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Em Moçambique, “Assim se vive”

Em Moçambique

Nos dias que correm, em Moçambique, vivemos numa sociedade absolutamente paradoxal, em que os maridos, facilmente, perdem o encanto em relação às suas esposas, construindo, deste modo, uma comunidade poligâmica; as filhas – adolescentes e jovens prostituem-se a fim de satisfazerem as necessidades básicas da casa; os idosos são rejeitados pelos familiares alegadamente por prática de feitiçaria e as amizades são vistas como o meio para atingir certos objectivos. Na sua recente peça teatral, “Assim se vive…”, exibida no pretérito domingo (28), em Maputo, o grupo de teatro “Só mulheres” da Beira realiza uma abordagem especial sobre a poligamia, a exclusão da pessoa idosa, a prostituição e as falsas amizades.

Há, notavelmente, um conjunto de acontecimentos, bons e maus, que faz parte da peça. Esta adaptação de Calene, Kenisha, Artemízia, Anadércia, Soraya, Rosa, Lina, Telma e Angélica tem a forma de colectânea de vidas. Ocorrências, fictícias, que, ao longo da história, se relacionam e criam diversos sentidos.

Os casos são apresentados perante a plateia como se o público fosse o juiz-cúmplice – talvez por estar sempre ciente do que acontece e nada faz -,num misto de biografia, simulação, teatro documental e ficção que vai enredando os espectadores na história original, na vida quotidiana.

Os actores fazem as várias personagens de cada um dos dramas, mudando de nível com facilidade conforme se revela útil para contar a história. Ao mesmo tempo que os artistas, em cena, se vão revestindo a cada personagem, outros preparam-se nos camarins a fim de entrarem logo em acção. Não se pode desperdiçar nada, nem o tempo, nem a alegria e a atenção do público.

Os contos, que às vezes parecem limitar a liberdade dos actores, podem por vezes ter alguma graça, mas, na maior parte do tempo, fazem apenas sorrir por força de um reconhecimento da situação ou por uma aproximação da actualidade.

Embora estejamos do outro lado da cena, estamos na verdade perante as nossas vidas, as nossas acções e os nossos comportamentos inexplicáveis. Estamos diante de uma história que gira em torno de Afonso e Guida, casal, Mariazinha e Rita, filhas dos dois, Calene, vizinha, fofoqueira, amante de Afonso e amiga de Guida, Rosa e Bailarina Falsa, outras amantes de Afonso.

Os dramas

Se, por um lado, na sociedade moderna, os pais investem na educação das filhas para que, futuramente, sejam independentes, por outro, as descendentes são inocentemente influenciadas pelos seus progenitores para que procurem bons “partidos” para namorarem e casarem-se, a fim de lhes proporcionar um futuro melhor. Na peça “Assim se vive…”, das mulheres da Beira, também se ilustra essa verdade.

Afonso, um senhor íntegro – talvez, só aqui nesta passagem -, é casado há 20 anos com Guida, com que têm duas filhas, Rita e Mariazinha. Porém, devido ao esbanjamento protagonizado pela sua esposa, a situação financeira da família torna-se miserável. Já não consegue custear as despesas da casa, mas garante que, com o pouco salário que recebe, pode aos poucos liquidar as dívidas, inclusive as facturas da água, da energia e da casa. Do outro lado, temos uma mulher presente, fria, segura, ambiciosa, determinada, cuja batalha que trava é, pura e simplesmente, para garantir a boa vida na família.

No entanto, embora ela soubesse do estado crítico financeiro da sua família, nunca pensou em outras soluções com vista a contornar ou resolver o problema, além de incentivar a sua filha mais velha, Mariazinha, ou simplesmente Zinha, a procurar um namorado rico que ‘bancasse’ a família. Aliás, segundo as interpretações da própria Zinha e, porventura, de todos os espectadores que acompanharam atentamente o drama, é que Guida queria que a sua filha se vendesse para garantir a sobrevivência da família.

E, ao mesmo tempo, Zinha prometera amor sincero ao seu namorado, um jovem humilde e trabalhador que, para a sua mãe, não passava de um morto de fome. Nesse contexto, mostra-se a deplorável condição de vida a que muitos petizes são sujeitos pelos seus progenitores.

Essa realidade, embora vista, diga-se de passagem, de uma maneira superficial e menos questionada na sociedade, entristece e desonra as filhas. Para além das falcatruas impostas à sua filha, Guida não simpatiza com a mãe do seu esposo. A velha – sem nome na peça – vive o maior pesadelo dos seus últimos dias de vida.

A poligamia

Se, na anterior passagem, Afonso se mostrava um homem íntegro, pai de família, nessa, a sua personalidade ganha novos contornos. Nesse episódio, encontra- se a namorar com Calene, a ‘melhor amiga’ da sua esposa, que, durante anos, conviveu com ela e sempre partilhou as suas alegrias. Na história, Calene é uma mulher solteira, desocupada e a fofoqueira do prédio. As suas actividades diárias, incluindo as próprias refeições, são feitas em casa de Guida, de tal sorte que até se apelidaram de comadres.

Mas, como se diz na gíria popular, ‘o inimigo encontrava- -se mais perto do que se imaginava’. Se seguirmos os princípios éticos, diríamos que é falta de consideração, respeito e exagerado atrevimento, que alguém com quem partilhamos a vida, comemos no mesmo prato, se aproxime de nós com objectivos obscuros. E se acontecesse connosco não perdoaríamos. Mas, na verdade, o que faz com que as pessoas traiam? Não seria tarefa fácil discutir sobre a traição perpetuada nas nossas comunidades, pois, embora descabidas, para quem as reprova, são várias as razões apontadas como factores principais para que haja infidelidade num relacionamento.

Tal como acontece com quase todas as mulheres que se encontram na situação de traídas, sem ao mesmos encontrar as possíveis razões para tal conduta, Guida experimenta todo o tipo de sentimentos – revolta, angústia, tristeza, raiva – e questiona: “Mas porque você me traiu, Afonso? Eu lavo a sua roupa, engomo-a, cozinho para si ”. Entretanto, se por lavar a roupa e preparar as refeições para a sua família Guida pensou que manteria o seu esposo, Afonso, em casa, está enganada, pois o marido pensa que, embora cumpra com as suas obrigações de mulher, ainda é incapaz de o completar.

Por isso, irritado e fazendo o papel de vítima, ele responde: “As minhas boxer (cuecas) estão todas furadas, não porque uso-as, mas porque tu as lavas. Queimas a minha roupa e mal sabes cozinhar”. Guida fica perplexa, chora e, de novo, questiona: “Mas e só agora, depois de 25 anos de casados, que vê que não sei cozinhar? Diga!”. Afonso profere insultos dirigidos a Guida. O casal não se entende e, logo, cai o pano branco. É o fim da peça.

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