Com um olhar perdido no horizonte, ventre embrulhado na revolta de uma fome intensa e contínua, Ngofo arrastava os seus já gastos chinelos por entre a via rápida que ligava sua casa ao seu local de trabalho; havia mais uma vez perdido a hipótese de viajar inseguro nos muitos semicolectivos imprudentemente velozes e abarrotados de gente.
Ao longe, no percurso de si já longo, Ngofo cruzou-se com a sua vizinha uma jovem bela de seus 30 anos, possuidora de um corpo imaginariamente invejável…pensou ele olhando intensamente para o seu traseiro rijo desenhado por de trás de sua capulana multicolor, e aproximou-se.
Olhou-a por segundos intensos, despiu-a dos seus já medonhos sonhos, e inconscientemente passou em revista a sua beleza tranquila. E fazendo isso, passou a língua por entre os seus já gretados lábios e esboçou um sorriso lambido ao mesmo tempo que ensaiava uma inesperada conversa:
– Miúda tás atrasada e não apanhaste o “chapa”… Dizendo isto, esboçou um riso gozão aproximando- se ainda mais, sentiu de perto o seu hálito profundo e o odor inconfundível de mulher desperta do seu cio eterno e esperançada de um amanhã melhor.
Ela como que surpreendida, voltou a rebolar apressadamente suas ancas acelerou o passo cadenciado e gingou, sentenciando com malícia, Estou atrasada e sem dinheiro morrerei antes de chegar ao destino.
Ao longe, o recorte da cidade de cimento que crescia a cada passo dado fazia um cenário bizarro a esta tragicomédia. Os dois, já em passo sincronizado passaram apressados pelos montes de zinco e pedra desorganizadamente postos ao longo da via, subtraíram os seus pensamentos escondidos de toda a imundície que lhes circundava, adicionavam em contrapartida questões intermináveis, olhavam- se de esguelha com ânsia perdida na revolta de não poderem ter dinheiro para um “chapa” subirem e nem pelo começo do dia com barriga vazia.
Ngofo, rapaz alto com calvicie a espreitar-lhe pelo crânio cuidadosamente rapado, não se esquivava de olhar para a memoria urbana exposta e totalmente desestruturada, os seus olhos revisitavam aquele cenário triste. Ali, mesmo a seu lado uma criança ranhosa e pueril se deliciava rebolando pelo chão já de si imundo abraçada ao seu tinhoso e desdentado cachorro desprendendo intervalos de enormes gargalhadas e, alheios a tudo o que lhes circundava, e ao mesmo Ngofo interiorizava o tempo ensaiando uma conversa de ocasião.
Ela inconscientemente também se apercebeu e disse: Sabes moro lá na Mac Mahon Infulene a já muito tempo, não morri até agora porque só Deus me protege. Dizendo isso, fez um olhar triste e distante e cruzou seus dedos longos e firmes estalando-os de uma única vez suspirando a plenos pulmões. Sabes tenho medo da cidade tenho medo do meu bairro… ontem foram lá umas pessoas que vêm de longe…da Europa dizer que vão dar apoio para nós vivermos bem…mas minha tia disse que vêm sempre gente dessa Europa distante e de muitos outros cantos, chegam sempre e sempre desde a independência, no tempo de Samora, Chissano e Guebuza.
Mas sabes. Eles moram lá na somerschield até têm comunidade, comunidade deles são amigos do meu patrão. Suspirou mais uma vez por um momento enchendo o seu peito nem por isso abatido, buscou a palavra exacta como se medo tivesse de dizê-la e olhou para trás para o infinito da rua e para o monte de casebres dizendo quase que imperceptivelmente…. eles quando chegam no bairro, parece casamento muitos carros até as crianças são perfiladas para cantar. O secretário do Bairro fica sempre atento ao dinheiro… eu sei lá quanto apoio vem vindo mas nunca chega….gostaria que eles vivessem lá na Mac Mahon comerem nossa bajia e cartar água……riu-se estridentemente lançando, sua cabeça para trás e voltando a fixar-se na distância.
Ngofo reduziu o passo, pegou na sua mão suada e olhou fixa e positivamente para dentro dos olhos enormes dela, baixou conscientemente o olhar para os seus carnudos lábios sem disfarçar seus sentimentos ocultos e disse:
– É verdade, eu sei, vivo um pouco distante de ti… vejo o teu sofrimento diário sinto as tuas mágoas intensas e sei que não te posso ajudar. Sei também que essa gente sempre vem, até meu sobrinho tem nome de Hans, acho que era nome de um bom cooperante que voltou porque tinha apanhado malária…. nunca mais veio.
O que mais me entristece é verme impotente sem poder fazer nada ainda nem tenho trabalho fixo um dia terminará tudo…não sei quando,… Como vês nem dinheiro para o “chapa” tenho e aqueles que vêm querem fazer poços mas nem olharam para o fontanário avariado, dizem que vão fazer escolas e nem carteiras vão meter, porque o dinheiro não é muito.
Sabes, um dia até me vou casar, Ngofo não largava a mão da miúda seus dedos palmilhavam pensámentos e ideias, já não sentia o cansaço da distância já nem lhe importava o cansaço, queria fi car ali pensando no futuro encoberto de capulana e de muitas incertezas, queria recuar, já queria tudo.
Como te chamas?
Minerva Juashonga
Estavam a chegar ao destino final.