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Crónicas que fecundam incendiários…

Crónicas que fecundam incendiários...

Vasculhando-se as páginas de um Manual Para Incendiários e Outras Crónicas – a nova obra do poeta e jornalista moçambicano, Luís Carlos Patraquim –, abstracto, encontra-se um 19 de Outubro. As datas! “Há quem viva assolado por elas”. Nunca antes uma efeméride arrasou um povo.

Ainda que, por fim, além de proporcionar diversão – como qualquer outro tipo de enredo – uma escrita madura não se posiciona como um núcleo de respostas acabadas para os problemas do mundo. Mas, antes, impõe-se como uma plataforma de ideias e pensamentos que estimulam o leitor quanto à necessidade de desencadear um processo de questionamento e de reflexão em torno da realidade sociopolítica e cultural em que vive. Talvez terá sido por essa razão que inaugurámos, muito recentemente, uma leitura que se não quer romper por razão nenhuma, em relação à nova obra do jornalista moçambicano Luís Carlos Patraquim.

Introduzindo o seu livro com uma Crónica Sem Título, em Sombras – depois de recordar-nos as sábias palavras de Eugénio Montale de acordo com quem “A Conversa com as sombras não se faz ao telefone” – o autor dedica o seu enredo “Ao Gulamo Khan, morto no desastre aéreo que vitimou Samora Machel”.

Acerca do dia em que se obram Sombras, 19 de Outubro de um ano indefinido, ainda com alguma limitação imposta pela própria natureza dos seres, algo concreto, o autor descreve o meio de forma quase abstracta, o que – em relação à sua escrita – nada mais consegue fazer do que dotá-la de uma singularidade aurífica.

“Escreve-se à noite. É 19 de Outubro. Chove. O Outono insinua-se. O vento e a sua voz. Não há cão que suba ao mouro. A cabeleira das árvores revolteia a cada rajada mais forte. As folhas ainda não começaram a cair. Algures, dos fundos do túnel que a escuridão faz depois da luz mortiça do candeeiro torto, cavalgam sombras. Correm a bater na memória, na estirada pele, na tela onde se projectam”.

Se efectivamente essa descrição for fiel ao espectro da fatídica data da grande perda – referimo-nos ao acidente que mortificou Samora Machel – então, há muito mérito. Mais do que se retocar na ferida, chamar-se a atenção para a necessidade de imortalizar o mártir, como o autor sugere, muito em particular quando se considera que “Há quem viva assolado por elas”, então, essa efeméride não somente servirá de elo – em relação ao passado – mas, acima de tudo, de ponte que nos leva para a actualidade, remetendo-nos para a necessidade de sermos obreiros conscientes do nosso futuro coroado de (muita) liberdade.

Uma ilusão da liberdade

À luz de um Manual Para Incendiários e Outras Crónicas – uma obra em que se narram peripécias de múltiplas culturas e povos com dimensão histórico-científica – lemos e interpretamos que, na sua ânsia pela liberdade, os poetas fecundaram uma literatura que só explorava a vida das aves. Na verdade, eles queriam Ir Com as Aves.

Trata-se de uma pretensão em que “O Bípede Sem Plumas, do Lourenço de Carvalho, o mesmo autor de Minha Ave Africana, antigo designer gráfico da revista Tempo, emigrado em Setúbal” é um exemplo incontornável.

Em resultado disso, a dado momento da história da humanidade, “As aves, de tanto assim invocadas, resolveram reagir. O vírus anódino do poema deram-se a colher e a dispersar um tal NH5 qualquer – parecido com uma fórmula química – que paira, ameaçador, sobre as nossas cabeças” (Sic.).

Diante disto, nada mais nos restou a comentar senão formular uma pergunta desesperada: será que (também) a liberdade foi feita para os homens? Se sim, então, porque é que se deve conquistar? Impossível não pensar que, por causa dela, no século XIX as massas – aqui se trata de multidões – engendraram a primeira revolução socialista na França, “fazendo da vida a negação da própria vida” – como diria o poeta português, Eugénio da Andrade –, ao seguir líderes.

“Absurda vontade de sofrer”

Luís Carlos Patraquim é um saudosista e, no seu livro de múltiplas culturas, vários tempos, não faz esforço para escudar isso. Pouco se sabe sobre se o autor se arrepende do tempo que passou, mas a verdade é que “Até o Kuxa Kanema já pertence à história”. Não nos parece que – ainda para alguns condenável, para outros não muito – a prostituição, uma prática que se eterniza no tempo, em tempos de HIV, seja algo preocupante.

No seu eufemismo quase que narcisista, retrata a realidade. Fala sobre Maputo, ou Lourenço Marques. “A absurda vontade de sofrer, de Cesário, é mais para o lado de Sodré, onde há uma Rua Araújo ou de Bagamoyo e uma escumalha à solta que a frequenta por vigílias ou obrigação de quartos, como é de uso a bordo dos navios. Comerciantes, funcionários, bancários e vadios, pelas horas diurnas, cruzando o largo de São Paulo, assomando às portas, tresandando a frios e a perfumes baratos. Pelo meio da tarde, começam a esquinar as primeiras moçoilas, marinheiras da mais antiga das navegações, proas encrustadas de conchas longínquas ou convés lustrosos e amurada ébria”.

Rebelião com que finalidade?

De facto, como tudo indica, a prostituição pode ser uma “absurda vontade de sofrer”. As pessoas que a fazem – lutando com o próprio corpo contra as suas insuficiências sociais – praticam-na conscientes de (quase) todos os riscos implicados.

Há assuntos muito mais sérios por tratar nesta cidade capital. A promiscuidade, a falsidade dos nossos governantes, por exemplo, é outro tipo de prostituição letal. “Crime de que se fala muito nesses dias na Imprensa. Melhor: sobre o qual se escreve. Em Maputo, principalmente”. O problema é que – apesar dos longos séculos que tiveram de passar para se engendrar o Código Penal – um crime só se constitui como tal quando se consegue “ligar um acto a um nome”.

No entanto, no nosso país – como em alguns cantos do mundo – “Os nomes correm mais velozes. Ninguém os consegue apanhar”. Logo, por mais que se assista a cenas de criminalidade hedionda e de justificação pouco convincente, continuamos sem criminosos ainda que a cada dia que passa eles se glorifiquem.

Possivelmente, este Manual Para Incendiários – constitui-se como tal a partir do momento em que levando um posicionamento ao extremo – faz uma construção social dos pleitos eleitorais, algo simplesmente oportuno, em Moçambique incluindo – numa perspectiva de vaticínio – o tipo e a forma de governação que daí se prepara. “Você parece esses gajos das eleições: falar, falar, falar. Palavras complicadas. Dessas que você está a dizer mas depois dinheiro falta no bolso, medicamento nem tem, trabalho não há, casa é a mesma. Se calhar essa senhora abstenção está a morar naquelas vivendas da Kenneth Kaunda, a gingar nos Mercedes deles”.

Para ler, nas férias deste fim do ano, o Manual Para Incendiários e Outras Crónicas – obra recém-publicada, em Maputo – está disponível na Livraria Minerva Central.

 

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