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Cinema moçambicano órfão de vontade política!

Cinema moçambicano órfão de vontade política!

Dez mil dias depois de Samora Moisés Machel – Primeiro Presidente de Moçambique Independente – encontrar a morte, o “País da Marrabenta” possui mil e uma maneiras diferentes de recordar-se dele. No entanto, o cinema (uma das formas) vê, em pleno século XXI, o seu progresso hipotecado pela falta de vontade política.

Esta e, muitas outras razões, fez com que, muito recentemente – no enceramento de 6º Festival do Cinema Documentário (Dockanema) – cineastas, realizadores e amantes da sétima arte discutissem, entre outros tópicos, as causas do fraco desenvolvimento do cinema nacional. Entre eles Ruy Guerra – a célebre figura do cinema moçambicano e mundial – a quem se prestou tributo, espevitou a reflexão.

“Se eu não tivesse tido vontade (pessoal) de voltar a Moçambique, certamente que não teria vindo. Aceitei o convite porque tinha uma vontade de estar cá. Além do mais, tal convite não foi algo imediato. Foi um processo bem elaborado, em função das condições pessoais e profissionais, bem como económicas”.

É assim que Ruy Guerra avalia os primeiros momentos que determinariam a sua vinda a Moçambique, em 1975, bem como ao processo de formação do cinema local.

Na época trabalhar para o cinema moçambicano era algo fácil, mas ao mesmo tempo difícil e complicado. Complicado porque, “estávamos a iniciar. O Instituto Nacional do Cinema (INAC) estava a começar. E não havia nada”. Ora, “quando não se tem nada as coisas são ao mesmo tempo facilitadas e complicadas”. Facilitadas, “porque você não é obrigado a lutar contra nenhuma estrutura estabelecida que eventualmente seja errada”.

E não faltam exemplos: “A Nouvelle Vague – da França – tinha um grande adversário que era a estrutura de produção e distribuição cinematográfica francesa. Isto fez com que os jovens cineastas, na França da Nouvelle Vague, tivessem que se confrontar com tal instituição”.

Inversamente, a isso, “nós, no Brasil do Cinema Novo, que não tínhamos uma profissão cinematográfica, tão-pouco uma estrutura de produção e distribuição nacional, tivemos que nos defrontar (somente) com o sistema de distribuição norte- -americano, o que não é fácil. Mas, felizmente, no Brasil, não tínhamos um ‘inimigo’ interno”.

A diferença

Curiosamente, apesar das dificuldades – típicas da época, não somente da área cinematográfi ca, mas da construção do novo Estado – a edifi cação e incremento do ramo da sétima arte não se ressentiu de tais obstáculos. “Havia um aspecto que fazia toda a diferença: uma fortíssima vontade política de criar um cinema moçambicano”, recorda Guerra.

O realizador justifica a razão da sua nostalgia em relação à época. “Essa simples fase determina tudo, porque sem “vontade política” não há cinema que se construa ou que sobreviva em nenhum país. O cinema, pelas suas características económicas, técnicas e pelo facto de ser a arte do século XX/XXI, explora uma técnica que envolve todos os processos de produção das demais expressões artísticas”. E isso é oneroso.

Uma discussão e tanto

Ruy Guerra conta que para se chegar à conclusão de que o cinema era, de facto, uma expressão artística, os cineastas, realizadores, teóricos cinematográficos e afins levaram meio século a reflectir sobre o assunto.

A primeira projecção cinematográfica, realizada em 1895, na França, não foi considerada “uma apresentação de uma experiencia científica para estudar o movimento”. Mas, “as classes populares francesas – o proletariado, os empregados, os poucos instruídos, o povo, no geral, vendo as imagens em movimento, começam a gostar – o que fez com que se produzisse uma quantidade enorme de filmes para este segmento social”. Emergiam, assim, concomitante ao cinema muitos aspectos da vida social ricos em mistérios.

Mais importante, é que as “imagens começaram a criar e estabelecer histórias humanas. O cinema forma-se, despertando o interesse dos intelectuais. Daí que estes se questionam sobre tal fenómeno. Até que surgiu um italiano, de nome Canuto, (que dez anos mais tarde) afirmou que se tratava da “sétima arte”. Curiosamente, “ninguém acreditou!”, diz. Afinal, acrescenta, o ser humano é cheio de contradições”.

Mas o cinema era arte porque lembrava a música, as luzes, as sombras, os corpos em movimento. Ou seja, começou-se a criar uma série de frases poéticas em volta do cinema. No entanto, só a partir dos anos 1960 é que se institucionalizou o cinema como uma arte. Na altura já haviam sido produzidas dezenas e dezenas de obras cinematográficas que (indubitavelmente) eram verdadeiros objectos de arte.

Um consenso tardio

Só tardiamente – volvidos cinquenta anos, depois do seu surgimento – durante a segunda metade do século XX é que se percebeu que o cinema representa uma obra de arte porque ele possui algo que nenhuma outra expressão artística tem: “a capacidade de reunir todos os meios de expressão de cada uma das outras artes”.

“O cinema é o espaço quase que vazio que tem tudo – o som, a imagem (…) e um aspecto – simplesmente especial – que é o óbvio. Mas a coisa óbvia, a coisa evidente (sempre) é aquela que a gente tem muita dificuldade de percebê-la. Porque está diante de nós. E estando diante do nosso nariz, a gente passa sem vê-la, a imagem em movimento, o que nenhuma outra arte tem”.

Infelizmente, “quando a gente percebe que o cinema é um meio de informação, de formação, de mobilização social, um instrumento de contar a história da humanidade, nos damos conta que ao cinema não se dava o devido valor”.

Incompreensivelmente, as entidades de direito “esquecem, por exemplo, que todo o processo dos Estados Unidos de América, da conquista de mercados, no mundo inteiro é feito através do filme. Foi através do cinema que as multinacionais norte-americanas conseguiram prosperar no mundo e vender o “american way of life”.

O que se perdeu em Moçambique: “Vontade política”

Uma vontade política favorável ao cinema moçambicano, é o que a abordagem Guerreira deixa transparecer, sobretudo quando se recorda: “Quando em 1975 cheguei a Moçambique e, por isso eu fiquei, me interessei em participar do processo da criação do cinema Moçambicano, foi porque encontrei uma compreensão do que era o cinema, da importância que possui”.

Por isso, “digo com a maior sinceridade e simplicidade que não voltei mais porque senti que, em Moçambique, desapareceu essa vontade política em relação ao cinema”. E mais: “por uma questão afectiva que se viu desalentada pelo assassinato do Presidente Samora Machel”.

Ruy Guerra invoca ao conceituado jornalista e escritor colombiano, Gabriel Garcia Marques que – à luz da sabedoria do imaginário, da sabedoria da ficção – lhe confidenciara: “avião do presidente nunca cai, é sempre sabotagem!” A isso, relaciona ao trágico acidente de Mbuzine que ditou a morte do primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel.

Para mais adiante afirmar que “eu acho que é isso mesmo. Quando não há vontade política não há espaço para o cinema. Porque o cinema é sempre integrado á economia de um país e às decisões gerais da nação”.

Fraco investimento, consequências imediatas

Ruy Guerra fala sobre o perigo pode derivar, não somente do não investimento no cinema nacional, mas acima de tudo, ao que pode imergir em se delegar a outrem para a produção das obras cinematográficas nacionais.

Além da componente da economia de um país – em que o cinema ajuda a criar – “se você delega a criação da sua imagem, a imagem do seu povo, ao estrangeiro, o seu povo nunca terá a sua imagem real”. Consequentemente: “você nunca se reconhecerá. O cinema é um dos elementos que revela a importância do reconhecimento do eu de um povo”.

Ou seja, “se não é o próprio povo, de cada país, a produzir o seu cinema; se se delegar esse poder a outrem então, tal povo estará trilhando pela senda da escravatura. Que não se tenha sobre isso a menor dúvida!”

No entanto, pelo menos na componente económica, não faltam exemplos: “Durante muito tempo o Brasil não conseguia ir adiante porque sempre que se entrava no congresso para produzir uma lei a favor do cinema, tal era obstruído pelos acordos do cinema com os Estados Unidos da América”. Os americanos condicionam: “ou o país deixa passar essa lei ou a gente baixa as cotações do café”.

Ora, o café é muito poderoso por isso acreditava- se que país precisava muito mais daquelas divisas do que uma lei a favor de um cinema em estado incipiente.

Então, “é preciso que os governos tenham consciência da importância do que é a imagem de um país”. Do contrário, “sozinho o cinema não irá avançar porque envolve técnicas, aparelhagens, divisas, mecanismos de distribuição e exibição, de publicidade, de festivais que são fundamentais para a troca de informações nas áreas técnicas. É nos festivais onde se combinam estratégias, as formas de produção cinematográfica, entre os realizadores”.

E é preciso deixar claro que, aqui, não se trata de estratégias submersíveis – como os governadores, muito tem interpretado, em como se os realizadores e cineastas tivessem tal poder – mas trata-se de estratégias de informação para desenvolver o cinema.

Medo da memória colectiva

Compreendendo o cinema e a sua produção, como sendo algo que edifica, constrói e conserva a memória colectiva de um povo, seria correcto compreender a falta de vontade política – que em Moçambique limita o desenvolvimento da sétima arte – como sendo o medo da nossa memória colectiva, da nossa identidade? Questionamos.

A indagação parece-se-lhe complexa, como tal, Ruy Guerra não possui uma resposta imediata. Mas sobre um aspecto não tem dúvidas: “O cinema representa a memória de um povo. A memória, por sua vez, é uma coisa viva. As imagens do cinema que existem sobre o passado são coisas que podem ser revividas – quando falei da criança que se descobre no espelho – referia-me a uma imagem real, mas ao mesmo tempo metafórico”.

De qualquer modo, “a imagem cinematográfica é fundamental, para a formação de um, eu nacional. De um grupo de indivíduos que se reconhecem como tendo algo forte de comum entre si e, que pertença a todos eles”.

Mas isso é uma realidade tangível. “A necessidade da formação da nação. É verdade que há vários conceitos sobre nação. A nação alemã, por exemplo, foi feita pela palavra. Outra ainda, pelo território. De uma ou de outra forma, todas as nações quando se formatam há (sempre) uma necessidade da criação de uma identidade que deve ser forte e com alguma visibilidade”, encerra.

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