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‘@Verdade do norte: Dois anarquistas conversando

No final de Fevereiro de 1861, Pierre-Joseph Proudhon – que era uma das maiores celebridades fi losófi cas e políticas da Europa – recebeu a visita de um jovem conde russo. Este russo já tinha passado por algumas mudanças. Fora militar e participara na repressão a revoltas no Cáucaso, mas agora tinha pretensões literárias. Tivera um filho bastardo com uma camponesa, de entre os servos “propriedade” da sua família.

 

Mas estava agora noivo de uma jovem da corte, dezasseis anos mais nova do que ele. As coisas pareciam mais encaminhadas. Nasceriam filhos, muitos; quando em Moscovo, a família daria festas no palacete; passariam grandes temporadas em Iasnaia Poliana, no campo.

 

Ainda assim, Lev Nicolaievitch Tolstói, o jovem conde russo, trinta e três anos, não sabia que fazer da vida. Proudhon – um tipógrafo, filho de um tanoeiro, que aprendera latim sozinho e se tornara famoso pelos livros e jornais como a primeira pessoa a dizer-se “anarquista” – encorajou-o a fazer aquilo que ele já queria. Se não isso, para quê atravessar a Europa e visitá-lo?

Aquilo que Tolstói queria era voltar a casa, libertar os seus servos, libertar as suas propriedades – no fundo libertarse a si mesmo. Por isso ganharia a incompreensão da família e dos seus pares, e a da igreja ortodoxa russa.

E também queria fazer escolas, ideia que Proudhon aplaudiu. No regresso, Tolstói abriu uma dúzia delas onde os filhos dos camponeses e os seus próprios filhos estudavam segundo um método que ele próprio ia experimentando.

E queria ainda escrever romances. Proudhon estava a terminar um tratado de política chamado Guerra e Paz. Tolstói gostou do título, e roubou-lho para um romance. Proudhon, que tinha proclamado “a propriedade é o roubo”, não se queixaria. A Tolstói – que viria a recusar os lucros dos seus livros – não passaria outra coisa pela cabeça.

Passo muitas vezes, de bicicleta, pelo prédio onde isto aconteceu. É o número 16 da Rue du Conseil, em Bruxelas, onde Proudhon vivia exilado sob nome falso. Nenhuma placa lembra o encontro.

Há tempos um dos três apartamentos do prédio estava para alugar. Fingindo-me interessado, liguei para a imobiliária e marquei um encontro. O agente trazia debaixo do braço notas que andava a compilar sobre livros de psicologia.

Uma amiga que me acompanhava, para disfarçar o meu embuste, lá perguntou umas coisas sobre o soalho e as áreas da casa. Eu deixei-me ficar na varanda, de onde se via uma enorme nogueira no quintal das traseiras.

Pergunto-me por vezes o que diriam eles se tivessem continuado aquela única conversa que tiveram. Que diriam sobre a Europa, sobre a Rússia, a Chechénia e o Afeganistão e os EUA e a China e a Crise. Que diriam da cimeira da NATO e a polícia prendendo “anarquistas”? Enfim, naquele dia fiquei só olhando para a nogueira, na casa onde talvez – a probabilidade é de 33,3% – se tenham encontrado ambos.

Regressado à Rússia, Tolstói viria a tornar-se mais famoso – como escritor, filósofo e anarquista – ainda do que Proudhon. Nos cinquenta anos seguintes, escreveu livros, renegou livros, disse-se cristão, foi renegado pela igreja – até hoje.

Até ao dia em que, irritado com tudo, fugiu de casa aos oitenta e dois anos. Procurava libertação e paz. Morreu em fuga, numa estação de caminhos- de-ferro, fez anteontem cem anos.

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