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A Ntyiso wa wansati: Coração Atento

Lá em casa éramos muitos, por isso quando nasci fui apenas mais um entre oito, com vários antes de mim e outros tantos a seguir e deve ser por isso que nunca me situei bem na vida e vou duvidando do que é que ando por cá a fazer. Como toda a gente, devo andar à procura de alguma coisa, mas como já aprendi que as melhores coisas são as que se encontram, vou-me deixando estar a assistir até que ponto a vida me será grata.

 

 

Vivíamos numa casa enorme com um pátio quadrado às portas de Lisboa, num daqueles bairros que toda a gente acha que são longe, mas que têm todos os confortos da cidade e todas as delícias do campo; cinema a quinhentos metros e rebanhos de ovelhas junto ao portão.

Além de sermos muitos, éramos todos parecidos: as mesmas cores, a mesma voz, o mesmo jeito para o desporto e a mesma falta de aplicação nos estudos, o que me dificultava ainda mais a tal suposta singularidade que cada personalidade – dizem os psicólogos – se deve desenvolver durante a adolescência.

Nunca pensei muito nisso, vivia bem assim, mais um entre tantos, numa irmandade unida a alegre, sempre pronta para uma partida de rugby ou um campeonato de vólei de praia.

A compostura do meu pai e a alegria da minha mãe deram-me aquela imagem clássica de estabilidade das famílias que já não existem, por isso nunca me preocupei com o futuro, sempre achei que encontrar a mulher da minha vida era tão fácil como resistir a uma placagem ou fazer com que a bola chegasse ao outro lado da linha.

Como sou muito tímido e um bocadinho gago, sempre usei a ausência de palavras como táctica de sedução e o sorriso como arma de arremesso e como só atraio as pessoas que me ouvem sem que eu fale, acabei sempre por conhecer pessoas extraordinárias. Primos mais velhos, irmãos protectores, tias vigilantes, irmãs doces. Só as mulheres pareciam não me saber ouvir, ou talvez não quisessem e só Deus sabe que nunca se pode obrigar ninguém a coisa nenhuma.

Apaixonei-me a primeira vez por uma amiga da minha irmã mais velha. Chamava-se Luísa e tinha uns olhos azuis enormes, onde cabiam várias piscinas olímpicas. Mas a Luísa não ouvia o que eu não conseguia dizer, por isso depois de se queimarem os beijos, quase nada ficou, a não ser a memória de uma maçã roída a meias, debaixo da nespereira do quintal.

Depois, foi a Maria, a Catarina, a Inês e a Madalena, todas elas com encantos especiais e únicos que com o tempo se desvaneciam como nuvens apressadas, porque nenhuma delas conseguia ouvir o bater do meu coração.

Como sou muito tímido e um bocadinho gago, habituei-me a falar com os olhos e as mãos e a voz sai-me pelo peito e não pela garganta, por isso quando falo, só me ouve quem está mesmo perto, o que é óptimo, porque assim também não me desperdiço com raparigas que têm colares no sítio da alma e se preocupam mais com a marca dos sapatos do que com os traços do carácter.

Talvez seja essa a razão porque me habituei a ler nos olhos as palavras dos outros e a perceber, qual código morse o que os corações alheios me guardavam.

E depois de muito escutar e pouco falar, cheguei à conclusão de que mesmo quem fica quieto e arrisca pouco também se engana, por isso desisti de viver e pus-me a ver a vida a passar ao longe, fechado na minha casa com janela oscilo-basculantes, fechado no meu sossego, saboreando a doçura de um cigarro ao som das músicas da adolescência que ainda me fazem sorrir porque me aquecem a alma e me lembram a infância dourada em S. Martinho do Porto, dias inteiros a correr, à solta, largado numa bicicleta, a velejar e a ver, a cada Verão, qual é que era a miúda mais gira da praia.

Todos os anos havia várias, mas como já era – sempre fui – muito tímido e um bocadinho gago, sentava-me à noite na Rua dos Cafés a vê-las passar, enquanto os meus irmãos trocavam de namorada com grande ligeireza e as minhas irmãs suspiravam por jovens de pêlos no peito e barba cerrada, com propensão para aviar uma grade de cerveja por noite.

Num desses Verões, dei uma queda e parti uma perna, por isso as canadianas passaram a ser as minhas namoradas e as miúdas adoçavam o olhar à minha passagem para logo se esquecerem de mim, porque não tinha carro, nem conversa, nem pêlos no peito, nem barba cerrada, era só mais um entre tanto outros que não se situava bem na vida e duvidava do que é que andava cá a fazer.

Mas havia uma miúda, mais magra e alta que as outras que deixava os rapazes nervosos porque trocava de namorado sempre que lhe apetecia e aviava sozinha numa noite uma grade de cerveja. Tinha os olhos cor de azeitona e o cabelo castanho claro, ombros desenhados a tinta-da-china e umas pernas fabulosas. Mas o melhor era o sorriso, iluminado como se lhe tivessem acendido uma lâmpada dentro da cabeça daquelas que nunca apagam.

Os rapazes cobiçavam-na e as raparigas odiavam-na. Criticavam-lhe as mini-saias, a leviandade, as gargalhadas com o volume no máximo, as poses provocantes, os beijos em público, mas eu achava-lhe graça, dava-me vontade de rir aquele espalhafato todo e sabia que ela devia ser diferente.

Passaram mais de dez anos quando a voltei a encontrar, outra vez alegre e barulhenta, na Rua dos Cafés, com mais dois palmos na saia e mais dois dedos de testa. Não sei porquê, mas sentou-se logo na minha mesa e quando cruzámos o olhar percebi que me queria dizer alguma coisa tão simples e bonita como estou aqui para mudar alguma coisa na minha e na tua vida, se tu e eu quisermos.

Ela não disse nada, mas também não foi preciso, porque eu vi-lhe o coração bater mais depressa debaixo da camisola e quando o coração acelera ou é porque se está triste ou porque se está feliz e como ela não podia estar triste só lhe sobravam coisas boas, por isso perdi a timidez e começámos a conversar.

As horas foram passando e não nos calávamos. Vi outra vez aquele sorriso iluminado a holofotes, ouvi outra vez as gargalhadas ruidosas, e adivinhei-lhe as pernas delineadas por debaixo das calças de ganga. E quando o dia amanheceu, fomos tomar o pequeno-almoço e descobri que também gostava de galões de máquina e de tranças de fiambre e achei que não era por acaso.

Não Há Coincidências foi o que eu pensei; é o título do livro que andava a ler quando a conheci. Ainda não acabei o livro porque em vez de ficar sozinho em casa a ver a vida a passar ao longe, decidi viver outra vez e por isso levo-a a passear à praia, a jantar fora, a todos os sítios que me apetece, porque agora apetece-me tudo com ela.

Hoje vou buscá-la às oito e meia, olho para o relógio e conto as horas, os minutos e os segundos.

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