação das Associações Económicas de Moçambique (CTA), Quessanias Matsombe, entende que para Moçambique se tornar numa economia competitiva é necessário que o país cultive as boas práticas de metrologia, incutindo na comunidade empresarial a cultura de qualidade e cumprimento da lei de metrologia em vigor no país.

Em suma: os dados estão lançados e só o tempo dirá se, volvidos 37 anos, o cidadão comum deixará de ser roubado no peso.

A representante da União Europeia em Moçambique

Myriam Sekkat, deplorou a “falta de cultura de qualidade da maioria dos produtos alimentares moçambicanos”, instando, de seguida, a todos os empresários moçambicanos a inverterem a situação.

“A qualidade é a chave para promover e acrescentar valor nas vendas tanto dentro como fora do país”, explicou Sekkat, na cerimónia de atribuição do Certificado Internacional de Acreditação ao Laboratório de Metrologia de Moçambique, pelo Instituto Português de Acreditação (IPAC).

Falando na cerimónia, Ricardo Velho, do IPAC, que procedeu à entrega formal do referido certificado, disse que com o mesmo Moçambique vai deixar de recorrer ao exterior para realizar testes finais da qualidade dos ensaios laboratoriais de produtos moçambicanos.

O certificado atribuído àquela instituição estatal moçambicana é para as áreas de medição de massa e temperatura de produtos.

“É um passo gigantesco e esperamos que mais laboratórios moçambicanos consigam este feito memorável”, salientou o representante do Instituto Português de Acreditação, destacando que o país vai poupar recursos que eram despendidos com a realização de testes finais e de ensaios laboratoriais fora do país.

Doação da UE

Entretanto, a União Europeia doou a Moçambique cerca de 5,5 milhões de euros para apoiar pequenas e médias empresas moçambicanas a apostarem na qualidade dos seus produtos observando padrões internacionais em uso.

De referir, entretanto, que está em processo de acreditação internacional o Laboratório de Higiene e Alimentos, numa acção que conta com o apoio da União Europeia e Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (ONUDI), segundo o Instituto Nacional de Normalização e Qualidade (INNOQ) do Ministério moçambicano da Indústria e Comércio (MIC).

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