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Pandza: Pão nosso

O homem atravessou fotograficamente a avenida. Um sol oblíquo enleava-o com pinceladas pálidas. A sombra sinistra acompanhou-o. Movia-se numa sem pressa incaracterística. Pisava como se o chão lhe pesasse por baixo dos pés. Gastas, tinha as solas quase descalças.

Fazia calor e o excesso de trajes, encardidos e displicentemente pendurados no cabide dos ombros, denunciava o frio na alma. Olhou com indiferença para o reflexo na vitrine. Dobrou a esquina. Como o rastro de um cometa a cauda esvoaçante do sobretudo seguiu-o. Conversava. Não se via ninguém ao redor, mas podia jurar que não falava sozinho.

No pêndulo do braço, um pão espreitava do papel caqui que o embrulhava. Cedendo ao cansaço sentou-se no degrau da escadadaria duma loja em desuso. Pousou o pão no degrau, vizinho à poeira, como se pusesse na mesa um arsenal de ingredientes para a refeição. Relaxou as pernas na posição de descanso, sentindo a brisa da tarde refrescar-lhe os dedos pelos respiradores dos calçados.

No rosto, a dureza da vida sulcou-lhe rugas que embruscavam as feições. Suava e o olhar parecia vagar, alheio a agitação dos transeuntes. Coçou a carapinha revolta, agitando a nuvem escura de mosquitos que o aureolava. Desembrulhou sem pressa, a refeição. O atrito fez um ruído seco, quando os calos da mão afagaram a pele crostrada do pão.

Antes de levá-lo a boca, tocou com os dedos grossos a testa, depois o peito, o ombro esquerdo e depois o direito, evocando um tal Pai, um tal Filho e um tal Espírito Santo. Do outro lado do passeio, senti meus lábios a abrirem e fecharem, involuntariamente, escapando-me religiosamente um “Ámen”.

Em tempos de calor, quando a alma tem frio, o pão ainda que seco esquenta o estômago. Fechou os olhos, da cara e da alma, quando mordeu o alimento. De volúpia, as garras sujas sangravam o trigo. Na boca pouco húmida, a dentadura amarela crocava com a secura do pão. Pela careta adivinhava-se que lhe sabia bem. Era o pão nosso de cada dia. O pão nosso de cada dia dele. Seco, mas sabia-lhe bem.

Enquanto que, alheio ao mundo triturava animalmente o pão, alguns corvos aproximaram-se com familiaridade, para debicar as migalhas caídas. De repente interrompeu a mordida e deteve- -se, sentindo-se observado. Era eu que, comovido, olhava como se o fotografasse. Incomodava-o aquele olhar porque eu fitava-o com uma ternura a que ele não estava habituado. Decalcava cada movimento da sua relação animal com aquele pão: “Vou escrever isto”, desabafei comigo.

Olhou para mim com olhos grandes e fugidios, vermelhos e sem inocência. Puxou o capuz de um dos casacos que vestia e cobriu-se, como se fechasse as cortinas da sua intimidade. Baixou os olhos fugindo do meu olhar insistente e incômodo. Envergonhado, talvez não compreendesse porquê a sua esfarrapada figura despertava a minha atenção.

O fluxo de gente cresceu e a tarde desceu para trás dos edifícios. O tráfego dos que retornam às suas casas moldava a hora de ponta. Os semi-coletivos escoavam da baixa para os subúrbios, lotados. Os corvos ainda debicavam por ali. O homem, sonolento, já não se importava com a minha presença, buscava na letargia do descanso reconciliar com o estômago ainda faminto.

Começava a escurecer. Uma menina ingênua, em trajes escolares, passou por ali falando ao celular. Viu-se um sorriso iluminando o semblante indecifrável do homem. Os seus dentes amarelados luziram felinamente. O crepúsculo do fim de tarde avermelhou-lhe mais os olhos. Com gestos largos mas discretos, seguiu-a. Como o rastro de um cometa a cauda esvoaçante do sobretudo seguiu-o.

Um grito curto, mas intenso, soou. Era a voz indefesa da menina. Olhei e ela, sem o celular, desesperava no chão. Ouviu-se uma gargalhada larga, de escárnio. “Quando o diabo se ri, uma lágrima escorre a face de Deus”. Assustei-me. Os corvos não. Continuavam por ali, a debicar as migalhas. O homem desapareceu na esquina seguinte, ruminando o pão nosso de cada dia, que o diabo amassou.

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