É uma espécie de amuleto do Núcleo de Arte, na cidade de Maputo. Fala mal a língua portuguesa, mas isso nunca constituíu obstáculo, porque este muchangana exprime – mesmo sem falar a língua de Camões – com muita clareza as suas ideias. Mesmo se ele não conseguisse decifrar cristalinamente pelas palavras o que pensa, fa-lo-ia através das mãos. E, como se sabe, nem tudo o que é feito pelas mãos, precisa de ser explicado pelas palavras.
Estêvão Mucavele é o “dono” do Núcleo Arte. Quando ele não está, aquele lugar fica amputado de uma alma muito importante e respeitada por todos aqueles que “vivem” lá, ou simplesmente para lá vão visitar o santuário das Artes Plásticas.
Nós fomos para lá na última segunda-feira. Queriamos ver o Estêvão Mucavele – o cientista científico, como ele uma vez disse – e revisitar o espaço que acolhe e lança grandes artistas que se espalham por esta cidade, construindo e mostrando o belo. Ver o Estêvão Mucavele é uma missão importante, porque ele terá sempre faúlhas para construir as luzes. Que precisamos todos os dias. Era de manhã quando chegamos, e a primeira coisa que observamos é que, por fora, o edifício do Núcleo de Arte parece abandonado. Reclama um banho de tinha que o rejuvenesceria. O passeio defronte também precisa de cuidados, pois onde “moram” os artistas, é preciso que haja arejamento. E parece não haver.
O próprio espaço interior está mais ou menos amorfo. Não respira. Por exemplo, o tecto, precisa de recuperação, o chão também, para emprestar um ar mais jovial. Mas nós queriamos ver o Estêvão Mucavele. Coversar com ele. Ouvir as suas sábias palavras e vê-lo fumar como um americano.
Estêvão Mucavele já não fuma “Romeo y Julieta”. No seu lugar “puxa” um tabaco qualquer embrulhado em papel ordinário, porque o dinheiro escasseia. Ele vai a caminho dos 70 anos, mas no rosto a jovialidade e a vontade de continuar a viver e trabalhar ainda estão muito presentes. Estêvão Mucavele tem um espírito jovem. É um homem cheio de sangue. Quando perguntamos por ele na galeria disseram-nos que estava no atellier a trabalhar. Eram aproximadamente 11.00 horas. Movemo-nos para lá e, quando o vi, sentado diante de uma tela, passando por sobre ela uma espátula, parecia um personagem de um filme de Hollywood. Tinha – dependurado na ponta esquerda da boca – um cigarro embrulhado num papel corriqueiro, fumado até a exaustão, quase queimando-lhe os lábios. Estava de tronco nu, deixando-nos ver um corpo cheio de pelos, no peito, na barriga e nas costas. Ele estava compenetrado no seu quadro, de tal forma que tive medo de o cumprimentar. Fiquei especado à cerca de quatro metros a pensar se ia ter com ele ou voltava num outro instante. Mas foi ele que, virando para mim, saudou-me com entusiasmo, perguntando-me por onde eu andei durante este tempo todo.
Olhei-lhe nos olhos – de felino – e senti a mesma distância de sempre. A sabedoria. Os mesmos dentes queimados pelo tabaco. O mesmo sorriso desinteressado. A mesma fé e a convicção inabalável de ser um dos esteios das Artes plásticas.
A última exposição que ele protagonizou foi em 2006. De lá para cá nunca apareceu nas galerias e, se ainda não há outra exposição em vista, “o que é que tu queres. Queres me perguntar o quê, se eu não tenho nada de espectacular?”
Estevão Mucavele fez esta pergunta ao mesmo tempo que se punha de pé para me apertar a mão, sorrindo com os lábios húmidos apertando um cigarro embrulhado num papel corriqueiro.
Reparei que já não é Romeo y Julieta que este homem fuma. Esse foi outro tempo, o tempo em que os seus quadros eram comprados quase sempre. Agora o tempo é outro: “para tu venderes uma obra tens que ter muita sorte, mesmo assim eu não deixo de trabalhar”.
Filmaram E Foram Embora
Ele não queria me contar esta triste história: em 2006 os representantes da empresa Sort Limitada, sediada em Maputo, contactaram Estêvão Mucavele para a feitura de um documentário sobre a sua vida. Uma obra cinematográfica que seria uma honmenagem a um dos nossos maiores artistas plásticos. Estêvão Mucavele – na sua himildade – nunca tinha pensado que um dia alguém podia pensar nele nesse sentido. Também não sabia o que é isso de homenagem em filme. Mas uma coisa ele sabia: vou ganhar o quê com isso? Disseram-lhe, os representantes da Sort Limitada, que em troca iriam construir duas casas para ele (uma em Manjacaze e outro na cidade de Maputo), para além de um disco contendo o documentário.
Obrigaram – segundo as clásulas estabelecidas – o artista a assinar, primeiro, um documento onde ele autorizava os realizadores a procurarem os patrocícios e depois a dizer que aceitava que se fizesse o documentário em troca da construção das duas casas.
Esse processo foi acompanhado pelo antigo presidente do Núcleo de Arte (Sitói). Para além disso, Estêvão Mucavele devia ir à Manjacaze – que fazia parte do roteiro – para pintar um mural, e assim foi feito. As filmagens foram realizadas nos dois locais e Estêvão Mucavele está a espera, até hoje, passados quase três anos após a conclusão da rodagem, das casas e do disco contendo o filme. Mucavele quando procura os representantes da Sort Limitada para pedir esclarecimento sobre o que está a acontecer, ninguém lhe sabe dizer nada. O artista não sabe o que se passa com o resultado do trabalho efectuado.
Segundo informações que estão em nossa posse, o Ministério da Cultura, através da Direcção Nacional da Cultura, está notificado sobre este assunto. Sabemos ainda, que Gilberto Cossa, um dos quadros superiores do Ministério (que se encontra neste momento de férias) é que está encarregue de fazer as investigações, já que os representantes da Sort Limitada não estão a dar qualquer satisfação a Estêvão Mucavele. Gilberto Cossa é também presidente do Núcleo de Arte, onde trabalha Mucavele e onde trabalhava Sitói, que acompanhou todo o processo.
É um caso que se espera venha a ser devidamente esclarecido, porque o próprio Estevão Mucavele disse-nos que alguém lhe veio dizer que esse filme está a ser exibido na Europa.