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Cochabamba suporta a sede

Na cidade boliviana de Cochabamba, que em 2000 protagonizou a “guerra da água”, fracassaram sucessivamente a privatização e a gestão estatal desse recurso.

A demanda insatisfeita de água potável na cidade boliviana de Cochabamba não tem saídas à vista, 11 anos depois de ganhar notoriedade internacional por causa de uma rebelião que deteve a privatização do serviço. Apenas 326.504 pessoas, 48% da população local, recebem água canalizada, e os mais pobres são obrigados a pagar preços altos.

Enquanto isso, o saneamento cobre 53% dos habitantes, segundo o Serviço Municipal de Água Potável e Esgoto (Semapa). A empresa produz 20,6 milhões de litros diários e garante um serviço que não chega a 16 horas por dia nessa cidade de clima e topografia de vale, a 2.600 metros de altitude. Muitas vezes a água é extraída de maneira irregular do próprio Semapa e depois vendida em camiões-cisterna nos bairros mais distantes, queixou-se uma moradora que pediu para não ser identificada.

Este estado de coisas na terceira cidade mais importante da Bolívia, com uma população de 680.597 habitantes, é resultado de uma série de experiências falidas que começaram com um modelo de privatização que, após uma rejeição sem precedentes, acabou no retorno do estatal Semapa.

A empresa do município “precisa do apoio dos governos departamental e nacional” porque a sua economia, afectada por pesada dívida, não pode assumir o desafio de investir 170 milhões de dólares para ampliar o serviço nos próximos cinco anos, disse o gerente geral do Semapa, Julio Vargas.

Em 2010, a empresa conseguiu refazer a sua situação deficitária, mas “ainda não podemos dizer que é uma economia solvente”, afirmou Julio. Em 2009, o défice de caixa do Semapa chegou a 3 milhões de dólares. Algumas das irregularidades que levaram a esse prejuízo foram roubo de materiais, compras de insumos com sobrepreços e presença na folha de pagamento de uma quantidade de empregados que não ia trabalhar.

Para equilibrar as finanças foi preciso demitir 150 pessoas, contou Julio. Hoje a empresa tem pouco menos de cinco empregados para cada mil ligações domiciliares, acima do parâmetro considerado adequado para a eficiência operacional dos serviços hídricos na América Latina, de três trabalhadores por mil ligações. A Bolívia tem uma das menores coberturas da região: 85% dos habitantes têm água potável e 46% algum serviço de esgoto, segundo dados de 2004 colectados pelas Nações Unidas.

Para o passado 22 de Março, Dia Mundial da Água, a organização elegeu o tema “Água para as cidades”. Todos os meses, cinco milhões de pessoas somam-se às populações urbanas nos países em desenvolvimento. Em Cochabamba, a única opção para atender parcialmente a demanda de água é um projecto para represar três rios da bacia do Misicuni, a construção de uma barragem que alimentará o consumo humano e a irrigação, além de uma central para geração de electricidade.

O projecto está localizado a 20 quilómetros da cidade e é administrado pela Empresa Misicuni, uma entidade “público-social” cuja direcção é formada por representantes do governo, das prefeituras da região e usuários da água. Porém, não entrará em funcionamento antes de 2013. “No caso boliviano, os modelos privado e estatal falharam”, disse Carlos Crespo, pesquisador do Centro de Estudos Superiores Universitários, que propõe um sistema de administração descentralizado e dirigido pelos próprios consumidores.

A presença do Estado imprime uma centralização que se soma a uma “forma terrível de corrupção”, que em Cochabamba acabou por absorver o controlo social dos cidadãos, convertendo-os em clientes desta irregular administração, acrescentou Carlos. O pesquisador coordena uma proposta feita por moradores da zona Sul de Cochabamba, que querem estabelecer uma associação, comprar a água do Semapa ou da Misicuni e administrar eles mesmos o recurso, distribuindo aos associados por canalização.

Trata-se de um modelo mais democrático e cara a cara, algo que pode ser mais eficiente do que os anteriores, explicou Carlos. O Semapa foi criado em Julho de 1967 para prestar serviço na província de Cercado, da qual Cochabamba é a capital, com uma administração autónoma e descentralizada.

Em 1999, o governo de Hugo Banzer (1971-1978 e 1997-2001) entregou por licitação o serviço que o Semapa administrava ao consórcio Águas do Tunari, formado por International Water Limited, da Grã-Bretanha, Edison, da Itália, Bechtel, dos Estados Unidos, Abengoa, da Espanha, e duas firmas bolivianas, a Ice Engenheiros e a Soboce. O contrato de privatização previa que o consórcio forneceria água potável e saneamento a toda a população de Cochabamba, duplicando a área de cobertura, e também produziria energia eléctrica e irrigação para a região.

Contudo, as autoridades aprovaram o contrato mediante uma lei que concedia amplas faculdades à empresa para administrar recursos hídricos que nem mesmo o Semapa tinha, como as redes comunitárias de água. Esse factor e um elevado aumento das tarifas de água desataram a rebeldia popular em Janeiro de 2000. Os protestos prolongaram-se até Abril e ganharam repercussão nacional, com manifestações e bloqueio de estradas.

A repressão terminou com um morto e 30 feridos, e no final os executivos do consórcio deixaram o país e a polémica lei foi revogada pelo Congresso. O Semapa voltou a nascer, mas os seus administradores priorizaram o pagamento de altos salários ao pessoal, não cumpriram o pedido popular de maneio transparente e esqueceram a crescente demanda.

Em Cochabamba, os usuários pagam 0,80 do dólar por metro cúbico de água, segundo informou a empresa, com dados do terceiro trimestre de 2010. No entanto, os mais pobres pagam um preço várias vezes superior. No debate que ocorre em diferentes círculos, alguns propõem a criação de uma cooperativa. Para Julio, este caminho é inviável, por falta de uma entidade que assuma a dívida do Semapa.

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