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Código Penal: qual o ponto de situação dos direitos humanos?

Código Penal: qual o ponto de situação dos direitos humanos?

A nova versão do Código Penal que vai a debate na especialidade no próximo dia 17 de Junho, sofreu algumas alterações mas continua a conter aspectos discriminatórios em relação às crianças, às mulheres e aos homossexuais.

A Plataforma de Luta Pelos Direitos Humanos no Código Penal, que junta mais de 16 organizações da sociedade civil, tem acompanhado de perto os trabalhos no Parlamento, mandando notas e solicitando encontros de discussão.

De acordo com a última versão da lei, enviada a 29 de Abril pelo Secretariado da Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade, e a respectiva adenda de 2 de Maio, há importantes alterações, algumas das quais respondem às preocupações levantadas. Todavia, mantêm-se aspectos polémicos. Passemos em revista a situação actual do Código Penal.

Os mais importantes aspectos discriminatórios eliminados

Artigo 46 – Inimputabilidade Absoluta

 

Foi alterada a idade da responsabilidade criminal dos 10 para os 16 anos. Esta mudança é de saudar, mas lembra- -se que, de acordo com a legislação nacional e a Convenção dos Direitos das Crianças ratificada por Moçambique, a definição de criança enquadra as pessoas até aos 18 anos. Como tal, a idade da responsabilidade criminal deveria ser 18 anos.

Artigo 82 – Aplicação de Medidas de Segurança

Elimininou-se a possibilidade de aplicar medidas de segurança aos mendigos, aos homossexuais e às prostitutas, bem como aos que mantenham ou dirijam casas de prostituição ou habitualmente frequentadas por pessoas que se dedicam à prostituição, quando desobedeçam repetidamente às prescrições regulamentares e policiais.

Artigo 220 – Actos Sexuais

Com Menores A idade da vítima deste crime passou dos 12 para os 16 anos de idade, o que é uma mudança importante, mas tal como antes se apontou, a idade máxima deveria ser de 18 anos.

Artigo 223 – Efeitos do casamento

Eliminado totalmente esta norma que permiti a a suspensão da pena ao violador que se casasse com a vítima.

 

Artigos que ainda violam os direitos humanos de mulheres, crianças e outros grupos

Saudamos as alterações introduzidas pela Adenda de 30 de Maio de 2014, mas não podemos deixar de apontar algumas disposições que continuam a violar os direitos humanos de mulheres, crianças e outros grupos.

Artigo 24 – Encobridores

Esta norma exime certas categorias de pessoas (pais, cônjuges e familiares até ao 3º grau de parentesco) da responsabilidade de responder como encobridores, mesmo quando elas “alteram ou desfazem os vestígios do crime com o propósito de impedir ou prejudicar a formação do corpo de delito” ou quando “ocultam ou inutilizam as provas, os instrumentos ou os objectos do crime com o intuito de concorrer para a impunidade”. Isto é muito grave e pode interferir decisivamente nas investigações policiais, aumentando a impunidade dos criminosos. Impacto maior terá quando se tratar de crimes sexuais cometi dos por familiares ou dentro de casa, envolvendo mulheres e sobretudo crianças dos dois sexos.

Artigo 160 – Crimes Hediondos

Congratulamo-nos com a inclusão da violação de menor de 12 anos no rol dos crimes hediondos. Propomos a inclusão da violação sexual de qualquer pessoa e de qualquer idade nesta classificação, considerando o alto potencial ofensivo deste crime e os danos, muitas vezes irreversíveis, que sofrem as vítimas.

Artigo 218 – Violação

A violação e a violação no casamento é uma questão muito sensível para os direitos das mulheres, para que possam usufruir plenamente dos seus direitos de cidadania. A este respeito, lembremos que Moçambique é signatário de vários instrumentos regionais e internacionais, entre os quais o Protocolo à Carta Africana dos Direitos das Pessoas e dos Povos sobre os Direitos das Mulheres em África, no seu artigo 4 (Direito à Vida, à Integridade e à Segurança da Pessoa), que refere:

“1. Toda a mulher tem direito ao respeito pela sua vida, à integridade física e à segurança da sua pessoa. Todas as formas de exploração, cruéis, desumanas ou degradantes devem ser proibidas e punidas.

2. Os Estados Parte devem tomar todas medidas apropriadas e efectivas para:

a) Promulgar e aplicar leis que proíbam todas as formas de violência contra as mulheres, incluindo as relações sexuais não desejadas e forçadas, quer em espaços privado ou em espaço público;

b) Adoptar todas as outras medidas legislativas, administrativas, sociais, económicas e outras que possam ser necessárias para garantir a prevenção, punição e erradicação de todas as formas de violência contra a mulher;”

Considerando este compromisso do Estado Moçambicano, fazemos as seguintes propostas e considerações:

• Nem todas as formas de violação sexual estão incluídas; a substituição da palavra “cópula” por “coito” passa a incluir as relações sexuais por via vaginal e anal, mas exclui a penetração por via oral e a introdução de objectos, formas cada vez mais comuns nas denúncias de casos que chegam às ONGs e à polícia.

• A moldura penal prevista para este crime é de 2 a 8 anos, o que é menor do que a pena prevista para certos tipos de crimes contra a propriedade. Neste senti do, veja-se o artigo 273, sobre furto simples, em que se prevê uma moldura penal de 8 a 12 anos, para quem furtar uma quantia superior a 800 salários mínimos. Por aqui se vê a prioridade que se dá ao bem jurídico a proteger. Ou seja, dá-se prioridade à propriedade em detrimento da integridade física, moral e psicológica nos casos de violação sexual. Propõe-se o agravamento da moldura penal.

• À semelhança do que acontece com o Artigo 199, sobre o crime de rapto, devem-se considerar agravantes especiais, que possam configurar o crime de “violação qualificada”. Propõe-se, nomeadamente, as seguintes agravantes:

a) Se a violação for cometi da com ameaça de arma de fogo ou de armas brancas ou outro meio de intimidação ou coerção física ou psicológica;

b) Se a violação for cometi da por mais de um agressor (dois ou mais), pois se trata de um acto cometi do com mais violência e com manifesta superioridade física;

c) Se para a execução do crime, ti ver prevalecido qualquer posição ou título que dê autoridade sobre a vítima, ou se o agressor ti ver com a vítima uma relação como ascendente, descendente ou irmão, por natureza ou adopção ou similar da vítima;

d) Se a violação for cometi da por pessoal pertencente às forças armadas, polícia, ou segurança privada;

e) Se o autor ti ver conhecimento de que é portador de doenças sexuais graves e transmissíveis.

Artigo 219 – Violação de Menor de 12 anos

O crime de violação de menor deveria reflectir a definição de criança patente na lei moçambicana, passando a ser “violação de menor de 18 anos”. Este artigo não inclui outras formas de violação sexual, como a oral ou a introdução de objectos, que têm sido muito comuns actualmente, e que são extremamente danosas para as vítimas, tanto física como psicologicamente.

Artigo 223 – Denúncia Prévia

Este artigo prevê que nos crimes de atentado ao pudor e violação (com excepção da violação de menor de 12 anos), os procedimentos criminais tenham lugar após denúncia prévia do ofendido, salvo nalgumas circunstâncias. Propomos que estes crimes sejam de natureza pública pelas seguintes razões:

• A gravidade dos crimes contemplados nesta secção justifica que o Estado intervenha para garantir a punição do agressor, tendo em conta o bem jurídico a proteger.

• Os pais, tutores e outros responsáveis pelos menores nem sempre têm em conta o superior interesse da criança, pelo que o ónus da denúncia não pode ficar a seu cargo.

• Sendo um crime semi-público, as vítimas têm a grande responsabilidade de denunciar o facto, pois esta é a condição para que haja procedimento criminal ou para que haja intervenção no Estado. No entanto, estando estas pessoas afectadas com o facto e nos casos em que outras pessoas com legitimidade para denunciar não existam, não vivam com a vítima ou sejam elas próprias as violadoras, não haverá condições para apresentação da denúncia, pois a própria vítima ou tem vergonha ou medo, ou está perturbada com o facto, ou está hospitalizada ou desconhece os mecanismos para esse efeito. Esta norma constitui uma exclusão das mulheres vítimas de violação sexual do acesso à justiça.

Artigo 245 – Discriminação

Há uma grande ausência neste artigo, que é não referir a discriminação com base na orientação sexual, o que é também uma das formas de violação dos direitos humanos, pois desvaloriza estas pessoas da condição de seres humanos. Propõe-se acrescentar a “orientação sexual” no rol das formas de discriminação, o que já consta do Artigo 4 da Lei do Trabalho de 2007 (Lei nº 23/2007).

Artigo 261 – Abertura Fraudulenta de Cartas

Hoje em dia é inadmissível, face à garanti a do princípio de igualdade e de respeito pela dignidade dos indivíduos, que às/aos cônjuges seja concedida autorização para que se imiscuam nos assuntos privados e pessoais das/dos suas/ seus parceiras/os, pois embora sejam casadas/os ou vivam em união de facto, cada uma/um tem direito à privacidade como indivíduo. Propõe-se retirar o cônjuge do rol de pessoas contra quem não se aplica esta disposição (nº 2), com vista impor aos cônjuges o respeito pela privacidade de cada um.

 

Sobre a introdução do crime de Violência Doméstica no Código Penal

Foi com surpresa que, após cerca de dois anos de discussão no âmbito do processo de revisão do Código Penal, verificamos que a violência doméstica como crime fora introduzida no texto da lei, apesar de já existir uma lei específica, a Lei Sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher (Lei nº 29/2009, de 29 de Setembro).

1. A violência doméstica, sendo um assunto delicado, sensível e com características próprias, teve a sua lei específica aprovada em 2009, depois de mais de dez anos de luta e de advocacia por parte de sectores do Estado e ONGs que actuam na área dos direitos humanos. Não se entende, pois, porque é que, cinco anos depois, se fazem alterações e se pretende incluí-la no novo Código Penal. Isto atenta contra o princípio da estabilidade jurídica. Não se pode pensar em revogar uma lei que ainda está a ser conhecida e que começa a ser aplicada, sem que se tenham feito estudos e um balanço que identifique os seus pontos fortes e fracos.

2. Relembremos brevemente a razão por que se aprovou a Lei nº 29/2009, de 29 de Setembro:

• A violência doméstica é um fenómeno que atinge principalmente as mulheres, embora possam existi r alguns homens vítimas de violência. Isto assim acontece porque continua a haver um desequilíbrio de poder entre mulheres e homens na família, na comunidade e na sociedade.

• A violência doméstica não pode ser tratada e não é uma violência como as outras: as vítimas são casadas, vivem em união ou têm um relacionamento amoroso com o agressor, vivem na mesma casa, dormem na mesma cama e muitas vezes dele dependem economicamente. E ainda mais, o agressor é o pai dos seus filhos e as famílias da vítima e do agressor conhecem-se, existem laços de solidariedade e amizade entre elas.

• Por todas estas características, é mais difícil de reconhecer que existe violência, é mais difícil de denunciar e a pessoa que denuncia sofre muitas pressões (dos filhos, da família, do agressor e da comunidade) para retirar a denúncia. Em consequência, muitas mulheres sofrem caladas e vivem vidas miseráveis, assim como as crianças que têm que crescer num lar violento, sem carinho, sem alegria e sem segurança.

• Foi por entender a premência em acabar com a violência doméstica e os aspectos delicados que envolvem a criminalização deste tipo de crime, que se aprovou uma Lei Sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher.

3. Reconhecendo as características particulares e específicas da violência doméstica, vários países, nos quais Moçambique se tem inspirado de um ponto de vista legal e jurídico, como é o caso de Portugal, do Brasil, de Cabo Verde, da África do Sul e da Espanha, aprovaram leis específicas, em vez de incluir este crime nos seus respectivos Código Penais.

4. Por outro lado, o que a Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade fez, em relação à introdução do crime de violência doméstica no Código Penal, foi transportar somente alguns artigos da referida lei, ao mesmo tempo que estes eram alterados. As alterações nestes artigos diminuem a possibilidade das mulheres, que são objecto da Lei nº 29/2009, de 29 de Setembro, acederem à justiça (veja em anexo o documento “Alterações introduzidas pela Proposta de Revisão do Código Penal à Lei da Violência Doméstica praticada contra a Mulher”).

5. Ao transpor alguns artigos da lei específica da violência doméstica, a Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade deixou de lado várias disposições que tinham a sua coerência na própria lei, que diziam respeito sobretudo a aspectos deontológicos e que procuravam apoiar e proteger as mulheres que denunciam. É este o caso das Definições (artigo 4 e Glossário da LVD), dos Agentes da infracção (artigo 5 da LVD) das Medidas cautelares (artigo 6) e do Procedimento (artigos 22 e seguintes na LVD).

6. Lembremos ainda que a Lei Sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher (Lei nº 29/2009, de 29 de Setembro) foi aprovada no espírito da eliminação da discriminação contra as mulheres e da discriminação positiva, para corrigir uma injustiça histórica. Ao fazê-lo, o legislador respondia a vários compromissos assumidos por Moçambique ao ratificar o CEDAW (veja-se o artigo 4º), o Protocolo de Maputo (artigo 1º) e o Protocolo de Género e Desenvolvimento da SADC (artigo 1º), visando proteger as mulheres, vítimas principais da violência doméstica.

7. Face ao acima exposto, queremos manifestar o nosso profundo desagrado e desilusão pela maneira como o Capítulo IX foi introduzido no Código Penal, sem pré-debate e discussão com as ONGs, sobretudo as que lutaram durante 10 anos para ver aprovada uma lei contra a violência doméstica, tão necessária para protecção dos direitos humanos. Lamentamos, pois se está na iminência de um retrocesso colossal no âmbito dos direitos humanos.

8. Perante esta situação, propomos a supressão integral do Capítulo IX, sobre a violência doméstica. Havendo interesse, este pode ser substituído por um artigo com a seguinte redacção: “Artigo … – Violência doméstica – 1. Aquele que nas relações domésticas e familiares cometer violência física, psicológica, moral, patrimonial ou social incorre em crime. 2. O crime de violência doméstica e regulado e punido por lei especial.”

9. Nós, ONGs que fazemos parte desta Plataforma, estamos profundamente comprometi das com a necessidade de lutar contra este retrocesso e envidaremos todos os esforços para defender a Lei Sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher (Lei nº 29/2009, de 29 de Setembro).

Estes foram os comentários que a Plataforma de Luta Pelos Direitos Humanos no Código Penal entregou a 12 de Maio a várias instâncias parlamentares e partidárias. Esperamos que venham a ser tomados em consideração, dada a sua importância para os direitos das moçambicanas e dos moçambicanos, independentemente da sua idade, orientação sexual, religião ou qualquer outro critério de exclusão.

Convidamos todas e todos a participarem neste debate e a fazerem ouvir as suas vozes.

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