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Feridas que não saram

Feridas que não saram

O tempo é o maior mestre para esbater os sentimentos. Mas há feridas que o próprio tempo nunca vai curar, como as que ainda hoje se podem sentir no corpo e na alma daqueles que, no dia 22 de Março de 2007, na cidade de Maputo, foram vergastados profundamente por estilhaços de armas conhecidas e outras não conhecidas. Esses artefactos eram expelidos do paiol, localizado em Malhazine, arredores da capital, que explodia de forma devastadora, destruindo, ferindo e matando. Dois anos depois, ainda se podem ver e sentir as marcas do fogo. A nossa Reportagem esteve – na semana passada – em alguns dos lugares atingidos pelas explosões e o que constatámos é que há um misto de satisfação, traumatismo, conformismo e desespero.

No bairro Magoanine, quarteirão 26, reside Samuel Sinai, um homem que já não tem a esperança de ver o seu problema resolvido. Ele tem um estaleiro de fabrico de blocos, junto ao qual estava instalada uma loja que lhe garantia pão para si e para a família. O estabelecimento foi atingido, provavelmente por um obus e ficou quase completamente destruído. Dois anos depois, ainda estão lá as ruínas daquilo que era um lugar de negócio.

“Eu já não tenho esperança de nada. Disseram-me para ir ao Ministério da Indústria e Comércio, para que sejam eles a repararem a minha loja, mas até hoje, depois de todas as diligências que fiz, ainda não obtive resposta. Até parece que estamos a pedir esmola”.

Quem mandou Sinai ao Ministério da Indústria e Comércio, são os responsáveis do GAR (Gabinete de Apoio e Reconstrução). Mas, quando a nossa Reportagem se dirigiu àquela instituição, fomos constatar que a mesma está encerrada, e não encontramos lá ninguém que nos podesse dar alguma explicação sobre o que está a acontecer com o caso de Samuel Sinai e de outras pessoas a quem visitámos.

Outro problema que apoquenta os afectados por nós contactados é que grande parte do material que se destinava à reconstrução foi desviado pelos próprios funcionários do GAR. “Temos visto esse material a ser vendido aqui no bairro, sem que possamos fazer seja o que for”.

Esta afirmação é corroborada pelo chefe de quarteirão, Fernando Maposse. “Temos casas aqui que ainda não foram reconstruídas. Eles andam a saltar as construções de forma inexplicável. Também as casas que foram reconstruídas, muitas delas deixam muito a desejar. Por exemplo a minha, quando chove, permite infiltração de água. Há muitas casas assim, cuja reabilitação não foi feita como deve ser”.

Ainda voltando ao caso de Samuel Sinai, este disse-nos que os responsáveis pela reabilitação das casas destruídas pelas explosões do paiol, passam todos os dias em frente ao seu estaleiro. “Mas eles nem me ligam, nunca me dizem nada e eu estou completamente desesperado porque a loja é que me dava o sustento, para mim e para minha família”. Entretanto, Samuel Sinai dá graças a Deus pelo facto de, no dia da tragédia, não ter morrido ninguém da sua família. “Éramos três e todos nós saímos salvos”. O mesmo aconteceu com a sua vizinha – Rute Macie – que viu a sua casa semi-atingida, sem que tivesse havido mortes. “Graças a Deus ninguém foi ferido nesse dia e também ninguém morreu”.

Nunca mais
terá a sua perna

No bairro do Zimpeto, dirigimo-nos à casa onde estava uma mulher com o semblante carregado, ausente, aparentemente triste. Ela chama-se Julieta Nhantumbo e, quando recorda o dia em que tudo aquilo aconteceu, descobrem-se lágrimas a marejarem-lhe os olhos, porque, mais do que tudo aquilo, o filho ficou sem metade da perna direita. Foi amputado no Hospital Central de Maputo, depois de um estilhaço de obus lhe ter penetrado e cortado os ossos e as veias. Então, da maneira como se encontrava, os médicos não encontraram outra alternativa senão pegar no macabro serrote.

Segundo a mãe, “quando começaram as explosões, o meu filho não estava em casa. Foi difícil perceber o que estava acontecer. Eu não queria sair de casa enquanto o meu filho não voltasse, mas a intensidade das explosões, e a avalanche das pessoas que fugiam, não me deixaram outra escolha: também tive de fugir, sem saber o que estava a acontecer ao meu filho no meio daquele fogo todo”.

O filho chama-se Delgêncio Nhantumbo. É ele próprio que nos conta a história: “quando começaram as explosões eu estava a fazer um biscate. Imediatamente, pensei na minha família (minha mãe, minha irmã e meu filho). Voltei a correr para casa e, quando cheguei não estava ninguém, o que me fez pensar que haviam fugido. As explosões não paravam e eu decidi empreender também a fuga, para onde não sabia. Quando transpus o quintal ouvi um estrondo que atingia a nossa casa, saltei para o outro lado onde me fui esconder”.

Mas o que Delgêncio não sabia é que, no lugar onde estava escondido, explodiria ali um obus, cujos estilhaços atingir-lhe-iam o pé direito. “Quando fui atingido, não senti logo, só me apercebi quando me levantei e tentei continuar a fuga. Aí o pé cedeu, porque, como viria a saber mais tarde, os estilhaços tinham-me cortado os ossos e as veias e, aí, os médicos encontraram como alternativa a amputação do meu pé”.

O sofrimento deste jovem foi ainda maior porque, depois da primeira intervenção, os cirurgiões constataram que a operação havia sido mal feita e então tiveram que fazer uma segunda amputação um pouco mais acima. “Sofri muito”. Contudo, passados dois anos, espiritualmente está renovado. É um jovem – tem 22 anos – com pensamento resoluto. “O Estado deu-me uma pensão de invalidez. Com esse dinheiro estou a construir a minha casinha e quero continuar a estudar”.

Com estilhaços na cabeça

Esta será uma história por demais dolorosa. Na Escola Primária do Zimpeto, encontrámos uma criança na sala de aulas, cuja professora nos disse que a mesma está traumatizada. Na verdade, pode-se concluir isso por aquilo que o rosto nos vai transmitir. Até hoje tem estilhaços na cabeça, que os médicos ainda não extraíram. Tentamos entabular uma conversa com a criança, mas esta refugiava-se para dentro de si própria, com as feições ruborizadas.

Outra criança, na mesma sala, chama-se Anabela Machava. Depois de ter sofrido ferimentos graves nas explosões de 2007, foi evacuada para a África do Sul, onde recebeu tratamento e, hoje, encontra-se melhor, muito embora o pai – Domingos Luís Machava – que havíamos visitado antes de irmos à escola, nos tenha dito que a sua filha precisa de fazer controle regular. “Mas o pior é que, quando me dirijo ao Hospital Central, por onde passou para a África do Sul, não encontro lá o processo dela. Ninguém me sabe dizer nada. Isto é bastante doloroso”.

Quando chegámos à casa de Machava, debaixo de um sol causticante, o homem estava deitado de costas na esteira. A sua casa tinha sido completamente destruída, mas hoje está reposta. “Estou feliz quanto a essa parte, o Governo reconstruiu a minha casa. Mas isso nunca vai trazer a felicidade total porque a minha mulher morreu debaixo do fogo que era produzido pelas explosões de paiol e a minha filha ainda não tem a saúde totalmente restabelecida”.

Maria Almeida

No bairro de Matendene encontrámos Maria Almeida, numa casa reconstruída mas com alguns problemas nos acabamentos. “Estamos mais ou menos felizes. O que resta preocupa-nos muito, até porque estamos agora a concluir isto à nossa custa porque, desde que nos entregaram a obra, incompleta, nunca mais voltaram. Temos problemas da fossa, que foi violentamente atingida. Já não esperamos mais nada do Governo, teremos de contar com as nossas próprias forças”,

Maria Almeida é irmã da dona da casa, que – na hora em que lá nos fizemos – não estava. Segundo a nossa interlocutora, “a minha irmã está com problemas sérios de tensão arterial. Ela não está bem, apanhou um grande susto, do qual nunca mais conseguiu refazer-se até hoje. A qualquer ruído ela reage negativamente. Não consegue apagar da memória aquelas horas terríveis que abalaram a cidade de Maputo”.

Assim assim

Grosso modo, as pessoas afectadas e agora com as suas casas reconstruídas, não estão de todo felizes, pois lamentam a qualidade das mesmas. Mas ao mesmo tempo elas conformam-se, algumas, que têm algumas posses, vão dando outro sentido às suas habitações, tentando esquecer aquelas horas fatídicas do dia 22 de Março de 2007. Todos eles querem esquecer esse dia e devolver a paz aos seus espíritos. Mas existem aqueles que estão absolutamente desesperados pois, passados dois anos, os seus edifícios continuam em escombros.

 

 

 

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