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Condenado pelo Estado

Condenado pelo Estado

Os efeitos do Serviço Militar Obrigatório que precipitaram a doença de Hélio Diamantino vão fazer-se sentir para o resto da sua vida, perturbando a sua locomoção, inserção social e encurtando-lhe o futuro.

Destaca-se no meio da turba. Decrépito e sem rumo. À medida que se aproxima da entrada do @Verdade, a falta de equilíbrio torna-se ainda mais gigantesca. Não é por acaso que lhe foi atribuída a condição de “inapto para trabalhar na Função Pública”. Mas ao ouvirmos o desfiar de rosário de Hélio Diamantino, a realidade afigura- se monstruosa.

A (ir)responsabilidade do Estado marca-lhe cada fissura, cada mazela. Desde o problema de vista à Ataxia Espino–Cerebelosa, ao corpo seguro por membros frágeis, e à vida de subsistência cujos motivos se escondem atrás de uma doença que não foi detectada na inspecção militar obrigatória, a 4 de Outubro de 1999. Afinal o que é preciso para que o Estado arque com as suas responsabilidades?

A pergunta repete-se de advogado em advogado, da Liga dos Direitos Humanos às instituições internacionais. E dá azo a uma outra, mais concreta, mais real e impossível de responder: haverá dinheiro que possa devolver a saúde que Hélio perdeu?

Como tudo começou

Hélio era um rapaz encantando com a vida e, apesar das dificuldades, sempre contou com o amor da família. Aos 18 anos, quando foi fazer o recenseamento militar para cumprir um dever patriótico, o adolescente não podia pensar que aquele gesto hipotecaria o seu futuro. “Estava na 11a classe e sonhava em continuar com os estudos, mas não podia fugir das minhas obrigações como cidadão deste país”.

Um ano depois, em 2000, Hélio foi convocado pelo Centro de Recrutamento, Mobilização e Propaganda da Cidade de Maputo, para uma inspecção médica, na qual foi dado como apto e incorporado no Exército a 1 de Março de 2001. Ainda no decurso da instrução no Centro de Formação de Forças Especiais, em Nampula, o recruta, com o número de recenseamento 1858, caiu doente.

Quando se estava a acostumar à vida militar, viu-se obrigado a interromper a instrução para cuidar da saúde. “Nessa altura, cada vez mais debilitado, abandonei aquela unidade militar para ser tratado em Maputo porque tinha dificuldades em equilibrar-me ao caminhar, incapacidade de correr e tremor nos movimentos. Depois fui apresentar-me no Comando do Exército – Região Militar Sul – onde ficou detido de 21 de Setembro de 2002 a 13 de Dezembro do mesmo ano. Fui solto mediante a apresentação das provas de tratamento.

Sucede, porém, que em vez de ser encaminhado para o Batalhão de Forças Especiais da Beira, Hélio ficou como escriturário na casa de reclusão militar na Região Sul. Contudo, “foi omitida a causa da minha afectação naquela unidade”. A 13 de Maio de 2003, passou à reserva, 74 dias depois de os seus colegas de incorporação voltarem à condição de civis, numa violação ao que preconiza a Lei do Serviço Militar Obrigatório.

Desmobilizado e sem saúde

Encolhido numa cadeira minúscula, na redacção do @Verdade, Hélio Diamantino conta que no dia 14 de Outubro de 2005 ficou internado no Hospital Central de Maputo (HCM).

Volvidos 18 dias, a 02 de Novembro, teve alta. Porém, uma recaída em Outubro de 2006 levou-o, mais uma vez, ao leito do HCM, onde lhe diagnosticaram Ataxia Espino-Cerebelosa (uma doença degenerativa que se fixa à medula espinhal, tronco encefálico e cerebelo, causando a degeneração gradual de tais pontos em grau celular, o que leva ao impedimento do transporte do impulso eléctrico ao córtex cerebral proveniente do sistema nervoso periférico, até a total inibição dos membros).

Por causa da doença, Hélio começou a apresentar cada vez mais dificuldades de executar actividades quotidianas. Ainda assim, “consegui terminar o nível médio, em 2009”.

O relatório médico, solicitado a 9 de Dezembro de 2008, e disponível em Fevereiro de 2010, com número de referência 13/ DC-HCM/10, foi claro: “Hélio Diamantino Naene Guiongue (…). foi observado no Serviço de Neurologia em 2008. O exame registou Ataxia Espino-Cerebelosa, e diminuição da visão e da força muscular nos membros esquerdos.

Nistagmo horizontal, mais no olhar para a esquerda”. Portanto, “não apto para trabalhar na Função Pública”. Porém, “podendo fazer trabalho sedentário em regime de horário especial”. Mais: “a doença de que padece é o corolário do profundo esforço físico a que foi submetido durante a instrução”.

Respostas tardias das instituições do Estado

Com o relatório médico, no dia 18 de Fevereiro de 2009, Hélio apresentou uma exposição ao ministro da Defesa no qual solicitava a integração no Ministério da Defesa Nacional (MDN). Ou que fossem “reparados os seus direitos violados (…) uma vez existir em todo este processo uma responsabilidade objectiva do Estado”.

A resposta, essa, caiu com estrondo um ano e quatro meses depois, através do chefe de gabinete do ministro, “sobre o assunto, sua Excelência o ministro da Defesa Nacional, em despacho de 21/06/10, indeferiu o pedido, com o fundamento de que a contratação de funcionários para o Aparelho do Estado é feita na base do disposto no Estatuto dos Funcionários do Estado e sendo um requisito essencial a aptidão física. E neste sentido, o relatório médico foi claro, inequívoco e peremptório em afirmar que vossa Excelência não é apto para trabalhar na Função Pública”.

Na verdade, a decisão do MDN “atropelou” por completo o artigo 37 da Lei 32/2009 de 25 de Novembro, o qual trata de questões relacionadas com acidentes ou doenças resultantes do serviço militar. O número um, do referido artigo, informa que “o Estado reconhece aos cidadãos o direito à plena reparação dos efeitos de acidentes ou doenças resultantes do serviço efectivo normal.

“O cidadão a que se refere o número anterior, quando possuidor de qualquer grau de incapacidade resultante de acidente ou doença relacionada com o serviço militar beneficia de direitos e regalias previstos em legislação própria (…)”, lê-se no número dois do artigo 37.

Quando Hélio era útil

O caminho, refira-se, que Hélio percorreu até ao cumprimento do Serviço Militar Obrigatório não foi feito de respostas e nem medidas tardias como nas suas actuais relações com o Estado. Em ’99 recenseou, em 2001 fez a inspecção e no mesmo ano anulou a matrícula em carta dirigida ao director da Escola Secundária Josina Machel. A resposta desejada, essa, veio e Hélio já tinha partido para cumprir o seu dever patriótico.

Porém, antes, deixou uma carta, redigida na madrugada do dia 12 de Março de 2001, aos seus entes queridos numa folha arrancada de um caderno que teria de esperar dois anos para voltar com Hélio ao banco da escola. O que não aconteceu como o previsto devido às idas e vindas aos serviços de neurologia do HCM.

“Meus queridos pais, meus irmãos e minha prima Rute. Aqui estou eu, por escrito, tentando transmitir-vos o que oralmente seria difícil porque até então não acredito que me estou separando por um tempo indeterminado de vocês”. Assim, num tom de que quem já sente saudades, mesmo antes de partir, começou o texto curto, mas extenso de sentimentos que o jovem deixou.

Hélio tinha claro que mais dia menos dia teria de deixar a família: “isto ia acontecer”. No seguimento da carta – numa espécie de premonição do que viria a acontecer com o seu corpo – escreveu em caixa alta e dentro de aspas a palavra que a Inspecção do Ministério da Defesa Nacional jamais deveria ter carimbado na sua cédula: “APTO”. Até porque “usava óculos e tinha uma ligeira debilidade física e, sinceramente, pensava que não fosse passar nos exames médicos. Mas o meu espírito patriótico empurrou-me ao Hospital Militar”, diz comentando o aspecto curioso da carta.

Mesmo à porta do Exército, Hélio nunca deixou de pensar nos estudos: “anulei a matrícula no que se refere ao assunto escola, prometendo voltar e continuar porque parar por aqui não constitui um desejo, além disso a vaga pertence-me, ficando por vossa parte o dever de ir buscar a resposta na secretaria da escola e conservar até a minha volta”.

No final da carta, Hélio pediu que cuidassem bem dos seus pertences porque iria voltar. Voltou 74 dias depois do previsto. Ainda assim, concluiu o ensino médio em 2009. Viu as portas do emprego fecharem- -se, mas não esmoreceu. Fez um curso de montagem e reparação de computadores, mas até aqui os frágeis alicerces do seu corpo são uma metáfora das suas possibilidades de conseguir um emprego, as quais definham à medida que a Ataxia Espino – Cerebelosa ganha espaço.

Não passou de uma miragem

Depois de andar para frente e para trás à procura de emprego, em Abril de 2011 teve uma boa notícia. A Associação Nitoroiense dos Deficientes Físicos (ANDEF), do Brasil, concedeu 15 bolsas de estudo com a duração de 18 meses, sendo ele um dos beneficiários.

Mas para não desvirtuar a sabedoria popular que diz que “alegria de pobre dura pouco”, ele e mais 14 pessoas perderam a possibilidade de melhorar a sua formação porque não existia dinheiro para as passagens.

Assim, de forma inglória e por causa da insensibilidade de públicos e privados, terminou o sonho de Hélio e mais 14 portadores de deficiência se especializaram num curso técnico. “Eram bolsas que só exigiam o pagamento da passagem”, sublinha.

Enquanto não se vislumbra uma luz no fundo do túnel, Hélio continua a remar contra a maré: acorda cedo, luta para apanhar o transporte, procura emprego, sonha em continuar os estudos e acredita que a justiça irá obrigar o Estado a minimizar os danos que lhe foram causados pelo cumprimento do Serviço Militar Obrigatório. Agora, tudo depende do Tribunal Administrativo.

O que diz o médico

Um médico neurologista, do Departamento de Neurologia do HCM, próximo ao caso, explicou que a doença de Hélio não tem cura e o tratamento é muito caro. Por exemplo, “uma ressonância magnética custa mais de 60 mil meticais”. Um valor, diga-se, que Hélio não sabe onde ir buscar.

Contudo, informou que os exames feitos na Inspecção Militar não seriam capazes de detectar a predisposição. Portanto, “afasta a hipótese de erro médico”. Mas esclarece que “o problema, com mais de 15 anos, foi precipitado pelo rigor do treino militar”. Provavelmente, “o rapaz teria crises do género numa idade bem mais avançada”.

Por exemplo, “a casa onde ele vive tem de ser adaptada às limitações que a doença impõe. Isso, claro, é um custo à parte do tratamento e controlo”. Na verdade, “sem corrimões para facilitar a locomoção, Hélio jamais terá uma vida normal”.

Processar o Estado: fácil; fazer cumprir a sentença: uma tarefa hercúlea

O caso do Hélio está em sede de justiça e nas mãos do Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ). @Verdade tentou entrar em contacto com o advogado que está a lidar com o caso (omitimos o nome a seu pedido), mas este informou-nos que não pode tecer comentários nesta fase do processo.

Contudo, não deixou de realçar que um processo contra o Estado é “muito complicado”. Principalmente, “quando é um agente do próprio Estado quem assiste um cidadão lesado por ele”.

Na mesma linha de pensamento pronunciou-se o Dr. José Manuel Caldeira, nos seguintes termos: “Em qualquer país, por mais democrático que seja, é difícil processar o Estado com sucesso”, Porém, “uma pessoa que não tenha condições para ter um advogado pode ir ao IPAJ ou à Liga dos Direitos Humanos.”

Outros advogados advertem que há casos em que nada aconteceu, mas isso porque o Tribunal Administrativo protegeu indevidamente o Estado. Infelizmente, “esses são em maior número do que os pouco bem-sucedidos”.

Para Caldeira o problema nem é processar o Estado, mas sim “fazer com que ele cumpra a sentença”. Contudo, “há casos bem-sucedidos.

Outras vítimas do Estado

Há mais de 20 anos à procura de justiça, Jeremias Chambule, cidadão moçambicano, morreu em 2010, aos 69 anos de idade, sem ver os seus direitos materializados, em virtude da expulsão sem justa causa de que foi vítima no Ministério da Defesa Nacional (MDN), onde trabalhou durante muitos anos.

Efectivamente, em 2008 Chambule perdeu a vida enquanto aguardava pela decisão dos juízes conselheiros do Tribunal Administrativo (TA) em relação ao documento remetido àquela instituição com o objectivo de forçar o MDN a cumprir o acórdão nº8/2007, de 14 de Agosto de 2007, no qual o acto de expulsão passada pelo ministro da Defesa é declarado nulo, sem nenhum efeito e com todas as consequências legais.

É que depois de julgado e com uma sentença favorável ao finado, o MDN cumpriu parcialmente o acórdão. Reintegrou-o apenas no seu posto de trabalho e depois concedeu-lhe a reforma. Não pagou e nem quer pagar os vencimentos em dívida, de 1990 (ano da expulsão) a 2002 (ano da reintegração). Ao todo são 208 meses de salário, sem deixar de lado as necessárias actualizações, bem como a progressão na carreira.

Enquanto o processo decorria, o TA notificou o ministro para cumprir, no prazo de 15 dias, a decisão do acórdão e responder a outros aspectos que achasse oportunos. Segundo o acórdão do TA exarado a 9 de Julho de 2010, o responsável máximo do pelouro da Defesa reconheceu não ter pago os salários devidos e justificou que, por se tratar de pagamentos de despesa de exercícios findos, estava em curso a solicitação da verba para o pagamento, por via do Orçamento Geral do Estado.

Na verdade, segundo o artigo 215 da Constituição da República, as decisões dos tribunais são obrigatórias e prevalecem sobre as de outras autoridades. Na mesma lógica, o artigo 164 da Lei do Processo Administrativo Contencioso defende que as decisões do Tribunal Administrativo, quando tiverem transitado em julgado, devem ser cumpridas pelos órgãos administrativos no prazo de sessenta dias.

O nº 3 desse mesmo artigo estabelece que a causa legítima da não execução deve ser invocada e notificada ao interessado, no prazo de 60 dias; caso contrário, a invocação não é reconhecida.

Ora, ao que tudo indica, o MDN violou deliberadamente a lei. Não cumpriu os prazos depois de o caso ter transitado em julgado. A lei estabelece o prazo de 60 dias para o cumprimento da decisão do tribunal, mas, até a data em que Chambule remeteu o documento ao TA, já tinham transcorridos 16 meses.

Com base no acórdão de 9 de Julho de 2010, na auscultação que foi feita ao ministro da Defesa, aquele responsável não invocou razões plausíveis para o não cumprimento dos prazos que a lei prescreve.

Assim, depois de apreciados os dispositivos legais que regulam questões desta natureza, a primeira secção do Tribunal Administrativo concluiu que os documentos que o MDN juntou para justificar as diligências junto à Direcção Nacional da Contabilidade Pública revelam que só tiveram início depois da notificação feita em sede do processo. Portanto, não há provas de que houve vontade de ressarcir o finado.

No dia 9 de Junho de 2010, num acórdão assinado por José Luís Pereira Cardoso, como relator, José Ibraímo Abudo e David Zefanias Sibambo, os Juízes Conselheiros da Primeira Secção do Tribunal Administrativo julgaram mandar executar a decisão do acórdão nº 8/2007, quanto ao pagamento de vencimentos de 1990 até 2002.

Em consequência, ordenaram que o MDN realizasse diligências para o pagamento da dívida nos 60 dias que se seguiram à notificação da decisão. Com certeza que esta seria uma das maiores vitórias para Jeremias Chambule, se o MDN tivesse mostrado mais celeridade e responsabilidade na abordagem do assunto, mas o visado morreu sete dias antes de a decisão ser posta em prática. Agora a batalha prossegue com os filhos que remam contra a maré levando o barco adiante.

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